De tornozeleira eletrônica, o doleiro Cláudio Fernando Barboza de Souza, o Tony, segue com a rotina de exercícios físicos e planeja percorrer os 800 quilômetros do Caminho de Santiago RICARDO BORGES_2018
A escolinha de Tony & Juca Bala
As lições de dois doleiros que cuidaram do propinoduto de Sérgio Cabral
Allan de Abreu | Edição 147, Dezembro 2018
“Alguém entendeu isso? Aqui é velocidade cinco”, interrompeu o procurador Eduardo Gomes El Hage, que coordena a força-tarefa da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro. Ele tentava quebrar o clima nervoso da palestra, mas quase ninguém pareceu entender a brincadeira – uma alusão ao momento em que o rebolado alcança a máxima rapidez no funk Dança do Créu. Na plateia formada por procuradores, delegados das polícias Civil e Federal, fiscais da Receita Federal e integrantes do alto escalão das Forças Armadas ouviu-se apenas um riso breve e sem jeito. Provavelmente porque, no palco, os palestrantes eram dois infratores: Cláudio Fernando Barboza de Souza, 51 anos, o “Tony”, e Vinicius Claret Vieira Barreto, 57, o “Juca Bala”, doleiros fluminenses que estiveram no centro do maior esquema de lavagem de dinheiro no Brasil desde o início dos anos 2000.
“Vou tentar explicar”, continuou o procurador. “Os dois conhecem isso há tanto tempo que para eles é algo muito natural, mas para a gente, que não é tão familiarizado, é complicado mesmo. Vamos começar daqui”, disse, apontando para a tela onde estava sendo projetado o PowerPoint. A plateia de cerca de cem pessoas voltou a se concentrar nos gráficos da palestra “Aspectos práticos da lavagem de dinheiro do Brasil”, no anfiteatro da Procuradoria Regional da República da 2ª Região, na rua Uruguaiana, Centro do Rio de Janeiro.
Para a plateia, era uma oportunidade rara de conhecer como agiam dois criminosos de colarinho branco, especialistas no mercado financeiro paralelo. Até porque Tony e Juca Bala não eram doleiros comuns: a dupla operou durante quinze anos uma rede de 3 mil offshores em 52 países, por onde passou 1,65 bilhão de dólares, dinheiro oriundo de sonegação fiscal por parte de grandes empresários brasileiros e de desvios feitos por políticos de toda espécie. Presos no Uruguai em 2017, acusados pela Operação Lava Jato fluminense de lavar boa parte do propinoduto do ex-governador Sérgio Cabral Filho, ambos optaram pelo caminho da delação.
Tudo indicava ao MPF que os delatores Tony e Juca Bala tinham muito a ensinar a quem dedicou a vida profissional a caçar infratores como eles. Por isso, além das condições básicas de um acordo de delação – renunciar ao direito ao silêncio, entregar todas as provas dos crimes praticados e colaborar integralmente com a investigação –, El Hage e Rodrigo Timóteo da Costa e Silva, também procurador do MPF, tiveram a ideia de exigir que os dois doleiros dessem 200 horas-aula anuais, durante seis anos, para representantes de órgãos de combate ao crime organizado no Brasil.
Já ocorreu no cinema. Em Prenda-me se For Capaz, do diretor Steven Spielberg, um golpista ensina técnicas de estelionato a policiais do FBI. Mas no Brasil é a primeira vez que bandidos ensinam a investigadores, em um plano organizado de aulas, o caminho do crime. (Tentou-se o mesmo com outro doleiro flagrado anteriormente pela Lava Jato, Lúcio Bolonha Funaro, mas a ideia nunca saiu do papel.) Incomodados, muitos procuradores do MPF carioca chegaram a criticar a iniciativa. “Você está maluco? Vamos ouvir um bandido falar?”, questionou um deles. Mas El Hage e Costa e Silva seguiram com o projeto. Três meses após os doleiros deixarem o regime fechado e migrarem para a prisão domiciliar, foi feita a primeira palestra, em 18 de julho deste ano, por videoconferência, transmitida do Ministério Público Federal para representantes de sete bancos. Em 10 de agosto, começaram as palestras presenciais. E na manhã de 31 de agosto ocorreu a terceira aula, que a piauí acompanhou.
Tony e Juca Bala estavam um pouco tensos quando subiram ao palco do anfiteatro da rua Uruguaiana. Com cerca de 1,90 metro, corpulento, calvo e com sobrancelhas espessas, levemente arqueadas, Juca Bala foi o primeiro a falar. Vestia sapatos cinza-escuros, camisa preta e calça jeans, que ocultava a tornozeleira eletrônica na perna esquerda.
