A vida de Eduardo Mufarej, do RenovaBR, é agitada: enriqueceu no mercado financeiro aos 30 anos, comprou e vendeu a Abril Educação e fracassou ao lado de Abilio Diniz na BRF antes de idealizar sua escola de políticos: “Senti que precisava fazer alguma coisa afinada com o Zeitgeist” FOTO: REPRODUÇÃO_RENOVABR
Escola sem partido
A fábrica de gestores públicos do RenovaBR
Luigi Mazza | Edição 161, Fevereiro 2020
“Os romanos inventaram um conceito muito importante para vocês, meus queridos alunos e alunas: o municipium. Essa era a expressão em latim para designar a cidade que era dotada de autoridade, ou seja, que podia ter uma lei própria. Dentro desse municipium, as pessoas tinham regras e até escolhiam alguém para o cargo de praefectus. Quem aqui será praefectus no ano que vem?” A pergunta do vereador Gabriel Azevedo, eleito por Belo Horizonte, em Minas, ecoou no teatro do Jockey Club do Rio de Janeiro, numa tarde de setembro de 2019, diante de quase trezentas pessoas. Jovens como o professor, várias delas levantaram as mãos e passaram a anunciar em voz alta o nome de suas cidades: Rio das Ostras, Vila Pavão, Serra, Paraíba do Sul, Niterói, Santa Maria de Jetibá, Cariacica, Sooretama…
O evento daquele sábado reunia fluminenses e capixabas que se inscreveram no curso do RenovaBR e pretendiam se lançar na política. Oriundos de 48 cidades, eles tinham acabado de se conhecer – o curso foi ministrado a distância ao longo de 2019, por meio de uma plataforma de vídeos. Havia no ambiente um clima de euforia colegial, e a maior parte dos estudantes vestia camisetas brancas, distribuídas na entrada do teatro, estampadas com a frase “primeira escola de políticos do Brasil”.
A lição daquela tarde começou na Grécia antiga, passeou pelo Império Romano e enveredou pelo feudalismo até chegar ao surgimento do Estado-Nação. Azevedo – formado em direito, publicidade e jornalismo – tratou um pouco de tudo: impostos, comércio, federalismo americano. Ressaltou a importância da democracia (“A ditadura foi terrível para as cidades”, disse, sobre 1964) e reservou os minutos finais para falar do que aparentemente mais gosta – planejamento urbano. Elogiou o livro Morte e Vida de Grandes Cidades, um clássico de Jane Jacobs sobre o tema, publicado em 1961, e projetou no telão uma imagem em preto e branco de Le Corbusier.
“Em 1933, esse camarada aí resolveu pensar as cidades. Quem é? Essa é fácil.” Antes que alguém identificasse a figura, o professor emendou: “Vocês vão ser prefeitos e vereadores, têm que saber isso tudo. Nós vamos disputar as eleições para fazer diferente de uma cambada que disputa só para ter poder. Já imaginaram um médico operar sem saber medicina? Um advogado defender pessoas sem saber direito? Então por que é que político pode se candidatar sem ser preparado?” Ao fundo, Le Corbusier os observava.
No primeiro ano de funcionamento, em 2018, a escola formou 133 estudantes, chamados de “líderes RenovaBR”. Desses, dezessete conseguiram conquistar uma vaga no Congresso ou em assembleias estaduais. Oito deles faziam parte do Novo. Na Câmara, esse partido elegeu oito deputados, dos quais quatro passaram pela escola. O Novo nasceu em 2015 empunhando as bandeiras da livre concorrência, do empreendedorismo e das liberdades individuais, e vangloriando-se de não ter políticos profissionais em seus quadros. Depois de 2018 acabou se tornando uma linha auxiliar do bolsonarismo. Participantes do RenovaBR também foram eleitos pela Rede, PSB, PDT, DEM, PSL e PPS (que depois virou Cidadania). Entre os nomes mais conhecidos estão o da deputada federal Tabata Amaral e do ex-ministro Marcelo Calero, titular da pasta de Cultura no governo Temer.
As eleições municipais deste ano fizeram com que a escola desse um salto. O curso RenovaBR Cidades, lançado no ano passado para formar futuros prefeitos e vereadores, teve 1,4 mil alunos –dez vezes mais que a turma anterior. Para atender a demanda, a preparação foi dividida em duas etapas: primeiro, os alunos tiveram aulas a distância; depois, passaram por uma peneira que selecionou os participantes da segunda etapa, entre fevereiro e maio. Foram aprovados 620 estudantes, que serão divididos em duas turmas – uma com 500 aspirantes a vereadores, outra com 120 pré-candidatos a praefectus.
A primeira fase do curso se deu entre agosto e novembro. As aulas eram gravadas, com exceção de algumas lives, e cada aluno recebeu um login para acompanhar o curso. Foram, ao todo, 96 horas de aulas, organizadas em três eixos: “comunicação política”, “desafios municipais” e “liderança”. Eram, em geral, vídeos curtos gravados sobre um fundo de chroma-key.
Antes de terem acesso aos vídeos, os futuros candidatos passaram por uma “régua de proficiência” – uma espécie de quiz online para medir o conhecimento sobre assuntos básicos. Ao final de cada semana de aula, os alunos precisavam responder a um questionário de múltipla escolha sobre o que tinham aprendido, como: “A Constituição brasileira que inaugurou o período republicano foi a…”
É extensa a relação de professores do RenovaBR: são 46, entre economistas, cientistas políticos, mentores de liderança, consultores de campanha, especialistas em financiamento coletivo. Logo na primeira semana de aula, o economista Marcos Lisboa, presidente do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), discorreu em um vídeo sobre as origens da crise econômica que se arrasta há anos no país e apontou possíveis soluções. Depois de enfatizar que “o dinheiro público acabou”, falou sobre as reformas que, segundo ele, são de uma obviedade ululante. “A reforma da Previdência não é nada polêmica. Ela foi polêmica nos anos 1990. O que é polêmico, estranho e surpreendente é o fato de que o país não a tenha feito vinte anos atrás.”
Mais adiante, Lisboa citou dois modelos de políticos a serem seguidos pelos alunos do Renova: o ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung – “é um caso célebre, ele tomou medidas difíceis e fez uma campanha baseada em ajuste fiscal” – e o governador tucano do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite – “um jovem que fez um trabalho fantástico e está conseguindo tocar uma agenda de reformas surpreendente”.
Fernando Schüler, também professor do Insper, deu uma aula ao vivo sobre democracia e redes sociais. Uma aluna lhe perguntou sobre as qualidades que se espera de um candidato do Renova. A primeira delas, disse Schüler, é o “senso de realidade”. “É preciso encarar a realidade e ter responsabilidade fiscal. É isso que eu esperaria de um político formado no RenovaBR.”
No meio do caminho, entre uma e outra lição, apresentaram-se especialistas em mindset e mindfulness, conceitos relacionados à inteligência emocional que costumam fazer sucesso em ambientes corporativos. A busca pela “liderança pessoal” é uma das tônicas do curso. Na primeira turma, em 2018, cada aluno teve à disposição um coach particular, cuja função era ajudá-lo no quesito motivação. Foi uma parceria do Renova com a Sociedade Brasileira de Coaching. Como o número de alunos se multiplicou em 2019, os coaches foram deixados de lado.
Em uma das aulas, foi exibida uma entrevista com o médico sul-africano Daniel Friedland, feita por Izabella Mattar, executiva do banco XP que até o início do ano passado era diretora do Renova. Autor de livros de sucesso, Friedland mescla ideias sobre liderança com dados da neurociência. Na conversa, gravada em vídeo, ele explicou a relação entre o cérebro dos políticos e os diferentes tipos de governo. Os líderes opressores, segundo ele, praticam a “política do medo” porque têm circuitos de segurança mais fortes no cérebro. Daí o surgimento de ditaduras. Os bons líderes, por sua vez, são generosos porque costumam operar em alta performance cerebral. Os candidatos também receberam dicas práticas. Uma das aulas foi dedicada a explicar como gerir as redes sociais e conter crises de imagem na internet. O professor foi o apresentador Tiago Leifert, que contou ter sofrido mais de uma vez com a repercussão negativa de suas declarações. Um desses episódios aconteceu em 2018, quando, numa coluna para a revista GQ, Leifert afirmou que os eventos esportivos não são ambientes adequados para manifestações políticas. “Cara, eu apanhei muito. Todos os jornalistas do mundo me bateram.” Ele fez uma série de recomendações aos futuros políticos, principalmente esta: pensar como o inimigo. “Pense na manchete que vão extrair do seu post”, disse.
