"Tem uma música aqui que se eu cantar o Joaquim [Barbosa] morre", disse de microfone em punho o advogado Kakay, que livrou o publicitário Duda Mendonça da cadeia no caso do mensalão: "Você pagou com traição / a quem sempre lhe deu a mão." ILUSTRAÇÃO: ANGELI_2013
Enfim, terminou
Do karaokê às margens do lago Paranoá ao “leilão silencioso” na boate paulistana: os advogados do mensalão dizem adeus a 2012
Daniela Pinheiro | Edição 76, Janeiro 2013
O e-mail de 41 linhas mencionava a quebra das garantias individuais, a imprensa entusiasta do “direito penal do terror”, a “subleitura” da teoria do domínio do fato levada a cabo pelo Supremo Tribunal Federal (“Talvez por falta de domínio da teoria”, dizia o texto) e os “holofotes que coordenaram o tal mensalão”.
Também ressaltava ter sido 2012 um ano de muito trabalho para os criminalistas. Além daquele que fora o julgamento mais longo, mais polêmico e mais televisionado da história da Justiça, havia ocorrido de tudo um pouco no Brasil: “CPI, escândalos, confusões no Congresso Nacional, eleições.” Lá pelo final, tomava-se conhecimento do que tratava a mensagem: “O país está vivo, a sociedade pulsa e, com esse espírito, devemos celebrar a vida e muito mais!” Festa na casa do Kakay, 7 de dezembro, às 14 horas, R.S.V.P.
A centena de destinatários do e-mail do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay – que livrou da cadeia o publicitário Duda Mendonça e sua sócia Zilmar Fernandes (acusação: evasão de divisas e lavagem de dinheiro) –, pareceu duvidar do fôlego do evento. Uma semana depois, houve nova comunicação pela internet: “Temos recebido algumas indagações se realmente a nossa confraternização começará às 14 horas. É que a festa lá em casa é como o julgamento do mensalão: não acaba nunca!”, escreveu o anfitrião.
Os primeiros convidados começaram a brotar na opulenta casa de 1 500 metros quadrados, com vista para o lago Paranoá e para a Praça dos Três Poderes, em Brasília, antes mesmo do horário marcado. Com a temperatura beirando os 35 graus, dezenas de garçons circulavam, equilibrando bandejas de caipirinha de frutas, espumante e vinho tinto italiano gelados, pelo ambiente ornado por obras de artistas como Sonia Ebling, Adriana Duque e Victor Brecheret.
Num canto da varanda, acomodado em um banquinho com violão em punho, o músico Di Brasil – a quem Kakay apresentou o ex-presidente Lula durante o governo e se transformou no cantor oficial dos churrascos na Granja do Torto e no Alvorada – dedilhava sucessos da MPB e anunciava que o microfone em breve seria aberto aos presentes.
Naqueles dias, os ministros do Supremo ainda discutiam a cassação dos mandatos de parlamentares envolvidos no caso. Dos 37 réus, doze haviam sido absolvidos e os outros 25 condenados a penas que, somadas, alcançavam 282 anos de prisão. Dez dias depois, o julgamento seria encerrado após quase cinco meses e 53 exaustivas sessões plenárias. A possibilidade de os réus irem para a cadeia ainda antes do Natal era aventada pelos pessimistas da corte.
Na festa de Kakay, um dos temas preferidos nas rodas de conversa era – sem surpresa – Joaquim Barbosa. “Taí a única coisa que ele acertou: que ninguém aguenta mais o mensalão”, falou o advogado Leonardo Isaac Yarochewsky (defensor de Simone Vasconcelos, ex-diretora financeira da empresa de Marcos Valério: doze anos, sete meses e vinte dias de prisão por lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, corrupção ativa e evasão de divisas), copo de caipirinha na mão, comentando uma declaração recente do ministro.
Dizia-se que o julgamento fora uma feira de vaidades fermentada pela imprensa. Uma pessoa quis saber do advogado mineiro Marcelo Leonardo se foi pior do que ele imaginava (Marcos Valério: quarenta anos, um mês e seis dias de prisão por corrupção ativa, peculato, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e evasão de divisas). “Sim, muito pior”, disse, grave. “Essa coisa de ficar falando que os réus têm que entregar o passaporte para não fugir é só para dar manchete de jornal.”