Começou pelo beabá: como funciona o sistema dólar-cabo, a mais simples das operações financeiras de um doleiro, praticada desde a década de 80. Nesse sistema, um político corrupto, por exemplo, que queira enviar dinheiro para uma conta no exterior sem passar pelos mecanismos de controle do governo brasileiro – leia-se Banco Central –, entrega determinado valor em reais para um doleiro no Brasil, que deposita a quantia equivalente em dólares na conta indicada pelo político. Como o dinheiro não “viaja” para o exterior, não é fácil rastreá-lo. Para dificultar ainda mais o trabalho dos órgãos de fiscalização, a conta no exterior costuma estar vinculada não ao nome do político, mas ao de uma offshore, como são denominadas empresas de papel criadas em paraísos fiscais, países cuja legislação permite ocultar o nome do verdadeiro proprietário dessas firmas.
Para otimizar o processo, normalmente o doleiro faz uma operação de dólar-cabo casada. Ao mesmo tempo que deposita o valor equivalente em dólar no exterior, faz a operação inversa: aproveita para transformar em reais, no Brasil, os dólares de caixa dois, mantidos em paraísos fiscais por empreiteiras, por exemplo. A conversão é útil para empresas que desejam pagar propinas para agentes públicos no Brasil, sempre em dinheiro em espécie, sem deixar rastros. Assim, o doleiro é quem faz girar as engrenagens da corrupção, com um ganho substancial para si próprio. As taxas cobradas por eles variam de 0,2% a 2% do valor de cada operação, mas chegam a 4% em períodos eleitorais, calculou Juca Bala, por causa do aumento da demanda e do robusto caixa dois praticado tradicionalmente por empresas e políticos nesses períodos.
“Ficou claro?”, perguntou o doleiro, mesclando a pronúncia carioca com certo sotaque castelhano que adquiriu após viver quinze anos no Uruguai. A plateia respondeu com um longo silêncio.
Encontrei Cláudio Fernando Barboza de Souza, o Tony, em 5 de outubro, no escritório do advogado dele, também no Centro do Rio. Como a conversa durou três horas, em dado momento ele teve que recarregar na tomada a bateria da tornozeleira. Desde que Tony e Juca Bala deixaram a Cadeia Pública de Benfica, em maio deste ano, só podem sair de um perímetro de 600 metros em torno dos condomínios onde moram, na Barra da Tijuca, com ordem do juiz da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, Marcelo da Costa Bretas. Sem carro, com os bens bloqueados no Brasil e no Uruguai, Tony utiliza o metrô e o BRT – ônibus de trânsito rápido, na sigla em inglês – para ir ao Centro.
Até ser preso, levava em Montevidéu uma vida bem menos austera. Com faturamento anual de 1 milhão de dólares na “mesa de operações”, como os doleiros denominam as suas redes financeiras, Tony gostava de colecionar carros importados, viajar pelo mundo, frequentar os melhores restaurantes da capital uruguaia e apostar nos cassinos de Punta del Este. Mas esses luxos tinham um preço. “Eu não podia manter relacionamentos sociais com pessoas de fora do círculo de doleiros. Nem com meu vizinho. Porque em algum momento eles perguntariam a minha profissão. E eu teria de mentir, podendo cair em contradição e causar desconfiança”, disse.
Tony nasceu em Barra do Piraí, no interior do estado do Rio, e mudou-se para a capital no final dos anos 80 para cursar economia no Centro Universitário Metodista Bennett, faculdade de classe média no bairro do Flamengo. Filho de um representante comercial e de uma diretora de escola, para manterse no Rio de Janeiro teve de arrumar um emprego. Começou a trabalhar na corretora de valores Tecncorp. Depois, foi para a Dimensão DTVM – sigla da Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários –, empresa de um nome lendário do mercado paralelo de dólares no Brasil, o judeu polonês Mordko Izaak Messer, que iniciara sua carreira nos anos 40 trocando a moeda brasileira por dólares na praça Mauá. “Quando Messer já estava idoso, cheguei a visitá-lo algumas vezes e ele sempre perguntava se eu estava tratando bem os funcionários”, contou.
Foi na corretora Dimensão, cuja matriz ficava no Centro do Rio, que Tony ganhou o apelido com o qual se tornaria conhecido no mercado paralelo de dólares a partir dos anos 90. “O pessoal da empresa me achava parecido com o Tony Ramos.” Alçado a gerente da casa de câmbio, começou a prosperar e viu mais futuro na profissão de doleiro que na de economista. Largou a faculdade no 2º ano e mergulhou no submundo carioca da lavagem de dinheiro. Foi na empresa de Izaak Messer que Tony conheceu Juca Bala.
No início dos anos 80, uma resolução do Banco Central limitava a mil dólares a quantia que cada pessoa poderia levar em viagens ao exterior. Como alguns viajantes tinham necessidade de um valor maior para suas despesas fora do país, havia uma forte demanda por dólares extras, que eram transportados pelos turistas em espécie, ilegalmente. Juca Bala ficou conhecido na Zona Sul do Rio por conseguir obter esse dinheiro no mercado paralelo, em casas de câmbio, enquanto mantinha um emprego no Banco Nacional. Na mesma década, decidiu deixar o banco e foi para a Antur Turismo, casa de câmbio de Izaak Messer. Ali, destacaram-no para atuar na filial de Ipanema. Na matriz, trabalhando diretamente com o patrão, estava Tony. Entre a Zona Sul e o Centro, os dois estabeleceram uma parceria que, sob os auspícios da empresa de Messer, lavaria dezenas de milhões de notas de cruzeiros e reais carimbadas por todo tipo de crime.