Como é hábito do curso, poucos dias depois de ir ao ar, a aula de Leifert foi condensada em um resumo telegráfico. A fala do apresentador foi esquematizada em um texto repleto de setas, grifos e exclamações. “Nas redes sociais, muitos tentam destruir reputações!” e “Cuidado para não se manifestar antes da hora!” eram alguns dos recados.
A grade curricular foi elaborada por um grupo de trabalho que juntou membros do RenovaBR e algumas figuras escolhidas a dedo. Entre elas, três políticos: a ex-senadora Ana Amélia (PP-RS); o ex-prefeito de Belo Horizonte Marcio Lacerda (sem partido); e o ex-ministro Alexandre Baldy (PP-GO) que comandou a pasta das Cidades no governo Temer. A equipe se reuniu algumas vezes em 2019 na sede da entidade, um pequeno escritório com jeito de startup, onde trabalham vinte funcionários, no Jardim Paulista, em São Paulo.
Os nomes do grupo de trabalho foram definidos pelo Conselho Consultivo do Renova – que reúne onze pessoas, entre elas Paulo Hartung e a empresária Cristina Zingaretti, uma das fundadoras do Nubank. Entre os conselheiros, destaca-se o apresentador Luciano Huck, apoiador de primeira hora da organização. Coube a essas pessoas definir a estrutura do RenovaBR Cidades.
Ana Amélia, que em 2018 foi vice na chapa de Geraldo Alckmin à Presidência, hoje é secretária extraordinária de Eduardo Leite, no Rio Grande do Sul. Lacerda está longe da política desde a última eleição, quando teve sua candidatura ao governo de Minas Gerais barrada pelo próprio partido, o PSB, por causa de um acordo eleitoral com o PT. E Baldy, importante aliado do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, hoje é secretário de Transportes do tucano João Doria, governador de São Paulo.
“São pessoas que têm profundo e notório conhecimento das questões municipais”, afirmou Gabriel Azevedo, responsável pelo primeiro esboço do que seria a ementa do RenovaBR Cidades. “Esses colaboradores opinaram sobre a grade, acompanharam o curso e agora estão olhando os resultados, que foram ótimos. Estamos surpresos com tudo.”
Segundo ele, o objetivo das aulas pode ser resumido em três pontos: filtrar os candidatos que estão realmente motivados a seguir em frente, ensinar as artimanhas do jogo eleitoral e instruir os alunos sobre “políticas públicas baseadas em evidências” – expressão que se tornou uma espécie de bordão do RenovaBR. “É importante a gente ver o que está dando certo hoje no Brasil”, explicou ele, que também costuma exigir dos alunos algumas referências culturais. “É crucial a pessoa entender o que é um Haussmann ou um Cerdà.” Fazia alusão às realizações de Georges-Eugène Haussmann e Ildefons Cerdà, responsáveis por grandes projetos de modernização de Paris e Barcelona no século XIX.
Diretor de formação do RenovaBR, Azevedo organiza o curso, ministra várias aulas – entre as quais uma que ele chama de “realpolitik” – e se dedica às etapas do planejamento de uma candidatura. Pelo jeito descontraído e talvez por ser mais jovem que a média dos professores – tem 33 anos – é muito estimado pelos alunos. Foi contratado pelo Renova em 2017 e concilia o trabalho com o mandato de vereador em Belo Horizonte, para o qual foi eleito com cerca de 10 mil votos. Na época, ele concorreu pelo nanico PHS, ao mesmo tempo em que coordenava a campanha de Alexandre Kalil, que se elegeu prefeito de Belo Horizonte.
Antes de ser professor ou vereador, Azevedo fez carreira no PSDB, legenda à qual foi filiado por quase dez anos. Ganhou alguma fama depois de liderar a Turma do Chapéu, um grupo de estudantes belo-horizontinos que militava por candidatos tucanos na internet. Em 2010, a turma produziu vídeos de humor para as campanhas de Antônio Anastasia, que se elegeu governador, e Aécio Neves, que virou senador naquele ano.
Quatro anos depois, Azevedo se engajou na campanha de Aécio à Presidência. Já não era mais filiado ao PSDB, mas mantinha amizade com Andrea Neves, irmã do candidato. Com a Turma do Chapéu, criou páginas em defesa do tucano. Aos poucos, por intermédio de amigos em comum, Azevedo acabou se aproximando de Fernando Henrique Cardoso. No final de 2010, o ex-presidente estava às voltas com o site Observador Político, que ele pretendia lançar para promover debates. Como queria um projeto atrativo à juventude, FHC chamou Azevedo para ajudar na empreitada. O jovem tucano topou e fez alguns vídeos para o canal de YouTube do site.
Foi no Observador Político que Azevedo conheceu Eduardo Mufarej, um empresário paulista então com 33 anos, muito bem-sucedido no mercado financeiro. Também ele fora convidado por FHC para participar do site e vinha buscando uma forma de se envolver com política. Cogitava se filiar ao PSDB, mas acabou desistindo. “Fui ao diretório do partido em São Paulo e fiquei assustado com a falta de acolhimento, de profissionalismo”, contou.
Com a bênção de FHC, Mufarej e Azevedo se tornaram amigos. Os dois descobriram ter a mesma visão sobre a política: acham que os conceitos de “esquerda” e “direita” já não fazem sentido e que os partidos no Brasil se tornaram instituições velhas, indesejáveis, que repelem as novas forças da política.
Movido por essa insatisfação, Azevedo anunciou que pretendia criar uma escola para políticos em Belo Horizonte. A intenção era ajudar jovens que pensavam em se candidatar, mas queriam evitar a politicagem. “Hoje quem quer ser político não sabe o que fazer. Vai entrar para um partido?”, perguntou, em um vídeo gravado no apartamento de FHC em São Paulo e usado em sua campanha, em 2016. O ex-presidente endossou a iniciativa, mas ela nunca saiu do papel.
Por sorte, seu novo amigo Mufarej tinha ideias parecidas. Na primeira metade de 2017, o empresário telefonou para Azevedo – já eleito vereador – e o convidou para participar de um projeto que estava começando a tocar. O plano era justamente criar uma organização, financiada por doadores privados, que treinasse candidatos novatos para as eleições de 2018. Seria uma escola suprapartidária, destinada a pessoas de todo o Brasil. Alguns empresários de peso já tinham embarcado na ideia.
“O Edu nunca tinha lidado com política antes, mas disse que queria colaborar com o Brasil. Acho que ele sentiu um chamado”, disse Azevedo. Dali a poucos meses, em outubro de 2017, foi lançado o RenovaBR.
Nascido em uma família paulistana de classe média alta e neto de um imigrante libanês que chegou ao Brasil nos anos 1920, Mufarej fez fortuna ainda jovem. Tem a aparência e os modos de um “Faria Limer” – barba sempre aparada, calça jeans com camisa social, sapatênis e um vasto repertório de expressões em inglês. Ele era um dos “meninos da Tarpon”, uma gestora de investimentos criada em 2002 e que, no seu auge, administrou cerca de 10 bilhões de reais. A empresa foi fundada por um amigo dele, José Carlos Reis de Magalhães Neto, o Zeca, ao qual se juntara, em seguida, outro conhecido, Pedro Faria. Em 2003, depois de ter feito carreira como executivo do HSBC, Mufarej decidiu seguir seus camaradas e virou sócio da gestora.
Os três se conheciam desde o final dos anos 1980, quando estudaram em turmas diferentes do Colégio Santo Américo, escola tradicional da elite de São Paulo. Seguiram depois caminhos parecidos. Todos se formaram em administração de empresas – Mufarej obteve o diploma na PUC-SP, e os demais, na Fundação Getulio Vargas. Estavam na casa dos 30 anos quando começaram a fazer dinheiro de verdade.
