Em 1918, mulheres se protegem da pandemia com máscaras: “Espalharam-se então horrores. Às moças mortas, arrancavam as capelas e levantavam as mortalhas para ver as partes” CREDITO: MUSEU NACIONAL DA AUSTRÁLIA
Enigmas das pandemias
O que sabemos – e o que ainda é mistério – sobre a gripe espanhola, o comportamento social em catástrofes e o papel do acaso na história
Rafael Cariello | Edição 164, Maio 2020
Em agosto de 1998, um batalhão de técnicos e cientistas desembarcou no frio congelante do Arquipélago de Svalbard, na Noruega. Pelas três semanas seguintes, sob o escrutínio admirado e benevolente da imprensa, eles iriam remover cruzes e lápides, revirar o solo do pequeno cemitério local e perturbar a paz dos 2 mil habitantes da cidade portuária de Longyearbyen, distante cerca de 1 mil quilômetros do Polo Norte. Liderada pela geógrafa canadense Kirsty Duncan, a missão de especialistas europeus e norte-americanos tinha viajado aos confins do planeta em busca de respostas para perguntas formuladas pela primeira vez oito décadas antes, quando a gripe espanhola varreu o mundo.
Estima-se que a pandemia tenha dizimado entre 50 e 100 milhões de pessoas, de Nova York a Pequim, do Rio de Janeiro a Oslo. Em números absolutos, provavelmente nada matou tanto, em tão pouco tempo, na história humana. Concentrada no final de 1918, a pior onda da doença promoveu o espetáculo infernal de corpos empilhados nas ruas, de cadáveres que se acumulavam em velocidade maior do que os coveiros conseguiam enterrar. Nunca mais – nem antes – uma epidemia de gripe conheceria taxas de mortalidade tão altas. Na introdução do livro The Spanish Influenza Pandemic of 1918-19 (A pandemia de influenza espanhola de 1918-19), volume com artigos de historiadores, médicos e virologistas publicado em 2003, os organizadores admitiam que a pergunta mais básica de todas ainda não havia sido respondida: “Por que ela foi tão letal?”
Outra característica incomum da gripe espanhola aparecia na idade das pessoas mortas. As ondas de gripe anteriores e posteriores matavam sobretudo velhos e crianças. No caso da espanhola, as taxas de mortalidade eram também muito altas entre jovens adultos, homens em particular, supostamente mais fortes e relativamente saudáveis. Décadas depois de seu surgimento, médicos e cientistas ainda não tinham explicações satisfatórias para esse fato, constatado em todo o planeta. “O padrão etário e de gênero das mortes ainda é de certa forma um mistério”, registraram os historiadores Howard Phillips e David Killingray, nessa obra recente sobre a pandemia de 1918.
Naquele ano fatídico, quando já se podia vislumbrar a paz na Europa, uma nova leva de jovens noruegueses fazia, como de costume, a rota de navio do litoral Norte do país até o Arquipélago de Svalbard. Muitos viajavam às ilhas para trabalhar nas minas de carvão locais. Durante uma dessas travessias, em setembro, diversos passageiros adoeceram. Sete deles morreram dias depois de a embarcação aportar em Longyearbyen. Foram enterrados no cemitério local, quase permanentemente coberto de gelo e neve.
Oito décadas mais tarde, o grupo liderado por Kirsty Duncan iria buscar em seus corpos vestígios da doença que os havia vitimado. No primeiro dia de trabalho, as cruzes e lápides que demarcavam os jazigos foram retiradas. Uma tenda de proteção foi inflada sobre o terreno, e uma equipe de especialistas ligou os motores de uma máquina projetada para fatiar o terreno congelado, primeira etapa no trabalho de escavação.
O que os cientistas estavam prestes a fazer ali era tão inusitado que a comparação mais adequada para aquela empreitada era da ordem da ficção. No livro Jurassic Park, de Michael Crichton – transformado em sucesso de bilheteria por Steven Spielberg –, uma empresa de engenharia genética consegue recuperar toda a informação do DNA de dinossauros, armazenada em minúsculas quantidades de sangue no corpo de insetos pré-históricos, que, por sua vez, estavam preservados em resina vegetal.
Na Noruega, em vez de insetos, os cientistas procuravam corpos humanos, que haviam sido conservados dos processos de putrefação não pelo âmbar, como na ficção, mas pelas baixíssimas temperaturas do Ártico. Dentro desses corpos, em vez do DNA de dinossauros, os pesquisadores esperavam encontrar material genético do vírus da gripe espanhola. Seu objetivo não era trazê-lo de volta à existência como no filme de Spielberg, embora isso viesse a ser feito anos mais tarde, mas desvendar as características genéticas do microrganismo – e quem sabe, assim, elucidar os enigmas da grande pandemia de 1918.
A ideia que motiva a trama de Jurassic Park se baseia numa técnica inventada no início dos anos 1980, pouco antes da publicação do livro, e que se tornaria cada vez mais comum e útil em pesquisas biológicas: um procedimento capaz de replicar material genético, transformando ínfimas amostras de DNA ou RNA, como as que na ficção haviam sido conservadas no sistema digestivo do mosquito, em volume suficiente para ser adequadamente analisado em laboratório, em experiências sucessivas. Até o advento dessa técnica, identificar as sequências de bases que codificam as características de seres vivos (ou semivivos, no caso dos vírus), quando preservadas em pequenas quantidades, era uma tarefa quase impossível.