Em 1994, os irmãos Luiz, Paulo e Dario Messer assumiram as rédeas dos negócios do pai, já septuagenário (ele morreria em 2007, aos 87 anos). Dario, o caçula de quatro filhos do doleiro polonês, viria a ser o mais conhecido de todos. Em meados dos anos 90, esteve envolvido equivocadamente numa história criminal rocambolesca, suspeito, junto com uma atriz paraguaia, da morte de um domador de leões – dois italianos foram condenados pelo homicídio. Na década seguinte, a Polícia Federal e o Ministério Público encontraram indícios de que teria enviado, entre 1998 e 2003, 1 bilhão de dólares para o exterior, movimentação que faria parte de um gigantesco esquema de lavagem de dinheiro de empresários e políticos brasileiros por meio de contas na agência do Banestado, o Banco do Estado do Paraná, em Nova York. Com a escassez de provas, Dario Messer foi absolvido pela Justiça Federal em Curitiba, em 2016. Enquanto enfrentava a investigação, meteu-se em outra encrenca: o escândalo do mensalão. Em setembro de 2005, o doleiro Antônio Oliveira Claramunt, o Toninho da Barcelona, disse à CPI dos Bingos que Dario “era o principal doleiro do PT”, responsável, segundo ele, por receber dólares do partido em uma offshore nas Ilhas Cayman e entregar o valor correspondente em reais no Brasil, via Banco Rural. A fim de escapar da CPI, Dario viajou para Paris, enquanto os operadores petistas de propinas no Congresso manobravam para que seu nome ficasse de fora do relatório final da comissão. Deu certo.
A descoberta de tantos escândalos financeiros nos primeiros anos da década de 2000 tem uma razão. Até poucos anos antes, as operações de dólar-cabo eram feitas sem muitas dificuldades por intermédio de factorings – empresas que costumam trabalhar com bastante dinheiro em espécie ao antecipar o pagamento de duplicatas e notas promissórias – e de contas bancárias, chamadas “contas de giro”, em nome de laranjas, inclusive com saques na boca do caixa. Os atentados de 11 de setembro de 2001, porém, mudaram essa realidade. Para evitar movimentações financeiras de organizações terroristas, o governo norte-americano passou a pressionar o sistema bancário, que apertou suas regras, implantando restrições à circulação de dinheiro cujo dono, origem ou destino fossem omitidos. “Os bancos passaram a perguntar muito. E, como o doleiro não tinha respostas, porque as contas eram completamente no ‘B’ [no paralelo] e não tinham nem fatura, não havia como justificar nada da movimentação, e então o banco encerrava as contas”, disse Juca Bala na palestra.
Acuados, Dario Messer, Juca Bala e Tony chegaram a uma decisão radical: deveriam se tornar invisíveis. A primeira medida foi fechar a factoring e todas as casas de câmbio no Rio. “Eram locais com endereço fixo. Qualquer denúncia baixava polícia. Chamava demais a atenção”, me explicou Tony. Após uma reunião no início de 2003, na casa de uma irmã de Clark Setton, doleiro carioca parceiro de longa data dos Messer, o grupo decidiu mudar-se para o Uruguai, conhecido paraíso fiscal da América do Sul. Setton passou a comandar as operações de Montevidéu, com a ajuda de Juca Bala, Tony e mais dois comparsas – Enrico Vieira Machado, ex-funcionário da corretora Dimensão, e Jacques Aboulafia, tesoureiro nas casas de câmbio da família Messer. Criou-se assim uma sociedade informal, na qual Dario Messer tinha 69% de participação; Clark Setton, 22%; e os outros três, 3% cada um.
Eles não sabiam, mas Setton já estava na mira da Operação Farol da Colina, decorrente das investigações do caso Banestado. Poucos meses depois, ele foi preso, e Machado o substituiu na coordenação dos trabalhos no Uruguai. Alguns anos mais tarde, Machado deixou o negócio, abrindo espaço para que Tony e Juca Bala aumentassem seu poder na sociedade – em 2017, Dario Messer passou a ter 60% de participação; Tony e Juca Bala, 18% cada um; e os 4% restantes ficaram no caixa para cobrir custos operacionais. O sobrenome Messer era uma espécie de grife do grupo no Uruguai, dada a reputação da família entre os doleiros. Mas era usado com muita moderação. Apenas quando um cliente importante do esquema demonstrava desconfiança quanto ao destino do seu dinheiro, Tony abria o nome do seu sócio majoritário como garantia.