A história da Tarpon inflamava a imaginação do mercado financeiro: criada por jovens, expandiu-se numa velocidade extraordinária, à base de apostas arriscadas. Em 2007, abriu capital na Bolsa de Valores, estratégia incomum para uma gestora de investimentos. Sua especialidade era comprar ações de outras companhias e, com isso, ganhar espaço a ponto de influir na gestão delas. Foi assim que Mufarej e seus dois sócios assumiram o controle acionário de vários grupos empresariais, como Cremer e Ômega Energia. Seu portfólio de ações também incluía a rede de supermercados Pão de Açúcar e grifes, como a Arezzo.
A preferência por peixes grandes era uma marca do grupo. Não por acaso, Tarpon é o nome em inglês do Megalops atlanticus, um peixe de águas tropicais – conhecido no Brasil como pirapema ou camurupim – que pode chegar a 2 metros de comprimento e pesar mais de 100 kg. Não é muito usado na culinária, mas, pelo porte avantajado e a disposição de lutar bravamente contra eventuais pescadores, costuma ser exibido como troféu pelos adeptos da pesca recreativa.
A Tarpon cresceu a ponto de ocupar um andar inteiro de um prédio na Avenida Faria Lima, em São Paulo, e ter uma filial em Nova York. O escritório americano ficava na Park Avenue, a poucos quarteirões do Central Park, e durante dois anos, entre 2012 e 2013, foi comandado por Mufarej, cuja missão era atrair investidores estrangeiros.
O empresário retornou de vez ao Brasil em 2014, pouco depois de ter assumido como CEO da Tarpon. No ano seguinte, a gestora comprou o braço de educação do grupo Abril por 1,7 bilhão de reais, em valores atualizados. O que era até então a Abril Educação se transformou na Somos Educação, a maior empresa de ensino básico do país. Mufarej foi indicado como diretor-presidente da nova companhia. Só deixou a função em 2017, em meio a uma onda de reveses que atingiu em cheio a Tarpon e seus sócios.
No início da última década, os jovens da Tarpon deram início a uma estratégia agressiva para tomar o controle da BRF (Brasil Foods), na época a maior empresa de alimentos do Brasil, fruto da fusão entre Sadia e Perdigão. O grupo tinha o mesmo objetivo de sempre: obter uma fatia majoritária das ações da empresa e, com isso, nomear parte da diretoria. Queria indicar como presidente do Conselho de Administração da BRF o empresário Abilio Diniz, que se tornou um dos bilionários do país ao investir no varejo. Ele tinha proximidade com Mufarej e seus amigos desde a época em que a Tarpon fora acionista do Grupo Pão de Açúcar. O plano da Tarpon e de Diniz era assumir as rédeas da BRF, modernizar sua gestão e multiplicar os lucros.
A primeira parte do plano funcionou. A Tarpon passou a deter 11% das ações do grupo, nas quais investiu 60% de seu capital. Em 2013, Diniz se tornou presidente do Conselho da BRF. Dois anos depois, Pedro Faria, um dos sócios da gestora, assumiu a presidência da empresa.
Os novos diretores anunciaram a extinção de cargos na BRF e a implantação de “choques de gestão”, mas a multiplicação dos lucros nunca aconteceu. Aos poucos, a empresa perdeu espaço para a JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. Em 2016, quando a recessão se agravava no país, a BRF teve o primeiro prejuízo de sua história. O resultado abalou a imagem vitoriosa de Diniz e da Tarpon. “Eram rapazes ousados, que tinham histórico e estilo capazes de captar muito investimento. Mas queriam fazer da BRF uma Ambev do frango, e simplesmente não havia condição para isso”, sintetizou um empresário ligado ao mercado financeiro. Ele lembrou que o mercado de produtos avícolas, além de ser mais competitivo, vive à mercê das commodities – em especial o milho, usado na ração dos frangos. E a BRF não teve sorte: naquele ano, o Cerrado passou por um longo período de seca, o que fez o preço da saca de milho subir 50% na Bolsa de Valores.
O pior ainda não havia chegado. Em março de 2017, eclodiu a Operação Carne Fraca, que investigava a venda de carne adulterada, sem fiscalização, e outras fraudes contábeis por parte das empresas do ramo, entre elas a JBS e a BRF.
Na época, a operação foi alardeada como a maior já realizada pela Polícia Federal – mais de mil agentes cumpriram mandados de prisão e de busca e apreensão em vários estados quase simultaneamente. A BRF teve uma perda instantânea de 2,5 bilhões em valor de mercado e nunca mais se recuperou. Os prejuízos foram ainda maiores nos dois anos seguintes.
Em 2018, a PF deflagrou a terceira fase da operação, chamada de Trapaça. Os policiais vasculharam a sede da Tarpon, em São Paulo, e o sócio Pedro Faria foi preso por alguns dias. Junto com Diniz e Zeca Magalhães – o outro sócio da gestora –, ele foi indiciado por organização criminosa, estelionato, falsidade ideológica e crime contra a saúde pública.
Segundo o inquérito, os três empresários tinham conhecimento da existência da carne adulterada em seus frigoríficos e tentaram ocultar o problema ainda em 2015, quando a China decidiu suspender a importação de alguns lotes da BRF por suspeita de contágio químico. A prova usada pela polícia foram mensagens trocadas por eles num grupo de WhatsApp. Em uma das conversas anexadas ao processo, Faria aparece lamentando o vazamento de informações por parte do Ministério da Agricultura e conta que teve uma conversa “contundente” com a então ministra Kátia Abreu. Em outro trecho destacado pela polícia, Diniz se mostra preocupado com a repercussão do caso na imprensa e afirma que “enquanto pudermos não alimentar mais, é melhor”. O inquérito ainda está sob análise do Ministério Público Federal.
A Operação Carne Fraca foi um golpe pesado na Tarpon. No terceiro trimestre de 2018, diante do revés da BRF, investidores que tinham deixado seu dinheiro sob os cuidados da gestora pediram resgates que, juntos, chegavam a quase 6 bilhões de reais. O valor de mercado da operadora despencou para um décimo do que era antes da tormenta. Tudo isso fez com que, no apagar das luzes de 2018, por meio de um anúncio discreto na imprensa, no dia 28 de dezembro, a Tarpon anunciasse que estava fechando seu capital na Bolsa de Valores.
Dos três sócios-fundadores, só Eduardo Mufarej escapou ileso da operação. Mas uma das primeiras medidas tomadas pela Tarpon para se recuperar do baque foi a venda da Somos Educação, da qual ele era presidente. As negociações começaram em 2017 e se arrastaram por um ano. Finalmente, a Somos foi vendida por 4,6 bilhões de reais para a Kroton, o maior grupo de educação do mundo. E Mufarej teve que decidir sobre o que faria da vida dali em diante.
“Eu já sabia que a gente estava caminhando para a venda da companhia, então comecei a pensar: o que vou fazer agora? Onde é que vai estar o meu próximo sentido? E a minha conclusão foi: eu preciso fazer alguma coisa que esteja afinada com o Zeitgeist, com a necessidade do país neste momento”, contou Mufarej, que conversou com a piauí em um café no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, em novembro último. Enquanto matutava ideias sobre o Brasil, o empresário se envolveu em outros projetos. Tornou-se presidente da Confederação Brasileira de Rugby, esporte que praticou durante a adolescência e passou a patrocinar.
A política já estava no seu radar havia algum tempo. Em 2010, Mufarej fez uma doação de 5 mil reais ao então candidato a deputado estadual Ricardo Salles, do DEM de São Paulo, que não se elegeu. O hoje ministro do Meio Ambiente era, naquela época, uma liderança do Movimento Endireita Brasil, grupo conservador de oposição ao PT e que defendia a renovação da direita. Nas eleições seguintes, o empresário apoiou com entusiasmo a candidatura de Aécio Neves, a quem doou 50 mil reais durante a campanha. Depois que Aécio perdeu a disputa, Mufarej se juntou aos milhares de pessoas que foram à Avenida Paulista de verde e amarelo para pedir a cabeça de Dilma Rousseff. Em 2015, filiou-se ao recém-criado partido Novo.