“A gente ainda está longe de um Jurassic Park”, explicou o epidemiologista Francisco Inácio Bastos, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz. “Mas para seres muito simples, como vírus e bactérias, já temos uma paleogenômica”, o estudo de DNAs e RNAs do passado, “que consegue reconstituir praticamente todo o material genético.”
Quando a gripe espanhola varreu o mundo, os vírus, tal como os conhecemos, ainda eram sobretudo uma construção teórica. Os primeiros seres desse tipo relacionados às epidemias de gripe só viriam a ser observados em microscópio na década de 1930. No livro America’s Forgotten Pandemic (A pandemia americana esquecida), escrito nos anos 1970, o historiador Alfred Crosby afirmava que o “sonho dos cientistas pesquisando a influenza” era poder, de alguma forma, obter espécimes do vírus causador da doença. “Mas apenas algo tão improvável quanto uma cápsula do tempo seria capaz de fornecê-los”, imaginava o autor. Em pouco mais de uma década, com o desenvolvimento das técnicas de replicação de material genético, essa “cápsula do tempo” havia se tornado uma possibilidade. Kirsty Duncan e alguns dos mais importantes virologistas do planeta tinham desembarcado na Noruega com a esperança de encontrá-la.
No sexto dia de trabalho no cemitério de Longyearbyen, afinal chegou-se ao primeiro caixão de um dos sete mineiros mortos. Outros dois surgiriam, logo em seguida. “Os três esquifes se encontravam a cerca de meio metro da superfície”, registrou Duncan em seu livro Hunting the 1918 Flu (Em busca da gripe de 1918). A notícia não era boa. A parte superior do gelo, mesmo naquela latitude tão próxima do Polo Norte, derretia parcialmente a cada verão. Quanto mais fundo os corpos estivessem enterrados, maiores as chances de serem encontrados em boas condições de conservação. Meio metro era muito pouco.
As primeiras notícias da gripe espanhola chegaram ao Brasil na segunda metade de setembro de 1918. O país enviara tardiamente à Europa “grupos auxiliares” ao esforço de guerra dos Aliados. Segundo o médico e escritor mineiro Pedro Nava, que então, adolescente, estudava no Rio de Janeiro, os navios militares brasileiros foram “atingidos pela pestilência” depois de fazerem escala na África, no fim de agosto. Em 22 de setembro, telegramas contavam das desgraças a bordo, já com dezenas de militares mortos, outros tantos doentes. Mas a essa altura certamente “o demônio já estava em nosso meio”, concluía Nava, trazido por embarcações vindas da Europa. Seja como for, o problema ainda não havia sido “percebido pelo povo como a desgraça coletiva que viria ser”.
O impulso inicial foi o de culpar os inimigos alemães pela criação da moléstia, espalhada no “mundo inteiro por intermédio de seus submarinos”, conforme registrava A Careta num artigo de humor, mas que refletia as reações da sociedade à nova doença. Algo semelhante se passou nos Estados Unidos, de acordo com a jornalista Gina Kolata, autora de Gripe: A História da Pandemia de 1918: “Quando a peste veio, naqueles frios dias de outono, houve quem dissesse que era uma terrível nova arma de guerra”, desenvolvida e disseminada pela Alemanha. “Diziam que sua mãe era a trincheira e seu pai, aquele filho da puta do kaiser”, escreveu Nava. Foi batizada de “espanhola”, no entanto, em virtude da neutralidade de Madri no conflito mundial. A imprensa na Espanha, livre da censura militar, foi a primeira a dar notícia da epidemia.
“A espanhola instalou-se entre nós em setembro, cresceu no fim desse mês e nos primeiros do seguinte”, registrou o escritor mineiro num de seus volumes de memórias, Chão de Ferro. “Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos nossos anais epidemiológicos nos dias terríveis da segunda quinzena de outubro, e sua morbidade e mortalidade só baixaram na ainda trágica primeira semana de novembro.”
As aulas no colégio de Nava foram suspensas. O ritmo de vida na capital federal reduziu-se drasticamente: “Tráfego rareado, cidade vazia e meio morta, casas de diversão pouco cheias, conduções sempre fáceis, as regatas, as partidas de water-polo e futebol quase sem assistentes […] O espantoso já não era a quantidade de doentes, mas o fato de estarem quase todos doentes e impossibilitados de ajudar, tratar, transportar comida, vender gêneros, aviar receitas, exercer, em suma, os misteres indispensáveis à vida coletiva.”
E, logo, uma multidão de mortos. No auge da propagação, em outubro, quase mil pessoas morreram num único dia no Rio de Janeiro, uma cidade então com menos de 1 milhão de habitantes. O dramaturgo Nelson Rodrigues registrou a calamidade em suas memórias. “O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no botequim […] Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nem um vira-latas vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem vizinho, nem ao menos inimigo.”