No Uruguai, o grupo de doleiros se concentrou em criar sucessivas barreiras contra os órgãos de investigação antilavagem no Brasil. A primeira delas foi a da comunicação. Os telefones do grupo eram operados a partir de uma central clandestina em São Paulo – quem ligasse para aqueles números, com DDD 11, não saberia que os interlocutores estavam a mais de 1 900 quilômetros da capital paulista, em Montevidéu. Tony, Juca Bala e os demais também costumavam utilizar sistemas criptografados de comunicação, como Pidgin e Skype, ou, depois, aplicativos que autodestruíam as mensagens instantes após o envio, como o Wickr. “Descobrimos esse programa e espalhamos por todo o mercado. Eu só falava com quem tivesse o Wickr. Tínhamos até um manualzinho de instalação que fornecíamos aos doleiros e clientes”, disse Juca Bala durante a palestra.
As operações financeiras também mudaram de perfil. O grupo reforçou estratégias de autoproteção – uma série de regras e normas – para evitar transações com o crime organizado comum, especialmente os traficantes de armas e drogas, mais visados pela polícia. “Eu estou no mercado há trinta anos… ou estava. Você percebe de longe quando vem alguma merda”, afirmou Juca Bala. Grandes empresários, advogados, “gente da tevê, artistas, músicos”, segundo ele, passaram a ser os clientes preferidos. Foi nessa época que Vinicius Claret Vieira Barreto adotou o apelido Juca Bala, inspirado nas balas Juquinha que certo dia encontrou sobre a mesa do escritório em Montevidéu.
Juca Bala e Tony se desfizeram de boa parte das contas frias – criadas em nome de laranjas para movimentar dinheiro sujo – que mantinham no Brasil e no exterior. Tornaram-se assim apenas intermediários de operações de dólar-cabo casadas, coordenando saques e depósitos, mediante taxas pré-combinadas com os clientes. Com a ajuda de um PowerPoint com diagramas, Juca Bala explicou como combinava essas operações complexas. “O cliente A, que vendia dólares para nós no exterior, passou a pagar diretamente para o cliente B, que comprava dólares no exterior. Já não passava mais na nossa conta. Não tinha rastro financeiro”, disse o doleiro, para a plateia que mal disfarçava a perplexidade.
Com o passar dos anos, Tony e Juca Bala tornaram-se os “doleiros dos doleiros”, auxiliando dezenas de outros profissionais do mercado financeiro paralelo no Brasil, principalmente aqueles com poucos clientes, que nem sempre conseguiam fazer o casamento entre duas operações dólar-cabo. “Eles eram uma espécie de câmara de compensação dos doleiros no Brasil”, como definiu o procurador Costa e Silva para os espectadores da palestra.
Com a ampliação do esquema, Dario Messer chegou a comprar um banco, o EVG, no paraíso fiscal de Antígua e Barbuda, Caribe, em sociedade com Machado. O banco era usado para movimentar parte do caixa dois de vários empresários do Rio, como Alexandre Accioly, apontado em delação da Andrade Gutierrez como operador de propinas do senador tucano Aécio Neves, e Arthur César de Menezes Soares Filho, o Rei Arthur, acusado de pagar propina para Sérgio Cabral – o ex-governador do Rio definiria o destino de Tony e Juca Bala, como se verá mais adiante. Até ser vendido em 2012, após uma briga entre Messer e Machado, o EVG teve entre os seus principais clientes a empreiteira Odebrecht.
Para os doleiros, a Odebrecht sempre foi uma estrela de primeira grandeza, sobretudo depois que o PT chegou ao poder. Beneficiada por contratos em grandes obras nas gestões Lula e Dilma, muitas delas subvencionadas pelo BNDES, a empresa estendeu seus tentáculos sobre o Estado brasileiro e ampliou o número de mercados em que atuava mundo afora. Em 2003, ano em que Lula assumiu a Presidência, a empreiteira faturou 17,3 bilhões de reais; em 2014, quando Dilma foi reeleita, o faturamento crescera 522%, chegando a 107,7 bilhões.
O crescimento foi alavancado com muita corrupção. A Odebrecht teve de criar um sistema sofisticado de pagamento de propinas, bônus e caixa dois. Eram tantas offshores e tanto dinheiro circulando por tantas partes do mundo que a empreiteira precisou implantar um software próprio – chamado Drousys – e até comprar um banco em Antígua para manejar seu caixa dois. Além disso, como não era possível operar todo o esquema apenas com seus funcionários, passou a recorrer a parceiros da mais estrita confiança. Dario Messer e seu time estavam entre eles. A Odebrecht confiava tanto em Juca Bala e Tony que lhes deu acesso ao Drousys, controlado pelo “Departamento de Operações Estruturadas”, como fora batizado o setor de propinas. Pelo Drousys, a multinacional movimentava dinheiro de caixa dois utilizado para subornar políticos no Brasil e em países da América Latina e da África.