Mufarej começou a se cercar de pessoas que tinham ideias semelhantes aos suas e montou uma rede de contatos para conversar sobre política. Luciano Huck, o cientista político Humberto Laudares e vários colegas de mercado financeiro, como os irmãos Jean-Marc e Patrice Etlin, estavam no grupo. O empresário então se aproximou dos movimentos de formação política que começavam a proliferar. Em 2016, participou da fundação do Agora!, que surgiu com o intuito de preparar e lançar candidatos, mas aos poucos mudou de rumo e se tornou um polo de discussão de políticas públicas. Huck aderiu mais tarde ao movimento e logo se tornou sua principal liderança.
Além do Agora!, Mufarej buscou se engajar na Raps (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade), criada em 2012 pelo empresário Guilherme Leal, um dos donos da Natura, candidato a vice-presidente em 2010 na chapa de Marina Silva. Trata-se de uma fundação suprapartidária que forma lideranças públicas – novatas ou não –, com uma rede de filiados que vai de políticos a grandes empresários. A inspiração para esse projeto foi uma iniciativa surgida em 2002 na Argentina, a Rap (Rede de Ação Política).
Em seguida, Mufarej se tornou conselheiro do Centro de Liderança Pública (CLP), uma organização criada em 2008 pelo cientista político Luiz Felipe D’Avila – por sua vez, uma versão brasileira do Center for Public Leadership, da Universidade Harvard. A CLP oferece cursos pagos sobre gestão pública, voltados tanto para políticos quanto para servidores. Foi dentro dessa organização que aconteceram as primeiras conversas sobre o RenovaBR.
Embora tenha pegado o bonde andando, Mufarej percebeu que havia espaço para um projeto maior e mais fácil de ser explicado ao grande público – uma escola de formação de políticos voltada à renovação e que treinasse apenas candidatos novatos. O primeiro esboço do que seria o RenovaBR tomou forma em junho de 2017.
Naquele mês, o empresário viajou à Itália com a mulher e as três filhas para a festa de aniversário de Alex Behring, nome conhecido do mercado financeiro. Behring é um dos cinco sócios da 3G Capital, gestora de investimentos encabeçada por Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira – o trio de bilionários que costuma liderar a lista da Forbes de pessoas mais ricas do Brasil.
No dia anterior à festa, Behring recebeu cerca de oitenta convidados para um jantar de boas-vindas num restaurante à beira-mar. O encontro se estendeu pela noite, e um grupo mais animado emendou o jantar com alguns drinques no bar anexo ao restaurante. Foi ali que Mufarej fez amizade com Wolff Klabin, um dos herdeiros da Klabin, a maior fabricante de papéis do Brasil. São empresários de idade e perfil parecidos: assim como Mufarej, Wolff trabalha no mercado financeiro e morou alguns anos nos Estados Unidos. Enquanto Mufarej, 42 anos, é praticante amador de rúgbi, Wolff, 46 anos, joga polo, uma tradição de família – seu pai, Armando Klabin, foi reconhecido pelo Guinness Book em 2017 como o jogador de polo mais velho em atividade no mundo, aos 85 anos e 149 dias de vida.
À mesa do bar, os dois empresários conversaram longamente sobre política. “A gente ficava pensando: como vamos ajudar a mudar nosso país?”, recordou Wolff, que tem jeitão de surfista e um forte sotaque carioca. “Nós devemos ter passado umas três horas conversando, enquanto todo mundo curtia a festa. Só lembro que, quando acordei no dia seguinte, o Edu tinha enviado um slide para o meu e-mail dizendo o que ele queria fazer.”
“Eu montei a apresentação no meio da madrugada. Sabe quando uma coisa simplesmente nasce?”, explicou Mufarej. Aquela foi a primeira vez que o empresário pôs suas ideias no papel. Ele costuma dizer que o apoio de Wolff foi fundamental para que levasse adiante o RenovaBR. “Esse era o endorsement de que eu precisava.”
Quando a escola foi lançada, no final de 2017, seus criadores recorreram a uma analogia simples para explicá-la ao público: a campanha eleitoral era uma montanha, e o Renova pretendia oferecer o mínimo de equipamento necessário aos candidatos que quisessem escalá-la. A ideia era não apenas treinar os candidatos por meio de aulas, mas também auxiliá-los financeiramente no início da trajetória – e, assim, mitigar a diferença entre novatos e políticos já consolidados.
Tão logo foi anunciado, o Renova ganhou o apelido de “fundo eleitoral do PIB”. Além de Wolff Klabin, Mufarej havia recrutado o apoio de alguns grandes empresários. Luciano Huck funcionou como garoto-propaganda da escola, que ganhou outros incentivadores, como Abilio Diniz, o investidor Daniel Goldberg, o publicitário Nizan Guanaes e o economista Armínio Fraga.
Com a ajuda direta e indireta desses empresários, o Renova arrecadou mais de 18 milhões de reais em doações em 2018. Mufarej estima ter desembolsado 1 milhão de sua conta pessoal. Até o fim daquele ano, a escola contava com quinhentos doadores, número que desde então triplicou. Os valores de cada doação não são divulgados – mas, segundo a entidade, ninguém doou mais do que 5% do valor total arrecadado, o que equivaleria a quase 1 milhão de reais.
A maior parte do dinheiro foi destinada às bolsas de estudo – que este ano foram abolidas. Os 133 estudantes da primeira turma receberam, cada um, de 5 mil a 12 mil reais por mês – um esquema de fellowship, como definiu Mufarej. O valor foi pago entre janeiro e junho de 2018, variando de acordo com as necessidades dos candidatos. O propósito da escola ao oferecer esse dinheiro era permitir que os candidatos se dedicassem exclusivamente às suas campanhas, de preferência sem dividir o tempo com um emprego.
Essa foi uma parte importante do equipamento necessário para escalar a montanha. A outra, mais robusta, veio na forma de financiamento de campanhas. O RenovaBR provou ser uma espécie de curadoria, que orientava quem quisesse doar dinheiro para candidatos. “Ser um líder Renova te abre muitas portas, você é chamado para mais eventos. Os doadores até perguntam espontaneamente se você é da escola”, afirmou Matheus Hector Garcia, 24 anos, um dos alunos do curso de política municipal. Formado em economia e filiado ao Novo, ele pretende se lançar vereador por São Paulo nas eleições deste ano. Em 2018, foi um dos coordenadores da campanha de Daniel José (Novo-SP), aluno Renova que se elegeu deputado estadual com o apoio de empresários da escola, que lhe doaram 200 mil reais. Foi o sexto mais votado em todo o estado. Na Assembleia Legislativa, ganhou alguma projeção defendendo a cobrança de mensalidade nas universidades públicas de São Paulo.
Só os integrantes do Conselho Consultivo do RenovaBR doaram 2,1 milhões de reais para candidatos que passaram pela entidade em 2018. O sócio-fundador da Tarpon Zeca Magalhães desembolsou 1 milhão. Levando em conta as doações do próprio Mufarej e de outros executivos que gravitam em torno da escola, mas sem vínculo oficial com ela, o valor das doações para campanhas eleitorais supera 4 milhões de reais. Abilio Diniz, por exemplo, doou 500 mil reais, distribuídos entre vários candidatos.
O respaldo financeiro foi crucial para muitos alunos da primeira turma que conseguiram se eleger. O deputado federal Vinícius Poit (Novo-SP) teve quase um terço da sua campanha financiada por empresários ligados ao RenovaBR. O mesmo aconteceu com o deputado Paulo Ganime (Novo-RJ). Na Câmara, os dois têm afinidade total com o governo Bolsonaro, mesmo em temas não relacionados à economia. Endossaram o projeto que estendeu a posse de armas para toda a propriedade rural – antes estava restrita à sede da propriedade – e se opuseram à convocação do ministro da Educação Abraham Weintraub, em maio do ano passado. Foram vitoriosos no primeiro projeto e derrotados no segundo.
No caso da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP), as doações de pessoas ligadas ao RenovaBR responderam por mais de 20% do que sua campanha arrecadou. “É claro que ter se formado no Renova, para algumas pessoas, é um selo de qualidade. Essa pessoa sentou a bundinha na cadeira e fez aula, enquanto vários outros não fizeram”, afirmou a deputada, que conheceu seus principais doadores em jantares organizados durante a campanha. Boa parte desses eventos foi promovida por apoiadores do RenovaBR. Ao todo, a parlamentar arrecadou 1,3 milhão de reais.