O cronista é conhecido pelo exagero retórico, mas sobreviventes da epidemia, entrevistados pela pesquisadora Adriana Goulart, ofereceram relato parecido. Um deles disse à historiadora que “as mortes eram tantas que não se dava conta do sepultamento dos corpos”. E acrescentou: “Na minha rua, da janela, se via um oceano de cadáveres. As pessoas escoravam os pés dos defuntos nas janelas das casas, para que a assistência pública viesse recolher. Mas o serviço era lento, e aí tinha hora que o ar começava a empestear; os corpos começavam a inchar e apodrecer. Muitos começaram a jogar os cadáveres em via pública. Quando a assistência pública vinha recolhê-los, havia trocas dos podres por mais frescos, era um cenário mefistofélico.”
No mundo todo, a gripe espanhola conheceu três grandes ondas, a primeira no início de 1918, a derradeira em 1919. A mais forte, que provocou um número incomparável de mortes, foi a segunda vaga, entre setembro e novembro de 1918. Tão rápido quanto havia surgido, contudo, a peste se foi. O virologista Maurício Nogueira, chefe do departamento de doenças infecciosas da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, explica que o declínio no contágio e na mortalidade da gripe espanhola se deveu à criação de uma “imunidade de manada”.
“Tanta gente se infectou que ela já não conseguia se transmitir. Já tinha uma população imunizada, que criou anticorpos e ficou protegida.” Nogueira compara uma epidemia a uma reação nuclear. “Você precisa de uma massa crítica, de um número grande de pessoas suscetíveis, sem anticorpos, que permita uma rápida transmissão da doença. Com o tempo, o número de suscetíveis vai diminuindo. Tem uma hora que não tem mais urânio para sustentar a reação em cadeia. Você vai continuar a ter a circulação do vírus, mas não vai ter epidemia.”
“De repente, passou a gripe”, escreveu Nelson Rodrigues ao lembrar o episódio, em 1967. “Ninguém pensava nos mortos atirados nas valas, um por cima dos outros. Lá estavam, humilhados e ofendidos, numa promiscuidade abjeta. A peste deixara nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte.”
Em meados dos anos 1990, o virologista Jeffery Taubenberger trabalhava no Instituto de Patologia das Forças Armadas dos Estados Unidos. O posto não era dos mais prestigiosos no mundo da ciência norte-americana, mas lhe dava acesso a um tipo único de banco de dados. Ainda no século XIX, o presidente Abraham Lincoln havia determinado que médicos separassem exemplares dos tecidos de soldados que tivessem examinado (a fim de constatar a causa mortis), preservassem e catalogassem o material em pequenas amostras, enviando-as em seguida para um único local, o Instituto de Patologia.
Quase um século e meio mais tarde, o virologista e seus colegas dispunham de um incomparável museu de células do passado, acompanhadas dos dados do falecido, sua data de óbito e possíveis causas da morte. Como se isso não bastasse, o valor científico do arquivo tinha dado um salto recentemente, com o desenvolvimento das técnicas de replicação de material genético – algo que ficou claro para Taubenberger depois de ler um artigo, no início de 1995, na revista Science.
No texto, pesquisadores se valiam do fato de que os olhos do cientista inglês John Dalton haviam sido preservados em instituições britânicas desde o século XIX. Dalton tinha notado, já adulto, que não conseguia distinguir as cores como o restante das pessoas, e a doença que o afetava acabou sendo batizada com o seu nome: daltonismo. Agora, no fim do século XX, sabia-se que uma mutação genética podia ser a causa dessa incapacidade. Mas ninguém tinha ainda tomado a iniciativa de encontrar a prova definitiva do daltonismo de Dalton. Os autores do artigo na Science fizeram isso: usaram as novas técnicas de replicação de DNA para analisar o material colhido no globo ocular do cientista, descobrindo que o pai da doença era, de fato, portador de uma mutação genética.
Ao ler o artigo, Taubenberger se deu conta de que dispunha de uma técnica inovadora – a capacidade de replicar e analisar ínfimas quantidades de material genético – e de um impressionante material de pesquisa, milhares de “olhos de Dalton”: as amostras do Instituto de Patologia. Não seria difícil fazer algo parecido com a pesquisa publicada na Science. Ele tinha os meios, mas ainda lhe faltava um problema, uma questão suficientemente interessante para ser respondida. Seu primeiro impulso, segundo narra Gina Kolata, foi tentar analisar a causa mortis de alguém famoso. Trocando ideias com seus pares, Taubenberger afinal se deu conta de que havia uma senda mais promissora: a gripe espanhola. Talvez fosse possível encontrar o vírus perdido e reconstruir o seu código genético, esclarecendo afinal por que aquela epidemia havia sido tão virulenta e mortífera.
O pesquisador pediu aos responsáveis pelo arquivo de tecidos do Instituto de Patologia que selecionassem material de pessoas mortas pela gripe em 1918. Dos setenta casos inicialmente levantados, cerca de uma dúzia se encaixava no perfil que o virologista buscava: mortes rápidas, ocorridas poucos dias depois do diagnóstico.
As amostras de tecido do pulmão das vítimas, preservadas em parafina, começaram a ser analisadas. Fragmentos de material genético foram separados. Os pesquisadores sabiam o que procurar porque outros influenzavírus já haviam sido sequenciados. Afinal encontraram material que parecia promissor, presente no que restou dos pulmões do soldado Roscoe Vaughan, morto aos 21 anos numa base militar norte-americana, em setembro de 1918. O vírus estava lá, mas, após meses de pesquisa, os cientistas dispunham apenas de parte de sua sequência de bases. Para avançar, precisariam de outros exemplares, vindos de outros corpos. “Uma das críticas ao trabalho de Taubenberger, com a qual ele concordava, era a de que ele tinha apenas uma amostra”, escreveu Gina Kolata. “Talvez o que ele pensava ser o vírus da gripe de 1918 fosse um vírus inocente e inócuo”, também presente no corpo do soldado, mas não o responsável por sua morte.