Juca Bala e Tony contaram na palestra que, para organizar tantas operações, muitas delas feitas simultaneamente, criaram dois sistemas de armazenamento de informações: o Bank Drop e o ST. O primeiro trazia os dados básicos de cada transação financeira: os clientes envolvidos (identificados sempre por apelidos), datas, valores, números de contas e bancos utilizados na operação. Já o ST era uma espécie de extrato bancário, com o histórico das movimentações financeiras de cada cliente. “Ninguém mais no Brasil tinha capacidade para fazer isso. Era muito complexo. Se alguém entrasse no nosso escritório no Uruguai e tivesse acesso a esses sistemas, levaria muito tempo para entender”, disse Juca Bala. Mas mesmo essa possibilidade era remotíssima, uma vez que o servidor com todos os dados dos dois sistemas ficava em outro edifício, a 2 quilômetros do escritório onde os doleiros operavam em Montevidéu. A comunicação entre o servidor e os computadores do escritório era feita por uma pequena parabólica. Caso a polícia aparecesse, bastaria modificar a posição da antena para o Bank Drop e o ST desaparecerem dos computadores.
Nesse momento da palestra, Juca Bala se permitiu um autoelogio: “Não conheço até hoje ninguém que tem a organização que nós temos… ou que nós tínhamos.” Algumas pessoas sorriram na plateia. Procurado dias depois pela piauí, Juca Bala não quis ser entrevistado.
O próprio Dario Messer era cliente do seu negócio ilícito: possuía cinco contas registradas no Bank Drop, uma delas batizada de Cagarras, nome do conjunto de ilhas que ele avistava do seu apartamento no Leblon. Conforme a delação de Tony, parte dos lucros de Messer era entregue no Paraguai, para onde ele expandiria seus negócios, principalmente a partir de 2013, ano em que o então presidente do país, Horácio Cartes, lhe concedeu cidadania. Dono de fábricas de cigarro, Cartes é amigo de longa data dos Messer e afirmou em uma entrevista que considerava o patriarca Izaak Messer seu “segundo pai”, pois foi quem o acolheu em um “momento difícil”, e Dario, o seu “irmão de alma” – este último chegou a participar da comitiva do ex-presidente em uma visita oficial a Israel, em 2013.
O que um apostador da Mega Sena ou o cliente de uma loja de produtos populares, seja da rua 25 de Março, em São Paulo, seja da região da Saara, a Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, no Centro do Rio, têm a ver com as propinas milionárias pagas a políticos corruptos? Têm tudo a ver. Essa inusitada e, em certa medida, perturbadora associação seria o clímax das três horas de palestra dos doleiros. Tony, vestido de camisa branca de mangas curtas e jeans, que também escondiam sua tornozeleira, tomou a palavra.
Cada movimentação financeira em dólares ou outra moeda no exterior cria para os doleiros a necessidade de, em contrapartida, ter reais em espécie no Brasil, explicou Tony. E é essa uma das principais dificuldades em seus negócios, devido principalmente ao cerco dos órgãos de fiscalização, como a Receita Federal e o Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras.
Até a década de 90, era possível sacar grandes somas na boca do caixa sem despertar suspeitas. Mas a informatização do sistema bancário e as medidas internacionais adotadas para secar as fontes financeiras do terrorismo e do crime organizado modificaram esse quadro. A partir de 2001, uma resolução do Banco Central obrigou as instituições financeiras a informar à Receita Federal movimentações bancárias de pessoas físicas acima de 5 mil reais e de empresas acima de 10 mil reais – em 2016, o limite baixou para 2 mil e 6 mil reais, respectivamente. “Se uma pessoa sacar 150 mil reais na boca do caixa, todos nós aqui vamos receber um e-mail do Coaf, não é?”, perguntou o procurador El Hage para o público no anfiteatro.
Foi para driblar essa barreira que Tony aprimorou um engenhoso mecanismo criado pelos doleiros para gerar dinheiro em espécie sem sacar um centavo no banco – o que ele chama de “máquina de fazer reais”.
Tudo começa naqueles dois grandes polos de comércio popular do Brasil: a 25 de Março e a Saara. Juntos, esses centros de compras movimentam 130 milhões de reais por dia, número que pode dobrar nas vésperas de datas comemorativas, como o Dia das Mães ou o Natal. Boa parte dos valores arrecadados nas lojas é em espécie ou, para compras parceladas, cheques de pequenos valores, chamados “chequinhos”, ainda muito utilizados por pessoas menos aquinhoadas, que não têm acesso a cartões de crédito. Como precisa pagar as mercadorias importadas, principalmente da China, muitos lojistas recorrem aos doleiros, a fim de fugir das taxas cobradas pelo Banco Central. Um dos métodos utilizados consiste em entregar os “chequinhos” aos doleiros, que se encarregam de pagar em dólares o fornecedor no exterior, via dólar-cabo. Assim, diariamente, office-boys recolhem cheques em lojas e os depositam em centenas de contas bancárias frias, em nome de laranjas, controladas pelos doleiros. Tony arrecadava até 3 milhões de reais de “chequinhos” por dia, em pilhas que superavam 1 metro de altura.