“O Renova é um selo que ajuda as pessoas que querem doar, e que infelizmente no Brasil são pouquíssimas”, diz Mufarej. Ele nega, no entanto, que a escola funcione como curadoria de candidatos. “O que acaba acontecendo é que as pessoas nos solicitam: ‘Edu, eu gostaria de um candidato de perfil liberal, quais do Renova têm esse perfil?’ Aí eu mostro quais têm, e as pessoas fazem as abordagens para doar. No fim do dia, elas escolhem seus candidatos por ideologia ou alinhamento filosófico.”
Hoje, o RenovaBR é a maior escola de formação de políticos no Brasil. Há uma disparidade de tamanho em relação a outros grupos. A Raps, de Guilherme Leal, por exemplo, recebeu em 2019 pouco mais de 3 mil inscrições para seu curso preparatório – e aprovou 64 pessoas. O Renova recebeu 31 mil inscrições, filtrando a partir daí os 1,4 mil alunos que puderam assistir às aulas online no ano passado. O curso é gratuito, mas os alunos tiveram que pagar um depósito de confiança de 200 reais. Ao final do ano, eles puderam pedir o dinheiro de volta.
Na bateria de exames a que se submetem para serem aprovados, os alunos enfrentam o chamado “teste de democracia”. O objetivo é barrar jovens com inclinações autoritárias. Cada um deles é apresentado a algumas proposições e deve dizer se concorda ou não com elas. Um pretendente que, por exemplo, defenda a pena de morte está eliminado do curso.
O teste também busca expelir pessoas dos extremos do espectro político – tanto à esquerda como à direita. Segundo Mufarej, “se uma pessoa defende que a Venezuela é uma democracia ou que precisamos de intervenção militar, ela não vai encontrar eco aqui”. O coordenador do processo seletivo, Rodrigo Cobra, um jovem administrador público formado em Lavras (MG), é mais eufemístico ao tratar do tema: “A gente fez isso para verificar o quanto o aluno está aberto ao diálogo.”
Embora trate a democracia como um valor inegociável, o RenovaBR aprovou, tanto em 2018 quanto em 2019, a participação de alunos filiados ao PSL – que era, até pouco tempo, o partido de Bolsonaro. O presidente defende abertamente, há décadas, o legado da ditadura militar, além de colecionar declarações e atitudes antidemocráticas, em graus variados.
PSL tudo bem? O RenovaBR se atrapalha diante dessa questão. “O partido não é um item determinante na nossa avaliação”, afirmou Cobra. “Somos uma escola de formação. Nosso objetivo é escolher as pessoas, não importa de qual partido ou visão ideológica, e ensinar a elas que existem problemas públicos, que eles precisam ser resolvidos e que há formas de se fazer isso.”
Curiosamente, a tolerância do RenovaBR em relação ao PSL não costuma ser recíproca. Para o circuito do bolsonarismo mais fanático, a escola não passa de um celeiro de esquerdistas camuflados. O estridente Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, já disse nas redes sociais que o Renova é um projeto de “globalistas, progressistas e comunistas envergonhados”. Mais recentemente, o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) dedicou à escola um de seus tuítes enigmáticos: “Novo = Livres = mbl = RenovaBR = Luciano Huck… e por aí vai! Tirem suas conclusões!”
A paranoia com relação ao comunismo não se estende a todo o governo. Não por acaso, em outubro de 2018, ainda antes do segundo turno da eleição, Mufarej passou a ser cotado como possível ministro da Educação de Bolsonaro. Era o nome favorito de Paulo Guedes. Os dois foram acionistas da Abril Educação na mesma época – Mufarej participava por meio da Tarpon, e Guedes pela br Investimentos, gestora de recursos fundada por ele em 2007. Outros grandes empresários da educação privada, como Daniel Castanho, presidente do conselho administrativo da Ânima, endossavam a indicação.
Segundo Mufarej, não houve convite formal do então candidato. “Recebi várias sondagens do Paulo Guedes e refleti bastante, até porque ele é uma pessoa de pensamento bom, consistente. Mas não era o momento.” O empresário disse que não correu atrás do ministério porque sentiu que precisava se dedicar ao RenovaBR. “A escola tinha só um ano de existência e podia não prosperar se não fosse levada adiante. Ir para o governo seria um showstopper para esse projeto.”
Mufarej, assim como Guedes, é adepto do liberalismo à brasileira: uma convicção religiosa nos princípios do livre mercado, aliada a uma postura flexível, ou indiferente, no que tange às liberdades políticas e aos direitos civis das minorias sociais. Quando perguntei a ele se não via contradição entre as bandeiras do RenovaBR e seu flerte com Bolsonaro, a resposta foi evasiva. “Eu não tinha nem condição de julgar o governo. Isso foi em outubro, as coisas não estavam claras”, afirmou Mufarej. Indaguei se àquela altura Bolsonaro já não havia deixado suas posições suficientemente claras. Ele recorreu a uma explicação vaga para amenizar o que havia dito. “Não é que não soubesse. Eu sequer cheguei a pensar nisso. A minha maior preocupação era cuidar do Renova, e ali isso ficou claro para mim.”
O RenovaBR não gosta de ser chamado de movimento – diz ser apenas uma escola de formação, sem ideologia. Sua origem, no entanto, está ligada à crise da representação política, da qual os partidos são alvos preferenciais. Não foi à toa que nos últimos anos vários partidos mudaram de nome, tentando se revestir de uma aparência “mais moderna” ou “menos partidária”. É o caso de Podemos (ex-PTN), Cidadania (ex-PPS), Avante (ex-PTdoB), Patriota (ex-PEN) e Democratas (ex-PFL), entre outros. Tais nomes, formados de uma só palavra, os confundem facilmente com os movimentos cívicos que surgiram nos últimos anos: Acredito, Agora!, Livres e Nós, além de outros menos expressivos.
A palavra “partido” entrou em desgraça há algum tempo. Pesquisas Datafolha divulgadas entre 2017 e 2018 mostraram que, a cada dez brasileiros, sete não confiavam em partidos políticos ou no Congresso – as duas instituições mais desacreditadas do país. Em 2012, esse índice era menor: cinco a cada dez pessoas. Não é de espantar que a defesa de um ideário de renovação política tenha conseguido prosperar na eleição.
“Os movimentos de renovação encontraram um mercado, é fato. Captaram o espírito da época”, afirmou o cientista político Jairo Nicolau, estudioso do sistema partidário brasileiro, cujo livro mais recente, de 2017, se chama justamente Representantes de Quem? “Por outro lado”, continuou Nicolau, “não há dúvidas de que a maior renovação do Congresso, nessa legislatura, aconteceu no PSL. Todo mundo fala da Tabata Amaral, mas para cada Tabata apareceram vários deputados do PSL que nunca tinham sequer disputado uma eleição.”
A má fama da política e dos partidos não é um dado inteiramente novo, segundo Nicolau. A novidade é a forma tecnocrática que essa retórica assumiu nos últimos anos, em parte por iniciativa dos movimentos de renovação. “Isso é o que eu chamo de política como startup. Levando esse discurso ao extremo, a gente pode substituir a eleição por concurso público. É só testar os conhecimentos gerais sobre a cidade, quem sabe mais de orçamento, quem conhece mais a história do município. Isso é bacana, mas política não se faz assim em lugar nenhum do mundo.”
Para Mufarej, o RenovaBR não seria antagônico, mas complementar aos partidos. “Como os partidos não fazem o trabalho que deveriam fazer, investindo em quadros e usando em suas fundações, o Renova é quem está fazendo esse papel”, afirmou. O fato é que na escola os partidos costumam ser tratados com os dois pés atrás. A necessidade de se filiar a uma legenda política para concorrer a algum cargo é vista como um fardo.