Oito quilos mais magro, de óculos escuros, camiseta e calça pretas, ele falava com as duas mãos para trás. “Como se alguém que quisesse fugir não pudesse pegar um jatinho e ir para qualquer lugar ou mesmo embarcar com carteira de identidade na América do Sul.” E continuou, indignado: “Quarenta anos! Nunca houve uma pena dessa no Supremo nem para crime contra a vida!”
Foi apoiado pelo advogado goiano Pedro Paulo Guerra de Medeiros, que deu suporte jurídico ao tesoureiro petista Delúbio Soares (oito anos e onze meses de prisão por formação de quadrilha e corrupção ativa): “Se um cliente normal meu tomasse essa pena, eu falaria: ‘Fica tranquilo’, porque é óbvio que iam revisar e diminuir. Mas, nesse caso do mensalão, é tudo fora do padrão.” Segundo ele, a prisão pode fazer bem à imagem dos condenados. “Em seis meses, eles vão virar mártires. O PT não vai deixar a nação se esquecer daqueles que estão presos”, disse.
Porções generosas de croquetes, linguiça e carne no palito eram colocadas sobre as mesas. Di Brasil cantava Garota de Ipanema. Boa parte dos presentes era de mulheres jovens, de cabelo comprido e vestido curto, e homens jovens de cabelo curto e calça comprida. Eram estagiários, funcionários, amigos, parentes, conhecidos de Kakay somados a causídicos de renome na capital federal e parte do society brasiliense que têm negócios com o governo. Um ex-ministro de tribunal superior apareceu.
“O que está acontecendo na primeira instância já é um absurdo”, comentou Kakay. “Com base nessas decisões do Supremo – de ignorar a presunção de inocência, a necessidade de a acusação produzir prova –, o juiz lá do interior já está fazendo quase rito sumário. Isso sim é que é herança maldita.”
Falava-se da recente eleição para o conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, destinos de férias, crimes de colarinho branco. Alguns convidados tinham apartamento em Paris, e por isso se solidarizaram ao tom de surpresa do relato de um jurisconsulto que descobriu tardiamente que no seu não havia só uma, “mas duas caves!”.
Às quatro da tarde, de bermuda, tênis e camiseta, o dono da casa tomou de assalto o microfone. “Essa música fui eu que fiz, mas a estão usando indevidamente num processo aí”, falou, provocando gargalhadas. Era um sucesso antigo gravado por Caetano Veloso: “Você bem que podia perdoar/ e só mais uma vez me aceitar…”, soltou a voz. A audiência se desmanchava em palmas e assobios. Di Brasil sorria, compenetrado nas notas musicais.
Depois de meia dúzia de hits entoados com direito a emulação dos timbres dos solistas originais, Kakay liberou o microfone. Uma moça se aventurou no repertório de Lulu Santos, sem provocar o mesmo entusiasmo nos presentes. Foi a deixa para o anfitrião voltar com a mesma música minutos depois. “Agora/ que faço eu da vida sem você/ você não me ensinou a te perder…” Ouviu-se: “Essa aí só pode ser para o seu amigo Zé Dirceu!”
O almoço foi servido em réchauds de prata: carnes de porco e vaca, tutu de feijão, farofa e saladas.
Um palco havia sido montado no jardim, ao lado da piscina de raia olímpica, em frente a canteiros com lavandas trazidas da Provence. A segunda atração da tarde, um grupo de samba com trinta integrantes, começou a cantar Chico Buarque: “Hoje você é quem manda,/ falou, tá falado,/ não tem discussão…” No refrão, “Apesar de você,/ amanhã há de ser/ outro dia…”, Leonardo Yarochewsky segurou uma moça pelo braço e chamou a atenção para a letra da música, citada por ele durante a sustentação oral no STF.
De roupa trocada e banho tomado, Kakay assumiu a vaga do vocalista do grupo. “Essa aqui é uma de ontem que está introjetada para hoje”, disse, enigmático. E atacou com outra canção de Chico Buarque, Vai Passar: “Dormia/ a nossa pátria mãe tão distraída/ sem perceber que era subtraída/ em tenebrosas transações…”
Um conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil comentou: “Ih, essa daí deve ser homenagem ao Roberto Gurgel [procurador-geral da República]. Ele usou esse trecho quando pediu a prisão dos mensaleiros”, disse, em tom de fofoca.