Foi por essa época que o virologista soube do projeto de Kirsty Duncan de desencavar corpos no Círculo Polar Ártico, amplamente divulgado pela imprensa mais de um ano antes da viagem. Enquanto a geógrafa canadense dava publicidade a cada etapa preparatória de sua expedição, Taubenberger e seus colaboradores trabalhavam longe dos holofotes. Uma corrida silenciosa pela decifração dos segredos do vírus de 1918 estava em marcha. Meses antes de Duncan colocar os pés em Svalbard, o grupo do Instituto de Patologia anunciou publicamente a reconstituição parcial do material genético encontrado no corpo do jovem militar. A canadense, que ainda tinha a esperança de poder supervisionar a decifração completa do mistério da gripe espanhola, insistiu no projeto e decidiu convidar Taubenberger para fazer parte de sua equipe. Ele aceitou, mas acabaria descobrindo um atalho para o Polo Norte.
Um patologista sueco radicado nos Estados Unidos, Johan Hultin, também mobilizado pelos mistérios médicos e científicos da gripe espanhola, havia tentado obter amostras do vírus muitos anos antes, na década de 1950. Hultin soubera de um vilarejo no Alasca que havia sido praticamente exterminado pela pandemia no final da Primeira Guerra Mundial – dos 80 moradores locais, 72 morreram da doença. Viajara à pequena cidade de Brevig Mission, e conseguira autorização para trabalhar no cemitério local. Mas não tinha obtido sucesso. Não fora possível encontrar o vírus. Agora, ao tomar conhecimento das descobertas de Taubenberger, e sabendo que as novas técnicas de microbiologia talvez propiciassem um resultado diferente, ligou para o virologista do Exército norte-americano, propondo fazer nova expedição. Hultin iria sozinho.
No Alasca, sem nada parecido com a parafernália de equipamentos que Duncan estava reunindo para a sua tentativa, o patologista contou apenas com a ajuda de moradores locais para mais uma vez cavar e tentar achar corpos conservados pelo gelo permanente do Norte. Encontrou afinal o cadáver de uma mulher obesa, bastante bem preservado, recolhendo amostras de tecido in loco.
Os pedaços de pulmão de Lucy – nome que Hultin lhe deu – se juntaram aos do soldado Vaughan e, depois, a mais material genético descoberto em novas incursões nos arquivos do Instituto de Patologia. A equipe de Taubenberger voltou ao trabalho. Na Noruega, a expedição de Duncan não foi bem-sucedida. Um caixão após o outro, contendo os cadáveres dos mineiros mortos em 1918, foi sendo descoberto, mas todos localizados muito próximos à superfície e, portanto, sujeitos a um período de degelo anual. Depois que a sétima e derradeira urna veio à tona, o virologista inglês John Oxford, um dos mais renomados integrantes do grupo, tomou a iniciativa de anunciar à imprensa que o projeto havia fracassado. Seria praticamente impossível encontrar o vírus naqueles corpos, provavelmente em péssimas condições de conservação. Alguns anos depois, em depoimento para Kolata, o pesquisador admitiria ter ficado “terrivelmente frustrado” com os resultados da expedição. “Tinha a esperança de que pudéssemos encontrar sete jovens mineiros perfeitamente preservados”, disse Oxford. “O que nós achamos, mais ou menos, foram sete esqueletos, com algum tecido biológico.”
Taubenberger teve mais sorte. Os exemplares de vírus encontrados no Instituto de Patologia coincidiam com o material recolhido por Hultin no Alasca, comprovando que se tratava mesmo do patógeno da gripe espanhola. Alguns anos depois, já no século XXI, o virologista e seus colegas conseguiram reconstituir a informação genética completa do vírus de 1918. Em seguida, outros pesquisadores usariam a descrição detalhada da sequência de bases para recriar versões do vírus em laboratório, a fim de testar seus efeitos em animais e tentar, assim, obter explicações para a letalidade da gripe espanhola.
Eles haviam vencido a corrida. Os resultados, no entanto, foram no fim das contas bem menos espetaculares do que a saga da busca pelo vírus.
Houve avanços, é verdade. O virologista Maurício Nogueira se lembra de acompanhar as notícias sobre o trabalho de Taubenberger e as tentativas de encontrar pistas do vírus de 1918 no Ártico, entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000 – justo na época em que ele fazia o seu doutorado em microbiologia na Universidade Federal de Minas Gerais e, logo em seguida, pesquisas no Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, nos Estados Unidos.
“Eu me lembro de duas discussões”, contou Nogueira. “A primeira, sobre a possibilidade de o vírus descongelar e escapar. Algo que gerou muito medo. E houve também o debate sobre a recriação do vírus, se valeria a pena ou não. O que acabou acontecendo, no início dos anos 2000.”