No encontro promovido pela escola no Rio de Janeiro, em setembro do ano passado, alguns parlamentares que foram alunos em 2018 estavam presentes. Participaram de um painel em que recebiam perguntas dos novos estudantes. A certa altura, alguém indagou ao deputado estadual Renan Ferreirinha (PSB-RJ) qual havia sido sua maior dificuldade na política. “A questão partidária foi a mais difícil. Partido político é uma instituição que tem de ser repensada. Não importa o nome: é chato, é velho, tem cacique que manda, não é representativo, não é democrático. Eu, como cientista político, era contra candidaturas independentes, mas cada vez mais sou a favor”, respondeu o socialista.
Ao mesmo tempo, como já se mostraram capazes de sucesso eleitoral, candidatos formados pelo RenovaBR têm ganhado espaço nas legendas tradicionais. Em dezembro, alunos da escola organizaram um encontro com partidos políticos num hotel do bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo. O objetivo era que estudantes ainda indecisos sobre suas filiações pudessem conhecer melhor as propostas de cada legenda. Montou-se uma pequena bancada para cada partido que topou participar – Novo, Podemos, Cidadania, Rede, além de PSDB, MDB, PSD, PSC e PSB. O clima era de uma feira de recrutamento. Os alunos circulavam pelo salão, passando de mesa em mesa, e acumulavam nas mãos os folhetos que iam recebendo.
“Eu queria sair pelo Novo, mas não vai ter chapa na minha cidade”, lamentou Marcio Antoni Santana, defensor público de 41 anos, pré-candidato a vereador em Carapicuíba, cidade da Região Metropolitana de São Paulo. “Conversei com o Cidadania, e eles garantem a possibilidade de uma candidatura avulsa. É como um contrato de livre participação”, disse ele, pouco depois de conversar com um representante do partido. Ele ouviu a mesma proposta tentadora da Rede.
Os monitores da escola circulavam entre os alunos. Monica Rosenberg, aluna do RenovaBR em 2018, ajudava a tirar dúvidas. Candidata a deputada federal pelo Novo nas últimas eleições, ela não foi eleita e hoje é suplente. Estava surpresa com a quantidade de partidos que compareceram à feirinha. “O Renova é um selo muito forte”, disse Rosenberg, animada. “É igualzinho a quando uma pessoa se forma numa grande universidade. As empresas brigam por ela.”
A escola não divulga quantos de seus alunos são filiados a quais partidos. Diz apenas que há pessoas em trinta legendas e que 35% dos pouco mais de mil alunos formados em 2019 ainda não eram filiados a nenhuma delas. Basta, porém, fazer um cruzamento com os dados do Tribunal Superior Eleitoral para constatar que o Novo é, de longe, o partido mais popular entre os alunos: 166 deles estavam filiados à legenda em dezembro, o que corresponde a um quinto dos estudantes que já tinham escolhido partido. Em seguida vinha o PSDB, com noventa alunos filiados, o MDB com 79 e o PT com 69. O PSL tinha 38 filiados na escola.
A tentação das candidaturas independentes – ou avulsas – atinge em cheio os representantes do RenovaBR, embora essa seja uma opção que não existe no Brasil desde 1945. O país começava então a se democratizar, e um decreto assinado por Getúlio Vargas nos estertores do Estado Novo instituiu uma reforma eleitoral segundo a qual era preciso estar filiado a um partido político para se candidatar. Essa é a lei que vigora ainda hoje.
A exaustão do sistema partidário – fenômeno que tem escala mundial e ficou evidente em protestos em vários países nos últimos anos – deu novo alento à bandeira das candidaturas avulsas. A pressão chegou até o STF. Em dezembro último, o ministro Luís Roberto Barroso promoveu uma audiência pública no tribunal para discutir o assunto. Ele é relator do processo de um candidato que se lançou sem partido à Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2016, e teve a candidatura barrada. Feitas as audiências necessárias, Barroso calcula que o Supremo levará o tema a votação ainda no primeiro semestre deste ano.
O RenovaBR defendeu essa bandeira no tribunal. Em nome da escola, o vereador Gabriel Azevedo participou da audiência no STF e fez um longo discurso em defesa das candidaturas avulsas. Mufarej, que também apoia a causa, estava na sala do tribunal assistindo à preleção do amigo.
Cientistas políticos tendem a ver as candidaturas avulsas como uma fantasia. É o caso de Fernando Limongi, professor aposentado da USP e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “É impossível organizar eleições assim, por razões práticas. Os votos para o Legislativo são proporcionais – ou seja, você vota em um partido e os votos são distribuídos entre os candidatos. Nesse sistema não dá para ter gente sem partido”, explicou. É possível pensar essa proposta nas eleições majoritárias, segundo Limongi, mas ainda há outros problemas. “A urna eletrônica teria um número infinito de candidatos. O fato é que essas pessoas não conseguiriam voto. Candidaturas avulsas só ajudam quem tem muito dinheiro ou está em evidência por outros canais, como a televisão.”
Os defensores da mudança argumentam que a proposta criaria uma competição saudável com os partidos, nada mais. Além disso, alegam, o sistema atual não é justo com os que não se identificam com nenhuma das legendas existentes (ressalve-se: existem hoje no Brasil 33 partidos em funcionamento; o candidato a político precisa ser muito original para não se identificar com nenhum deles).
Enquanto as candidaturas avulsas são proibidas, seus apoiadores recorrem a gambiarras – como a que foi usada pelo próprio Azevedo, quando se candidatou em 2016. Na época, ele não tinha partido, mas decidiu se filiar ao PHS depois que a legenda concordou em assinar um “compromisso de independência”. Com essa carta, a sigla garantiu a candidatura e o eximiu de seguir o estatuto partidário. Ou seja: embora tivesse um partido no papel, na prática ele não tinha a quem prestar contas. Mais recentemente, quando o PHS negociou a fusão com o Podemos, Azevedo teve o álibi de que precisava para cair fora da sigla sem perder o mandato.
Hoje, é um vereador sem partido.
Esse mesmo expediente foi usado, dois anos depois, por alguns políticos, entre eles Tabata Amaral. A deputada foi uma das fundadoras do movimento Acredito – um grupo suprapartidário que defende pautas como responsabilidade fiscal e inclusão social. Pouco antes das eleições de 2018, a organização firmou cartas-compromisso com cinco partidos: PDT, PSB, Rede, Podemos e Cidadania (na época PPS). O texto estabelecia que as legendas respeitariam “as autonomias política e de funcionamento do Acredito” e de seus representantes que decidissem sair candidatos por elas. Com a carta em mãos, Amaral escolheu se filiar ao PDT. Seus colegas de movimento, Felipe Rigoni e Renan Ferreirinha, optaram pelo PSB.
Contudo, ao menos para Amaral e Rigoni, o acordo funcionou só até julho do ano passado. Quando a reforma da Previdência foi votada em primeiro turno na Câmara, tanto PDT quanto PSB fecharam questão contra o texto. Os dois parlamentares, seguindo as diretrizes do Acredito, votaram a favor da reforma. Em resposta, o PDT abriu processo no seu Conselho de Ética contra Amaral e outros sete deputados que também votaram pela reforma. Carlos Lupi, presidente do PDT, sugeriu que eles poderiam ser expulsos e depois voltou atrás. Ciro Gomes, principal liderança do partido, foi mais incisivo. No dia seguinte à votação, chamou o Acredito de “partido clandestino, que tem suas regras próprias, seu programa próprio”, e criticou quem “se infiltra nos outros partidos e usa os outros partidos, fundo partidário, tempo de tevê, coeficiente eleitoral, para se eleger e fazer o serviço do outro partido”. “Aí é um problema de dupla militância”, concluiu.
Antes de assumir o mandato, Tabata Amaral e outros 55 parlamentares eleitos acompanharam um curso extra do RenovaBR, chamado Gestão Estratégica para Mandatos Legislativos, entre dezembro e janeiro de 2019 – uma parceria com o Insper. Houve encontros em São Paulo e Brasília, e todos os deputados e senadores de primeira viagem foram convidados – a intenção era ensinar os trâmites e regras do Congresso. Compareceram pessoas de 23 partidos. O Renova arcou com todas as despesas: passagens, traslado, hospedagem, refeições e material didático.