Kakay emendou mais um clássico. “Gente, tem uma música aqui que se eu cantar o Joaquim morre”, brincou. No gargarejo, uma fila de mulheres magras o incentivou em coro: “Canta, canta!” E ele foi de Vou Festejar, sucesso na voz de Beth Carvalho: “Chora!/ não vou ligar./ Chegou a hora,/ vais me pagar.” A estrofe foi cantada em uníssono: “Você pagou com traição/ a quem sempre/ lhe deu a mão/ Mas chora!…”
A performance se prolongou por quase meia hora. “Como será o amanhã/ responda quem puder,/ o que irá me acontecer?/ O meu destino será como Deus quiser”, cantava. Ao meu lado, um jovem advogado substituiu “Deus” por “Joaquim”.
Às dez e meia da noite, quando os convidados já falavam alto como em um show de rock, teve início uma nova rodada de aperitivos. Anunciou-se que seria a vez de um grupo de música sertaneja e metade da festa começou a se despedir. Uma turma de incansáveis, soube-se depois, esbaldou-se até as três da manhã.
A nata da advocacia paulista fez forfait no karaokê de Kakay. Mas, dali a quatro dias, tiveram a sua despedida particular. Era o sexto jantar de confraternização do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, o IDDD, uma entidade criada para dar suporte jurídico gratuito à população.
Às dez da noite, o Lions Nightclub, no Centro de São Paulo, cuja decoração combina animais empalhados pendurados no teto, colunas marmorizadas, espelhos rococós e sofás de couro capitonê, estava lotado. A boate, que às sextas-feiras se transforma em um disputado templo gay da noite paulistana, havia sido fechada para o evento, ao qual se tinha acesso mediante a compra de um convite por 280 reais, com direito a jantar do bufê Charlô e consumação livre de caipirinha, cerveja e uísque.
Com o intuito de arrecadar fundos, o instituto promovia um leilão de obras de arte. Esse ano, a novidade era o “leilão silencioso”. Em vez de lances dados aos gritos, como nas edições passadas, os advogados escreveriam seus nomes e propostas financeiras em uma prancheta colocada discretamente ao lado da obra.
“A fórmula do leilão tradicional ficou desgastada. Eram sempre as mesmas pessoas que compravam, apareciam e faziam o barulho”, contou Flávia Rahal (cliente: Delúbio Soares), ex-presidente do instituto.
Seriam colocados à venda cinco quadros e um par de abotoaduras do joalheiro Ara Vartanian. Lances mínimos acima de 1 500 reais. Também seria sorteado um jantar para duas pessoas em um restaurante italiano da moda.
Ao lado de uma gravura de Tomie Ohtake e uma foto de Eduardo Muylaert, chamava atenção, por seu colorido e proporções épicas, a pintura de um tucano de bico gigante embrenhado entre frutas tropicais, cujo lance inicial era de 3 mil reais.
Sentado num sofá de couro, copo com gelo na mão, o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira (Ayanna Tenório, vice-presidente do Banco Rural: absolvida) fazia comparações entre a nova e a velha guarda do direito envolvidas com o julgamento do mensalão. “Os advogados mais velhos sofreram mais com a derrota do que os jovens advogados que estavam nesse caso”, disse. “Muitos paradigmas mudaram com esse julgamento: não precisar mais de prova, ignorar a presunção de inocência… Para nós, a old school, presenciar isso é muito pesado”, comentou.
Aproximou-se, ignorando o teor da conversa, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias (Kátia Rabello, presidente do Banco Rural: dezesseis anos e oito meses por lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, formação de quadrilha e evasão de divisas). “Olha um aí que ficou mal”, apontou Mariz. “Foi minha pior derrota! Foi a pior da minha vida!”, disse Dias. “Eu ainda estou meio passado. A defesa era boa, mas ela não foi compreendida”, lamentou.
Mariz continuou: “Hoje, os jovens advogados ganham dinheiro muito rápido, gostam demais dos holofotes da mídia… Quantos colegas que não víamos se levantar no plenário do Supremo para ir ao banheiro bem na hora que os fotógrafos chegavam? É assim que se aparece na foto”, disse.