Fazia sentido o medo de o vírus descongelar, escapar, enquanto os cientistas reviravam cemitérios e corpos congelados? “É difícil dizer. A possibilidade de você achar alguma coisa congelada viável é muito baixa. Mas havia o caso da ‘gripe russa’. Em 1977, houve uma ameaça de pandemia, que ganhou esse nome. Um vírus H1N1 que emergiu, mas só infectou gente com menos de 20 anos. Depois, quando foram analisá-lo, percebeu-se que esse vírus era igual ao de 1957. Você sabe o único lugar em que um vírus fica vinte anos sem sofrer mutação? Num freezer. De um laboratório. A gripe russa de 1977 com certeza foi o escape de algum vírus. Alguém fez uma bobagem. E infectou muita gente com menos de 20 anos. Todo mundo que tinha mais de 20 anos já tinha sido exposto àquele mesmo vírus.”
Nada disso aconteceu com o vírus de 1918, de toda forma. Suas características genéticas foram recuperadas. De posse da informação precisa das bases que compunham o seu RNA, o próprio vírus acabou sendo recriado em laboratório, sem acidentes. O que foi possível aprender desde então?
Há uma primeira característica específica da gripe espanhola, que já se conhecia, e que ajuda a explicar parcialmente as altas taxas de mortalidade associadas à pandemia. “Um número incomum de pessoas acabou desenvolvendo uma forma severa da gripe, levando a uma pneumonia viral que em muitos casos progredia para uma pneumonia provocada por bactérias”, explicou Taubenberger em 2018, por ocasião do centenário da doença. Ou seja, muita gente morria por causa da infecção por bactérias, não diretamente provocada, mas de alguma forma facilitada pelo vírus. Como os antibióticos ainda não haviam sido inventados, os médicos “não tinham como tratar a infecção bacteriana”, comentou o virologista. Mesmo um vírus com características idênticas ao da gripe espanhola provocaria um número menor de mortes atualmente, portanto.
Mas como o genoma do vírus ajuda a entender esse padrão específico da doença em 1918? “Infelizmente, quando você olha para o genoma do vírus, e o compara com outros influenzavírus, nada que seja óbvio se apresenta para explicar por que a doença se comportava dessa forma”, admitiu Taubenberger.
Havia, contudo, uma outra característica da gripe espanhola – um tipo de resposta que ela provocava no corpo do doente e que pôde ser observado em laboratório, quando os cientistas infectaram animais com a versão reconstruída do vírus. “Uma coisa que sabemos que o vírus de 1918 fazia – é algo que ele faz em experiências com animais e há dados para saber que era isso que acontecia também com seres humanos – é que ele provocava uma resposta inflamatória muito forte e bastante incomum”, disse Taubenberger. “Assim, a resposta imunológica do corpo ao vírus contribuía para os danos aos pulmões, para a patologia da doença, para os efeitos sérios da doença e a morte.”
Segundo Maurício Nogueira, esse fato talvez ajude a explicar por que aquela pandemia matou uma quantidade incomum de pessoas entre 18 e 40 anos. “O vírus causava uma infecção grave. E o organismo reagia de forma muito agressiva. A própria reação do organismo acabava matando a pessoa. E isso ocorria sobretudo em adultos jovens. Crianças e idosos não conseguem montar essa resposta tão agressiva.”
Taubenberger afirma que seus estudos agora se concentram em tentar encontrar as características do código genético daquele vírus que talvez provocassem essa reação imunológica tão forte. Ainda não há, de toda forma, respostas definitivas para os dois grandes mistérios da gripe de 1918: por que matou tanto e por que sobretudo jovens adultos. “Não temos respostas absolutas, mas temos uma boa ideia do que aconteceu”, disse Nogueira. “Respostas absolutas e definitivas são algo um pouco acima do que se espera para ciências não exatas. Essas são as melhores respostas, por enquanto.”
Às 17h36 do dia 27 de março de 1964, o Alasca foi atingido pelo segundo maior terremoto já registrado no mundo, e o maior de todos os tempos na América do Norte. Os tremores duraram pouco mais de quatro minutos. Em Anchorage, maior cidade do estado, casas e prédios desabaram, e fendas enormes destruíram as ruas. Na costa, tsunamis se seguiram ao tremor. Estima-se que entre 130 e 140 pessoas tenham morrido. “A maior cidade do Alasca parece hoje sacudida e rasgada pelas garras de um monstro”, dizia o despacho da Associated Press sobre a tragédia.
Quando tudo começou, a jornalista Genie Chance estava com seu filho no carro, a caminho do Centro de Anchorage. A terra começou a tremer, e a rua, a balançar sob as rodas do veículo. Sua reação inicial foi a de achar que não havia nada de muito grave acontecendo. O escritor Jon Mooallem narra a história no livro This Is Chance!.[1] Ao mencionar a reação da jornalista, Mooallem comenta que todos temos a tendência a acreditar, mesmo submetidos aos piores desastres, “que a vida continua a funcionar de maneira basicamente normal”.
Episódios de pandemia, como a gripe de 1918 ou a Covid-19, são em alguma medida comparáveis a terremotos, furacões ou acidentes nucleares, afirma a epidemiologista Jennifer Horney, do Centro de Pesquisa de Desastres, na Universidade de Delaware. “Eis como a Cruz Vermelha define desastre”, ela escreveu, numa mensagem de e-mail. “Um episódio súbito, calamitoso, que afeta e prejudica o funcionamento de uma comunidade ou sociedade, e que provoca perdas humanas, materiais, econômicas ou ambientais acima das capacidades de resposta daquela comunidade ou sociedade, lançando mão de seus próprios recursos.” E concluiu: “É certamente correto tratar uma pandemia como um tipo de desastre.”