Além dos cursos aos novatos, a escola preparou aulas pontuais ao longo de 2019 para seus ex-alunos. Em março do ano passado, o economista Paulo Tafner foi convidado para falar sobre a Previdência. No mês seguinte, em um artigo de opinião que assinou no Brazil Journal, Eduardo Mufarej disse, referindo-se à aula, que havia sido uma “conversa orientada por dados e evidências, motivada pela urgência da pauta e pelo impacto que ela terá no funcionamento do Estado pelos próximos anos”. No texto, comparava os críticos da reforma à Revolta da Vacina. Assim como no famoso motim popular ocorrido no Rio de Janeiro, em 1904, contra a obrigatoriedade da vacinação para prevenir a varíola, os críticos das mudanças nas regras do sistema de seguridade protestavam por estarem desinformados, dizia Mufarej. Tabata Amaral assistia à aula, apresentada num hotel à beira do Lago Paranoá. Dos dez parlamentares que foram alunos do RenovaBR – nove deputados e um senador –, apenas Joênia Wapichana (Rede-RR) votou contra a reforma.
Para o bem ou para o mal, Tabata Amaral é o rosto mais conhecido dos movimentos de renovação. Ela foi uma das revelações da campanha eleitoral de 2018 – se elegeu com 264 mil votos, a sexta deputada federal mais votada no estado de São Paulo. Aos 24 anos, era uma jovem com um currículo admirável e uma história de superação para contar. Nasceu na Vila Missionária, periferia de São Paulo, ganhou uma bolsa de colégio particular e conseguiu se formar em ciências políticas e astrofísica em Harvard, um dos templos de excelência do ensino no mundo.
Bem antes de despontar na política, Amaral havia ganhado certa fama como menina prodígio. Tinha 13 anos quando apareceu na tevê pela primeira vez, numa entrevista ao Jornal Nacional sobre a Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas, da qual ela foi medalhista algumas vezes. Alguns anos depois, virou notícia por ter sido aprovada em seis universidades americanas disputadíssimas – entre elas Columbia, Yale e Princeton. Havia estudado para as provas com apoio do Prep Program, um curso preparatório para o vestibular dos Estados Unidos, oferecido pelo Instituto de Liderança do Rio (Ilrio). A entidade tem entre seus fundadores o empresário Wolff Klabin.
Uma vez no noticiário, Amaral entrou no radar de Luciano Huck. Em 2012, foi jurada especial no “Soletrando”, que fazia sucesso entre as atrações do Caldeirão do Huck. Os dois mantiveram contato. Três anos depois, Huck foi a Boston entrevistar Amaral e alguns de seus colegas para contar a história de brasileiros em Harvard.
Por volta dessa época, Amaral se tornou membro do Lemann Fellowship, um programa da Fundação Lemann para formar lideranças, que reúne estudantes de várias universidades estrangeiras. Em 2014, por meio da fundação, ela estagiou por alguns meses na Secretaria de Educação de Sobral, cidade cearense que é referência nacional na área educativa.
A experiência em Sobral, reduto político da família Gomes, pesou na escolha do PDT quatro anos mais tarde. Amaral se filiou na última semana do prazo eleitoral, depois de relutar em se lançar na política. No final de 2017, estimulada por Klabin e Mufarej, ela largou um emprego na área social da Ambev – da qual Lemann é um dos sócios – e entrou para a primeira turma de alunos do RenovaBR. Passou a receber da escola uma bolsa mensal de 12 mil reais.
“Eu acreditei que, por ter Darcy Ribeiro, por ter Brizola, por ter Sobral, o PDT seria o partido que me daria mais espaço para lutar pela educação”, afirmou a deputada em seu gabinete, em Brasília, numa entrevista que me concedeu em novembro – um mês depois de ter anunciado na tevê que estava deixando o partido.
Hoje, ela aguarda uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral para conseguir se desfiliar sem perder o mandato. Na ação, a deputada diz ter sofrido um “massacre” por parte da direção do PDT e alega justa causa. O tribunal marcou uma audiência para março.
Na avaliação de Fernando Limongi, era uma questão de tempo até isso acontecer. “A estratégia desses grupos tem limite. O problema não é do Ciro, que tem partido, mas deles, que dizem não querer um. Ou fundam uma legenda ou vão continuar nessa tensão.” O cientista político compara a briga entre Amaral e o PDT com a relação entre Bolsonaro e o PSL – sigla à qual ele se filiou para disputar as eleições, mas com a qual rompeu depois de brigar, sem sucesso, pelo controle do partido. “A diferença é que o Bolsonaro alugou explicitamente o PSL. No caso da Tabata Amaral, a relação foi boa para os dois lados, mas uma hora isso tem que ser decidido: Quem você segue?”
Desde que anunciou sua saída do PDT, Amaral não revelou para qual partido pretende se mudar. “Eu sou progressista, então não vou para um partido conservador”, afirmou a deputada, sem entrar em detalhes. Rígida e pouco espontânea, ela discorre sobre seus planos como quem lê um texto. Parecia desconfortável na presença de um jornalista e mal se moveu na cadeira durante quase uma hora de conversa. “Mas o que vai me guiar hoje não será tanto a questão ideológica. Para mim, o mais importante é que seja um partido que se abra ao menos um pouquinho para a renovação.”
Nos bastidores de Brasília, no entanto, a ida de Amaral para o Cidadania é dada como certa. Algumas de suas assessoras pretendem se candidatar este ano e estão de malas prontas para a legenda. O coordenador nacional do Acredito, Samuel Emílio, é cotado como candidato a vereador pelo partido, em São Paulo.
O Cidadania – que até 2019 se chamava PPS e, antes disso, respondia por PCB, o velho Partido Comunista Brasileiro, ou apenas Partidão – se tornou um polo aglutinador de candidatos que comungam na cartilha da renovação. É pelo menos curioso, já que o partido não está muito acostumado a renovações internas. Há quase trinta anos quem manda no pedaço é um histórico ex-comunista, Roberto Freire, que foi ministro da Cultura do governo Temer. Hoje, com uma bancada de nove deputados federais e três senadores, o antigo Partidão situa-se discretamente no centro do espectro político, orbitando sobretudo em torno dos tucanos e de Marina Silva.
Em 2018, o Cidadania esteve perto de receber a filiação de Luciano Huck, que acabou desistindo de disputar a Presidência. Ainda assim, o apresentador criou laços com a legenda. Apadrinhado por Huck, o movimento Agora! firmou um acordo com Roberto Freire para ter postos de comando no partido. E o apresentador de tevê, mesmo não tendo se filiado, apoiou a legenda com uma doação para cinco de seus candidatos, no valor total de 250 mil reais.
Tentando repetir essa aproximação, o Cidadania divulgou um manifesto, no final de 2019, em defesa dos movimentos de renovação. Nele, a legenda afirma que pretende receber “de braços abertos” os candidatos oriundos desses grupos. Organizou-se uma cerimônia nos corredores da Câmara para marcar o lançamento do manifesto. Além de lideranças do Cidadania, estavam presentes membros do RenovaBR, Acredito e Livres.
O Cidadania fez ainda mudanças no seu estatuto. Passou a permitir que os movimentos cívicos ocupem cargos da burocracia partidária em todos os diretórios do país e, na contramão de PDT e PSB, proibiu o fechamento de questão em votações no Congresso. A decisão foi lida como um salvo-conduto para parlamentares insatisfeitos, como Tabata Amaral. E, mais importante de tudo, foi vedada a reeleição para o cargo de presidente do partido. Depois de três décadas, Freire terá que abrir mão da direção quando seu mandato terminar, em 2022. A depender da vontade dos diretórios estaduais – que têm poder de convocar eleições fora de época – isso pode acontecer antes.
A formatura dos alunos do RenovaBR foi realizada no dia 7 de dezembro, na Sala São Paulo – o moderno espaço de concertos na Estação da Luz, no Centro da cidade. Antes da cerimônia, pouco mais de mil pessoas confraternizaram no hall principal da casa. Nas mesas havia petiscos e pratos típicos das cinco regiões do Brasil, em homenagem à diversidade dos alunos. Variados painéis com o logotipo da escola foram espalhados pelo salão, e as pessoas com celulares nas mãos faziam fila para tirar fotos. Volta e meia, aglomerados de estudantes do mesmo partido – ou do mesmo estado – entoavam seus gritos de guerra.