Dias avistou um amigo e deixou o grupo. “O advogado tinha um perfil humanista, boêmio, intelectual, meio porra-louca”, afirmou Mariz. “Agora, eles são meio… meio… não sei…”, disse procurando uma palavra. Quando lhe sugeriram “janotas”, ele concordou imediatamente.
A maioria dos homens usava terno e as mulheres, vestidos tubinho em cores escuras. Miniporções de escondidinho de carne seca e ravióli de espinafre eram distribuídas aos convidados, que equilibravam garfo, faca e pratinho no ar com habilidade.
No bar, garçons tatuados e com piercings distribuíam drinques coloridos. O clima era de boate, a iluminação de shopping center e a trilha sonora de barzinho da moda.
Kakay, que viera de Brasília especialmente para o evento, encarava o quadro do tucano: “Esse aqui nem o Serra compra”, disse ele, o único a usar tênis na festa paulistana.
Pierpaolo Bottini (deputado Professor Luizinho: absolvido) recebia parabéns de um grupo de jovens pela defesa no STF. Alberto Toron (deputado João Paulo Cunha: nove anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e peculato) também era cumprimentado pela “campanha honesta” para a presidência da OAB paulista, apesar de também tê-la perdido.
José Luís Oliveira Lima (ex-ministro José Dirceu: dez anos e dez meses de prisão por formação de quadrilha e corrupção ativa) dava explicações sobre outro cliente. O médico Roger Abdelmassih, acusado de estupro de mais de cinquenta pacientes, estava foragido e corria o rumor que havia sido visto na véspera em uma padaria paulista. “É mais fácil você ver uma assombração do que o Roger naquele lugar”, afirmou, categórico.
A seu lado, Roberto Pagliuso (Anderson Adauto: absolvido) comentava como filhos de criminalistas costumam ter uma visão particular do trabalho dos pais. Perguntam todo o tempo por que defendem criminosos ou fazem considerações complicadas de explicar. “A minha filha via uma condenação no mensalão e ficava falando ‘quem mandou fazer coisa errada!’”, disse. “É difícil explicar que a coisa não foi assim.”
Theodomiro Dias Neto (cliente: Kátia Rabello) contou que a filha – de tanto ouvir sobre o mensalão – quis batizar o cachorro que ganhou de aniversário de “Dirceu”.
Em outro grupinho o assunto era – surpresa outra vez – Joaquim Barbosa. De como estava pleinde soi-même, de como acha que pode ser presidente da República, de como parou de trocar tanto de cadeira e se levantar devido a dores nas costas durante as sessões do julgamento.
“O Celso de Mello já me disse que o Joaquim nem é o primeiro negro do Supremo!”, contou um advogado que não trabalhou no caso. “Que inclusive já houve outros dois negros e um deles passou até pela presidência. Para você ver o marketing do Joaquim”, comentou, ao que os demais concordaram balançando a cabeça. Referia-se aos ministros Pedro Augusto Lessa e Hermenegildo Rodrigues de Barros, que integraram o tribunal no começo do século passado.
Às onze da noite, liam-se poucos nomes nas listas presas às pranchetas para arrematar as obras de arte. O tucano continuava com apenas um interessado.
Ausência notada foi a do fundador do instituto, Márcio Thomaz Bastos (JoséRoberto Salgado, vice-presidente do Banco Rural: dezesseis anos e oito meses de prisão por lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, formação de quadrilha e evasão de divisas). “Estou com uma virose, febre e, pior, proibido de beber até o Natal”, disse-me num torpedo, dias depois.
Arnaldo Malheiros Filho (cliente: Delúbio Soares) estava há semanas em retiro parisiense, de onde voltaria apenas em meados de janeiro. E Luiz Fernando Pacheco (ex-deputado José Genoíno: seis anos e onze meses de prisão por corrupção ativa e formação de quadrilha) estava fora da cidade.
À meia-noite, o leilão foi encerrado. “Um fracasso! Arrecadamos quase nada”, comentou um dos organizadores do evento. “Essa coisa de ser silenciosa não adianta. Eles só doam se der para aparecer.”
No ano anterior, uma fotografia de Muylaert, cotada a 300 reais, havia alcançado 7 mil reais num duelo demorado e ruidoso entre dois advogados de réus do mensalão. Achavam que a figura retratada lembrava a ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça, e ambos queriam ter o prazer de presentear o outro com o mimo.
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