Quando chegou a notícia do terremoto de 1964, um grupo de sociólogos, fundadores do centro para o qual Horney hoje trabalha, decidiu viajar ao Alasca a fim de tentar entender como aquela comunidade e seus cidadãos tinham reagido ao abalo. Ao desembarcarem em Anchorage, esperavam tudo, menos normalidade. O senso comum lhes dizia que era plausível apostar em desordem social, saques e desespero, num momento em que as pessoas haviam perdido o chão.
Expectativas da mesma natureza encontram expressão agora – como, de resto, havia acontecido em 1918. Pedro Nava relata que “verdadeiros ou falsos os boatos, era como se fossem realidade pelo impacto emocional que causavam”. Isoladas em casa, as famílias recebiam notícias assustadoras de desordem na cidade, rumores – falsos, com frequência – fundados em medos antigos de uma parte da sociedade. “Descrevia-se a fome. Os ataques às padarias, armazéns e bodegas por aglomerados de esfaimados e convalescentes esquálidos, roubando e tossindo.” Como faltavam coveiros, “foram contratados amadores a preços vantajosos”. Também detentos estariam sendo usados para cavar as valas nos cemitérios, diziam.
“Espalharam-se então horrores”, escreve Nava. “Descreviam-se os criminosos cortando dedos aos cadáveres, rasgando-lhes as orelhas para roubar os brincos, os anéis, as medalhas e os cordões que tinham sido esquecidos. Às moças mortas, arrancavam as capelas e levantavam as mortalhas para ver as partes. Que curravam as mais frescas antes de enterrá-las. Melhores as que estavam ficando moles: eram tiradas dos caixões e comidas de beira de cova.”
Nada disso foi testemunhado pela equipe de sociólogos em Anchorage. Mesmo com fissuras nas hierarquias políticas locais e nos sistemas de resposta tradicionais a desastres, grupos de pessoas se organizaram espontaneamente, atribuindo-se as mais diferentes tarefas: resgatar pessoas presas sob os escombros e nas ferragens dos carros, preparar e distribuir comida, contar os mortos, fazer o inventário dos sobreviventes. O fenômeno de auto-organização, de episódios de altruísmo, da vontade de ajudar era, como se descobriu depois, comum a diversos casos de abalo da ordem tradicional, acidentes e desastres.
Os próprios moradores procuravam explicar sua reação ao terremoto nos termos da composição social daquela “cidade de fronteira”, de pouca desigualdade, composta por uma ampla classe média, o que facilitaria a empatia, a identificação com os demais cidadãos, a sensação de que o próximo merecia ajuda. Mas os especialistas do Centro de Pesquisa de Desastres encontrariam o mesmo tipo de reação em sociedades bastante diferentes, e mesmo nas mais desiguais. Foi o que aconteceu, por exemplo, no terremoto do México, em 1985.
“A prática de saques”, os sociólogos descobriram, “era um fenômeno extremamente raro após desastres, ainda que a paranoia de que saques pudessem ocorrer fosse sempre irracionalmente alta.” Os especialistas se referiam a esses temores como “pânico de elite”.
A ensaísta norte-americana Rebecca Solnit escreveu um livro dedicado a esses episódios de banalidade do bem, de aumento da consciência cívica e do sentimento de pertencimento social que se seguem aos piores desastres. Na introdução de A Paradise Built in Hell (Um paraíso construído no inferno), ela escreve: “No rastro de um terremoto, de uma bomba que explode ou uma grande tempestade, a maioria das pessoas é altruísta, empenhada com um sentimento de urgência no cuidado delas mesmas e dos que estão à sua volta, sejam eles desconhecidos, vizinhos, amigos ou pessoas queridas. A imagem de um ser humano egoísta, em pânico ou regressivamente selvagem em momentos de desastre é pouco verdadeira. Décadas de meticulosa pesquisa sociológica sobre o comportamento humano em desastres […] demonstram isso.”
Não significa que tudo sempre corra bem. As manifestações de xenofobia, por exemplo, cresceram logo que o novo coronavírus se espalhou pelo planeta, como também havia acontecido em 1918. Há os dementes que dançam com caixões ou buzinam diante de hospitais. E líderes com sérios problemas cognitivos, morais e emocionais.
Uma fonte de problemas frequente, segundo Solnit, aparece no “pânico de elite” e na reação das autoridades que temem o comportamento dos mais pobres – “roubando e tossindo”, na imagem de Pedro Nava. Depois da devastação provocada pelo furacão Katrina em Nova Orleans, em 2005, diz a ensaísta, “centenas de pessoas morreram […] porque outras, incluindo a polícia, civis armados, altos funcionários do governo e a mídia, decidiram que a população de Nova Orleans era muito perigosa para que lhes fosse permitido deixar uma cidade alagada e contaminada, ou para que fossem resgatados, mesmo de hospitais”.