Enquanto no hall reinava a euforia, num foyer ao lado uma centena de convidados VIPs circulava de maneira menos ruidosa. Desfrutavam de um coquetel à meia-luz e conversavam entre si. Estavam lá alguns importantes apoiadores da escola, além de políticos, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Em dado momento, acompanhado de Roberto Freire, Luciano Huck se incorporou à roda de Maia, com quem conversou por alguns minutos enquanto mordiscava um sanduíche.
Em torno de uma grande mesa de madeira, estavam personagens conhecidos da elite brasileira, como o empresário Carlos Jereissati Filho, CEO do Grupo Iguatemi, e Ana Maria Diniz, executiva do ramo da educação e filha de Abilio Diniz. A maior parte dos presentes eram financiadores do Renova. “A renovação é fundamental. A gente tem que parar de ficar só se vitimizando e reclamando do país”, disse Lucia Hauptman, dona da Prada Assessoria, um escritório especializado em administrar fortunas. Ela, que já foi casada com Pedro Parente (ministro do governo Fernando Henrique Cardoso e presidente da Petrobras na gestão Michel Temer), doou dinheiro para o RenovaBR e alguns candidatos da escola, em 2018.
Os formandos já estavam acomodados em suas cadeiras na sala de concertos quando os convidados VIPs começaram a se aconchegar em seus camarotes, por volta de oito da noite. Mufarej sentou-se ao lado da sua mulher e do amigo Wolff Klabin, que também estava acompanhado da mulher, a modelo Daniella Sarahyba. Assim que Luciano Huck – sem Angélica – entrou em seu camarote, no lado oposto, foi ovacionado pelos alunos.
Huck filmou e fotografou a plateia. Mais tarde postou as imagens em sua conta no Instagram para também dizer o quanto estava orgulhoso do Renova. “Depois de uma noite como essa, me encho de esperança de que nosso país tem jeito”, escreveu. Roberto Freire sentou-se ao lado do apresentador, de quem não desgrudou mais. A cada minuto, um e outro cochichavam alguma coisa. A cerimônia se estendeu por cerca de três horas, e eles saíram no meio.
O apresentador tem dedicado atualmente a maior parte de seu tempo à política. Em janeiro deste ano, esteve em Davos para participar do Fórum Econômico Mundial. Durante um almoço reservado, enquanto dezenas de empresários manuseavam seus talheres, o apresentador discursou sobre a urgência do combate à pobreza no Brasil. Políticos, empresários e intelectuais tucanos, ou de alma tucana, que têm na figura de Fernando Henrique Cardoso a sua principal referência, trabalham para que Huck concorra à sucessão de Bolsonaro em 2022. É o caso do economista Marcos Lisboa, de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central de FHC, e de Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo. E é o caso de gente como Eduardo Mufarej. Não à toa, estão todos envolvidos com o RenovaBR, dando dinheiro, ministrando aulas, apoiando como podem.
Se não quiser frustrar as aspirações dessa turma, Huck terá de buscar um partido – grupos como RenovaBR e Acredito, aos quais Ciro Gomes se refere como “partidos clandestinos”, não o habilitam à disputa. O Cidadania de Roberto Freire é um possível caminho para a candidatura. Também há conversas em curso, embora menos avançadas, com o Podemos. Está em discussão ainda a possibilidade de se fundar um novo partido, a depender de como vai ser regulamentada pelo TSE a regra que permite a coleta de assinaturas eletrônicas para viabilizar uma legenda. A fundação do partido de Bolsonaro, Aliança Pelo Brasil, servirá como termômetro dessa hipótese.
Criar um partido do zero é uma ideia que agrada especialmente aos tucanos ligados a Huck, que se veem à esquerda do PSDB de João Doria. “Está em falta no Brasil uma social-democracia de verdade, um projeto charmoso, inclinado à centro-esquerda”, define um político graúdo envolvido nas conversas. O ajuntamento de tucanos abarca nomes como o do senador Tasso Jereissati e do governador Eduardo Leite.
Recentemente o apresentador abriu diálogo com governadores do Nordeste que considera moderados. Em dezembro, conversou com o governador do Maranhão, Flávio Dino, do PCdoB, que, a convite de Hartung, deu uma palestra na Casa das Garças, o famoso think tank por onde circula a nata dos economistas liberais do país, situado na Zona Sul do Rio de Janeiro. No dia seguinte à palestra, Dino tomou café da manhã na casa de Huck, no bairro do Joá. Não foi para discutir o futuro do Caldeirão.
Os apoiadores de Huck, por enquanto, compram tempo. Prevalece a avaliação de que a candidatura deve ser posta na praça só em 2021, quando as peças estiverem mais definidas no tabuleiro. Talvez mais importante que as eleições municipais no país será a eleição presidencial norte-americana, em novembro. O êxito ou fracasso de Donald Trump terá inevitavelmente impacto no Brasil. A cautela de Huck tem a ver também com o receio de um desgaste precoce e com seu interesse de adiar ao máximo o rompimento contratual com a Globo. Seu vínculo com a emissora o impede de se colocar oficialmente como candidato, embora se comporte como tal. Enquanto aguarda e trabalha para posicionar bem o seu Cidadania, Roberto Freire não poupa elogios ao novo pupilo. “O Luciano Huck é muito mais do que um apresentador de tevê, com todo o respeito a essa profissão. Ele é alguém que já está no pós-capitalismo, na sociedade da inteligência artificial”, discursa o velho comunista.
Em setembro do ano passado, Luciano Huck compareceu ao encontro promovido pelo RenovaBR no Rio de Janeiro. A apresentadora Angélica o observava da primeira fileira da plateia quando ele subiu ao palco para fazer um discurso animado. Tirou o suéter logo que assumiu o microfone. Usava por baixo uma camiseta branca do RenovaBR, o que lhe rendeu aplausos frenéticos. Huck falou sobre a importância simbólica daquele dia e enalteceu o trabalho do fundador da escola, Eduardo Mufarej.
“Ver esse teatro cheio, hoje, é materializar um sonho que vi nascer na mesa do Edu, na Faria Lima. Eu me lembro dos brainstorms que a gente fez, tentando encontrar um jeito de contribuir para que o Brasil voltasse a sonhar.” Como gostava de fazer Aécio Neves na época em que governava Minas Gerais, não faltou à fala do apresentador uma menção aos tempos em que Juscelino Kubitschek era presidente e o Brasil sonhava. “Eu sempre digo: não tenho um grande conhecimento técnico das causas e talvez não seja o cara mais esperto em economia. O que eu tenho, e ninguém vai tirar de mim, é o pulso do dia a dia. Eu estou rodando esse país há vinte anos”, discursou.
Em dado momento, como se apresentasse um dos seus quadros na tevê, Huck chamou ao palco uma senhora que havia sido levada ao evento especialmente para esse momento. Dona Jaque, como foi chamada, é uma vendedora de rua que aparece em um dos vídeos de divulgação do RenovaBR. Ela chamou a atenção da escola por dizer que acredita na política como única forma de se resolver os problemas do Brasil. Carismática, provocou risadas da plateia enquanto respondia às perguntas do apresentador sobre a vida dela. Os dois conversaram sobre renovação política.
Mufarej assistia da primeira fileira e se divertia. Na virtual Esplanada dos Ministérios de Huck, o empresário ocupa a pasta da Educação – era esse o plano em 2018 e, até segunda ordem, continua sendo. Ele não confirma, mas também não disfarça o que, segundo aliados, é seu sonho. Nos discursos que faz em eventos do RenovaBR, costuma dizer que abriu mão da vida empresarial quando percebeu que a política é a única forma de mudar o Brasil. Para quem cogitou abraçar o governo Bolsonaro, um futuro no caldeirão de Huck soa fabuloso.
“Eu não tenho esse sonho. O Luciano está se tornando uma liderança nacional, mas eu só colaboro aqui e ali. Meu drive é ajudar”, desconversou Mufarej, quando indaguei sobre seu possível futuro como ministro. Mas e se o convite for feito? “Não estou dizendo que não toparia”, apressou-se em dizer, com uma risada malandra. “Ajudar o país é uma ideia que me agrada. Se o Brasil precisar de mim, vou considerar.”
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