O desafio passou a ser a obtenção de dinheiro em espécie a partir dessas contas sem recorrer à boca do caixa, para não chamar a atenção dos órgãos de fiscalização. Foi quando os doleiros descobriram o potencial dos boletos bancários – e das transportadoras de valores – para seu negócio. Devido ao risco de assaltos, grandes redes de supermercados não costumam deixar o dinheiro recebido ao longo do dia dormir nas gavetas dos caixas e o entregam, no final do expediente, para transportadoras de valores. Entregam também boletos de mercadorias adquiridas para serem pagos pelas mesmas transportadoras, que estão autorizadas a atuar como correspondentes bancários. Os doleiros então negociaram com as transportadoras um novo esquema de compensação, que funcionava assim: elas passaram a entregar todo o dinheiro e os boletos nas mãos dos doleiros, mediante o pagamento de uma taxa. E eles pagavam os boletos com o dinheiro depositado nas contas frias, ficando com os milhões de reais em espécie recebidos dos supermercados.
A engrenagem só falhava quando algum cheque era devolvido pelo banco por insuficiência de saldo. Quando isso ocorria, um funcionário de Tony ia até a agência bancária e se apresentava como o titular da conta na qual o cheque fora depositado, identificando-se com um documento falso. “Era uma fábrica de dinheiro”, resumiu Tony. Enquanto os investigadores de crimes financeiros procuravam rastros de dinheiro sujo em contas com grande movimentação, o mercado paralelo estava trocando milhares de boletos por dia na praça. “No caso do Geddel, aquele dinheiro todo nem entrou no sistema bancário”, disse El Hage, em referência aos 51 milhões de reais encontrados em um apartamento de Salvador, em setembro de 2017 – a Procuradoria-Geral da República acusa o ex-ministro Geddel Vieira Lima de ser dono do dinheiro.
Um burburinho surgiu na plateia. Era nítido o alvoroço entre delegados, procuradores e fiscais da Receita. Tony retomou a palavra: “Com ‘chequinho’ e boleto, nunca iriam chegar até mim, porque a polícia e a Receita nunca montariam uma operação para ir atrás de um boleto. E é isso que faz funcionar a máquina de fabricar dinheiro vivo.”
“E os gerentes dos bancos sabiam da real função dessas contas frias?”, perguntou alguém.
“Seguramente”, respondeu Tony. “Não tem como não saber. Eu monto uma empresa e de um dia para outro entra 1 milhão por dia na conta? Tinha que ser gerente amigo. Eu era avisado quando uma conta ou outra chamava a atenção. Tem uma falha aí, porque eles deixam abrir qualquer conta e eu deixo saldo. Se eu tenho 2 milhões na conta, sou um bom cliente.” Tony disse que, às vezes, costumava subornar gerentes para que fizessem vista grossa.
“Qual era o tempo de vida dessas contas?”, questionou outra pessoa.
“Um ano. Depois disso, começo a zerar o saldo. Eu fazia tudo o que os gerentes pediam: comprava planos privados de previdência, seguro de vida… Eu era um bom cliente para o banco. Batia as metas dos gerentes.” Mas a culpa, acrescentou, não é só das instituições bancárias. O supermercado, afirmou Tony, também é cúmplice, porque o dinheiro em espécie e o boleto entregues à transportadora não ingressam na contabilidade formal da empresa, o que gera sonegação fiscal.
Alguém que não entendeu bem o esquema levantou o braço. El Hage explicou novamente e, por fim, questionou: “Como a gente vai identificar isso?” Os decibéis dos comentários na plateia aumentaram.
Paralelamente, com uma lógica muito parecida, Tony extraía dinheiro vivo de oito casas lotéricas em São Paulo, embora em volumes diários menores. Toda casa lotérica do país precisa somar o valor arrecadado no dia, preencher um boleto com aquele montante e pagá-lo em uma conta da Caixa Econômica Federal, que administra o setor de loterias. No entanto, os donos dessas oito lotéricas entregavam ao doleiro os boletos e o dinheiro para pagá-los. E o doleiro pagava os boletos com o saldo das contas dos “chequinhos”, ficando com os valores em espécie inicialmente destinados ao pagamento.