A exemplo do relato de Mooallem sobre o trabalho dos sociólogos no Alasca, o cientista político Gilberto Hochman, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, não encontrou registros de revolta social ou de saques no período mais agudo da gripe espanhola no Brasil. A pesquisadora Christiane de Souza, que estudou a epidemia na Bahia, tampouco se lembra de notícias de roubos de alimentos ou desordem. “Não me lembro de ter lido nada desse tipo no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, na Bahia. Eu não me recordo de ter visto esse problema em lugar nenhum do Brasil.”
Numa entrevista recente para a revista Wired sobre seu livro This is Chance!, Mooallem observou que, no caso da pandemia atual, a boa resposta social é mais difusa, “mais simples” e, ao mesmo tempo, “mais difícil de reconhecer”: “Nós podemos ajudar ficando em casa.” Embora a pandemia do coronavírus seja comparável a catástrofes abruptas na sua origem, ela é distinta de todas elas – inclusive da gripe de 1918 – porque acontece, de certa forma, em câmera lenta. A reconstrução – inciativas de proteção social e econômica – precisa começar antes que o pior tenha passado. E a passagem do tempo, afirma a epidemiologista Jennifer Horney, do Centro de Pesquisas de Desastres, pode ser um fator a complicar o grau de comprometimento cívico das pessoas.
Quando se contabilizam os mortos, em números absolutos, a gripe espanhola foi provavelmente a pior doença contagiosa da história. Mas outros surtos epidêmicos tiveram efeitos econômicos e sociais mais importantes e mais duradouros. Um dos episódios fundamentais da formação do mundo moderno – a conquista da América pelos europeus – não pode ser compreendido sem que se considere o impacto dos germes trazidos pelos brancos para o Novo Mundo.
“Na base da conquista está uma fratura demográfica”, afirma Manolo Florentino, professor aposentado de história da América na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Entre 1500 e 1620, houve uma redução de mais de 80% na população dos povos ameríndios, ele lembrou. “A conquista foi muito rápida. Em 1550, os espanhóis já haviam chegado ao Sul do Chile. O que sabemos é que seria impossível – em função da desproporção numérica – explicá-la em termos de superioridade militar. Você teria 50 milhões de indígenas contra 200 mil emigrados europeus no século XVI. Não dá.”
Foram os vírus e bactérias trazidos por marinheiros, militares e colonos – microrganismos pouco virulentos para os exploradores, mas letais nos corpos dos indígenas, desprovidos de defesas – que permitiram o domínio do Novo Mundo pelos europeus, do Alasca à Patagônia. “É verdade que a mineração”, na qual eram empregados os povos americanos, “matava muito”, observou o historiador. “Mas os sistemas de mineração dos espanhóis só foram montados a partir de 1570. E 50% da queda demográfica já havia acontecido antes disso. É uma prova muito concreta de que o efeito microbiano é espetacular, no mau sentido da palavra.”
Um dos primeiros historiadores a chamar atenção para o papel central das doenças infecciosas na conquista da América foi Alfred Crosby, o mesmo que já havia escrito sobre a gripe espanhola, resgatando-a de baixo dos tapetes da história, para onde tinha sido varrida. No seu livro Imperialismo Ecológico, dos anos 1980, Crosby inovou ao reunir pesquisas em biologia e ciências sociais para explicar o avanço europeu no mundo.
Precursores na criação de sociedades densas e hierarquizadas baseadas na agricultura – em oposição aos caçadores e coletores, mais igualitários, que viviam em grupos menores e sabiamente se serviam da abundância de recursos nas matas –, habitantes do Velho Mundo, na Europa e na Ásia, foram pioneiros também na convivência com uma grande variedade de microrganismos. Nas aglomerações em que viviam, “nessas concentrações de plantas e animais, produziam-se também grandes contingentes de predadores, alguns visíveis, como lagartas e mosquitos, e muitos micropredadores: fungos, bactérias e vírus”.
Segundo Crosby, os povos caçadores e coletores – como os indígenas das terras baixas norte-americanas – dispunham de poucos animais domesticados, ou simplesmente viviam sem esse tipo de companhia e propriedade. Em contrapartida, os povos europeus possuíam “rebanhos inteiros de gado, carneiros, cabras, porcos, cavalos e assim por diante”. E tinham por hábito viver “com suas criaturas, compartilhando com elas a mesma água, o mesmo ar e o mesmo ambiente, e, assim, muitas das mesmas doenças. O efeito sinergético da convivência íntima dessas diferentes espécies – humanos, quadrúpedes, aves e respectivos parasitas – foi a produção de novas doenças e de variações das antigas.”
Um convívio interespécies de fazer inveja a qualquer mercado de Wuhan, que acabou resultando vantajoso para os europeus e seus anticorpos depois que os portugueses e espanhóis embarcaram nas caravelas. “Pouquíssimas experiências são tão perigosas para a sobrevivência de um povo como a passagem do isolamento para a integração na comunidade internacional”, alertou o historiador norte-americano, antes de especificar a origem exata do perigo, “no caso uma comunidade que incluía marinheiros, soldados e colonos europeus”.