O procurador Costa e Silva tomou outra vez a palavra. Disse que no ano passado, a partir de investigações da Lava Jato fluminense, ele e El Hage expuseram o problema do pagamento de boletos com dinheiro vivo em um seminário no Banco Central. Em reação, o Conselho Monetário Nacional (CMN), ao qual o BC é subordinado, proibiu em março deste ano o pagamento de boletos acima de 10 mil reais com dinheiro em espécie. “Mas o esquema continua rolando solto, porque para proibir isso aqui teria de proibir que o boleto fosse pago por alguém diferente do titular do boleto. No meu caso, que moro de aluguel, o boleto [de IPTU, por exemplo] vem em nome do dono do imóvel.” O colega de MPF respondeu: “No caso das lotéricas, é mais fácil, basta uma resolução interna da Caixa. No mercado em geral, o boleto virou o antigo cheque ao portador, com o qual o cara podia fazer o que quisesse, uma vez que qualquer um pode pagar. Isso gera essa circulação de dinheiro sem que se saiba exatamente quem paga.” O debate só cessou quando Tony retomou o microfone para falar do passo seguinte ao da geração de dinheiro em espécie: o armazenamento e a entrega do dinheiro sujo no Brasil.
Até a década de 80, as notas ficavam no cofre das casas de câmbio ou das factorings controladas pelos doleiros. Depois, nos anos 90, Tony passou a alugar salas-cofre, cômodos adaptados para armazenar grandes quantias em dinheiro, no Rio e em São Paulo, com contratos de 24 meses. Mas havia dois problemas com essas salas: custavam caro e chamavam a atenção dos policiais. “Ou a Polícia Federal em algum momento chegaria na minha sala depois de uma denúncia anônima ou teria uma ‘mineira’ [pedido de propina] da Polícia Civil”, disse o doleiro.
A saída para esconder o dinheiro sujo, contou, foi alugar salas comerciais comuns, mas com controle de acesso, bem mais baratas e discretas, por períodos menores – dois meses, em média. “Se houvesse uma operação policial em uma dessas salas, não iria envolver as outras, porque cada sala estava em nome de uma pessoa [laranja]. Isso me protegia muito. Se eu estava em um prédio, com segurança, não teria o bandido olhando, o bandido… com todo o respeito… o bandido que iria me roubar ali.” Dessa vez, a plateia pareceu ignorar o deslize. Todos permaneceram em silêncio.
Tony e Juca Bala costumavam alugar esses imóveis no Rio e em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador. Eles também utilizavam quartos de hotel como cofres provisórios – a Odebrecht, por exemplo, preferia receber dinheiro de caixa dois nesses locais, afirmou Tony. “Eu escalava o meu funcionário com a melhor aparência, investia em bons ternos, e ele se passava por hóspede nos melhores hotéis de São Paulo sem levantar suspeitas.” Valores mais altos eram mantidos em empresas transportadoras, que levavam o dinheiro de uma capital a outra. “Muitos doleiros me procuravam exatamente por causa dessa mobilidade.”
Para trajetos mais curtos numa mesma cidade, havia duas estratégias. A mais comum era o uso de motoqueiros. Tony sempre os orientava a ocultar o dinheiro nas pernas. “Se for parado em uma blitz, vão olhar a cintura, a mochila, mas ninguém vai revistar as pernas.” Segundo ele, um rapaz alto consegue carregar até 250 mil reais em cada perna. Outro meio eram os táxis. Aqui, nova dica: o dinheiro nunca era transportado pelo taxista, mas pelo passageiro, funcionário de Tony. “Se o táxi é parado, o cara [policial] vai pegar o documento, olhar o motorista ou o porta-malas. Dificilmente vai revistar o passageiro.”
Os dois doleiros pareciam ter encontrado o esquema ideal de operação. Afinal, todas as possibilidades de insucesso foram pensadas com afinco e pareciam neutralizadas: eles contavam com um sistema de comunicação à prova de grampo; a salvaguarda das leis do Uruguai; bancos de dados com várias camadas de proteção e dezenas de funcionários para executar as etapas mais sensíveis da lavagem, como a abertura de contas no banco ou o transporte do dinheiro. Tony e Juca Bala só não contavam com as vulnerabilidades do ser humano.
Para compreender o que levou ao desmoronamento dessa engenharia do crime, é preciso voltar ao final de 2015, quando executivos da Andrade Gutierrez, acuados pela Operação Lava Jato em Curitiba, decidiram fechar acordos de delação com a Procuradoria-Geral da República. Nos depoimentos da colaboração, Clóvis Renato Primo e Rogério Nora de Sá, ambos diretores da empreiteira, citaram o pagamento de propina para agentes públicos do Rio na reforma do estádio do Maracanã nos meses que antecederam a Copa do Mundo de 2014.
As informações foram então remetidas para o MPF fluminense. Seis procuradores do Rio, incluindo Eduardo Gomes El Hage, 38 anos, e Rodrigo Timóteo Costa e Silva, 41 anos, decidiram replicar o modelo das investigações adotado no Paraná e criaram uma força-tarefa, com participação da Polícia Federal e da Receita Federal. Em poucos meses de investigação, descobriram que o esquema de formação de cartel das empreiteiras e o superfaturamento de licitações mediante suborno começara bem antes, em 2007, quando Sérgio Cabral assumiu o governo do Rio, e havia se repetido em outras obras milionárias do estado, como a construção do Arco Metropolitano – rodovia de interligação de municípios no entorno da capital –, e o Programa de Aceleração do Crescimento em comunidades carentes, batizado de PAC Favelas.