Seu colega sul-africano Howard Phillips, historiador da pandemia de 1918, afirma que o contato entre grupos distintos e a intensificação da interação humana são fatores comuns na história das grandes epidemias. “Isso é verdadeiro para toda doença infecciosa. O contato gera a possibilidade, o risco de infecções.” É assim agora, com o coronavírus e o intenso tráfego aéreo internacional. Foi assim na gripe espanhola, quando soldados do mundo todo se reuniram no teatro de batalhas da Europa. Também foi assim na Idade Média, na catástrofe demográfica do século xiv, provocada em grande medida pela peste negra – que chegou à Europa em ratos que atravessaram o Mediterrâneo nos navios que faziam o comércio com o Oriente.
“Existe hoje um consenso de que ao menos um terço dos europeus pereceu na primeira onda da peste, entre 1347 e 1353”, escreveu o historiador Bruce Campbell no livro The Great Transition: Climate, Disease and Society in the Late-Medieval World (A grande transição: Clima, doença e sociedade no mundo da Baixa Idade Média), lançado em 2016. Apesar do seu impacto, a peste negra costuma ocupar um papel acessório nas explicações sobre a crise econômica e demográfica do século XIV. No modelo tradicionalmente aceito, o que importa são sobretudo as interações entre variações populacionais, de um lado, e a capacidade de prover alimentos para um conjunto cada vez maior de pessoas, de outro. A ampliação da produção agrícola não teria sido capaz de acompanhar, no mesmo ritmo, um longo período de aumento da população na Idade Média, que culmina no século XIV. Com cada vez mais gente, e a quantidade de alimentos crescendo numa velocidade menor, houve redução no consumo de calorias per capita, o que, por sua vez, teria aumentado a vulnerabilidade da maior parte das pessoas a doenças. A peste só teria tido tamanho impacto porque, antes dela, as condições econômicas e sociais já eram precárias.
Explicações como essa, de tipo malthusiano, oferecem uma espécie de consolo contra o caos. Em vez de serem obra do acaso, do contato fortuito com alguma bactéria nova para determinada população, por exemplo, as tragédias humanas ficam contidas dentro da escala das sociedades e de suas interações econômicas; seguindo uma lógica que, mesmo que escape ao controle dos indivíduos, ao menos é previsível e mais facilmente compreensível.
De uns anos para cá, contudo, têm surgido explicações diferentes, menos deterministas, para esse tipo de fenômeno. Historiadores da Idade Média passaram a considerar a possibilidade de um maior grau de aleatoriedade no surgimento das doenças que afetavam animais e gente, no passado. Em vez de apenas resultado da dinâmica populacional e agrícola, as epidemias teriam uma relativa autonomia em relação aos processos sociais, trazendo de toda forma impactos duradouros sobre as taxas de mortalidade e a capacidade de produção das sociedades. Abre-se, assim, a possibilidade de uma via de mão dupla entre natureza e cultura.
Bruce Campbell é um dos principais defensores de uma interação maior entre fatores sociais e naturais – biológicos e ecológicos – para explicar a história da Idade Média, à maneira do que havia feito Alfred Crosby para a conquista da América. Campbell não nega as pressões demográficas e as dificuldades de produção agrícola, anteriores à peste, mas chama atenção para uma grande mudança climática ocorrida ainda antes, no final do século XIII.
Depois de duzentos anos de boas condições de temperatura e chuvas, coincidentes com o aumento populacional e a maior integração comercial com a Ásia via Rota da Seda, a Europa conheceu uma redução súbita e importante das temperaturas médias no continente e um aumento dos índices pluviométricos, seguidos por décadas de maior instabilidade climática. Essas alterações atmosféricas provocaram uma sequência de problemas nas safras de alimentos e facilitaram o surgimento de doenças nos rebanhos. Também foram responsáveis, segundo o historiador britânico, pelas condições ecológicas que permitiram à bactéria causadora da peste negra e aos seus vetores – pulgas, empoleiradas em ratos – se multiplicar e chegar à Europa.
Mudanças no sistema “socioecológico” medieval, diz Campbell, “desafiam qualquer relação simples de ‘causa e efeito’” e servem para lembrar que cada estágio da transição do século XIV “foi único, com resultados que eram raramente predeterminados e sempre sujeitos a imprevisibilidades”. “Não houve nada pré-ordenado em relação ao que aconteceu. Em qualquer uma das conjunturas, vários resultados diferentes eram possíveis dependendo das configurações precisas de forças humanas e ambientais. A contingência, portanto, importava, bem como imbricações fortuitas de processos humanos e naturais.”
Essa é uma forma menos tranquilizadora de se compreender a história. Nela, embora se possa explicar a maior probabilidade de doenças infecciosas num mundo cada vez mais conectado, por exemplo, não se pode prever quando a próxima mutação de vírus irá emergir, contaminar humanos e dar origem a uma pandemia – com sabe-se lá que efeitos sociais e econômicos.
“Nós, historiadores, não estamos de modo algum preparados para trabalhar com o acaso”, observou Manolo Florentino, antes de lembrar uma passagem do romance Moby Dick, que ele parafraseou. “Tem um certo momento em que o Melville fala o seguinte: Tudo bem, os acontecimentos são fruto da necessidade, do livre-arbítrio – mas o golpe final cabe ao acaso.”
[1] O título do livro é um jogo de palavras com o sobrenome da protagonista da história, a radialista Genie Chance, e o substantivo chance que, em inglês, significa “acaso”. Assim, o título pode ser entendido como “isso é obra do acaso” ou “aqui quem fala é a Chance”.
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