A engrenagem da corrupção era liderada por Cabral, tendo como auxiliares diretos dois secretários, Hudson Braga (Obras) e Wilson Carlos Carvalho (Governo), além do economista Carlos Miranda, apontado como o operador financeiro do esquema – de acordo com os procuradores, ele era o “homem da mala” do então governador. Sucessivos pedidos de propinas às grandes empreiteiras, equivalentes a 5% de todo e qualquer contrato assinado com o governo estadual, causaram desvios de milhões dos cofres públicos – o MPF ainda não possui estimativa do total desviado. Cabral, Braga, Carvalho, Miranda e outros dez empresários foram presos na manhã de 17 de novembro de 2016 por determinação do juiz Marcelo da Costa Bretas – posteriormente, todos seriam condenados por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
A investigação não estava completa. Faltava descobrir detalhes de como era lavado o dinheiro. Já se sabia que Sérgio Cabral costumava adquirir joias, mas os anéis, colares e pulseiras, por mais valiosos que fossem, não cobriam todo o montante furtado dos cofres públicos. Uma semana após a prisão de Cabral os procuradores receberam a visita do advogado Antonio Augusto Figueiredo Basto, que atuara na defesa do doleiro Alberto Youssef durante as tratativas para o acordo de delação com a Lava Jato em Curitiba. Naquele dia, porém, o advogado estava representando outras pessoas: os irmãos Marcelo e Renato Chebar. Nem um nem outro constava no rol de investigados dos procuradores, mas os dois sabiam que seria questão de tempo até Miranda, o “homem da mala”, delatá-los ao Ministério Público. Por isso, Figueiredo Basto propôs um acordo de delação dos irmãos doleiros.
Renato e Marcelo Chebar tinham muito a contar aos procuradores. Eles conheceram Cabral no final da década de 90, quando o então deputado estadual passou a procurá-los para trocar pequenas quantias em dólares que seriam usadas em viagens ao exterior. No Carnaval de 2003, veio um pedido muito mais sério. Cabral, que fora eleito senador, disse estar preocupado com o escândalo do propinoduto que estourara meses antes no governo fluminense, envolvendo fiscais da Receita Estadual, e queria reforçar a proteção ao saldo de 2 milhões de dólares que mantinha em seu próprio nome no Israel Discount Bank, em Nova York, em uma conta batizada de “Eficiência”.
Como o dinheiro era fruto de propinas, o senador queria desvinculá-lo de seu nome e para isso pediu a ajuda de Renato Chebar. O doleiro topou a missão, e o dinheiro foi transferido para duas contas dos Chebar no mesmo banco. A partir de então, essas contas passaram a ser destinadas única e exclusivamente para administrar o dinheiro das propinas de Cabral. Regularmente, um funcionário do então senador entregava reais em espécie para os Chebar no Rio de Janeiro, e os doleiros se encarregavam de depositar quantia igual em dólares no banco nova-iorquino, por meio de operação dólar-cabo.
No início de 2007, o saldo nas contas chegava a 6 milhões de dólares. E muito mais viria a partir de janeiro daquele ano, quando Cabral assumiu o governo fluminense. Prevendo a nova escala de “negócios” dali em diante, Cabral trocou o funcionário entregador de dinheiro por um operador de propinas mais qualificado e de sua total confiança: Carlos Miranda, seu amigo de infância. Três ou quatro vezes por ano, os doleiros se reuniam com o governador para prestar contas dos valores mantidos no exterior. Como as movimentações se avolumavam, em dado momento os Chebar tiveram de pedir auxílio a Tony e Juca Bala, capazes de lavar muito dinheiro num curto espaço de tempo.
Ainda em 2007, no Uruguai, a dupla passou a usar os sistemas Bank Drop e ST para casar as operações dólar-cabo do esquema de Cabral com o de clientes que precisavam fazer o caminho inverso: transformar dólares de caixa dois no exterior em reais no Brasil, justamente para subornar agentes públicos – caso das empreiteiras, por exemplo. Por precaução, os Chebar decidiram pulverizar o dinheiro sujo de Cabral em várias contas mundo afora, sempre em paraísos fiscais: Suíça, Bahamas, Luxemburgo, Andorra… Em 2016, o saldo conjunto dessas contas era 101 milhões de dólares – o dinheiro foi entregue pelos Chebar à Justiça brasileira como parte do acordo de colaboração.
Os procuradores ficaram embasbacados com as revelações dos irmãos, mas um obstáculo surgiu logo nos primeiros depoimentos. Nem Renato nem Marcelo Chebar conheciam a identidade de Tony e Juca Bala – Renato sabia apenas que Juca era careca. O advogado Figueiredo Basto dizia à força-tarefa ser impossível chegar à dupla de doleiros, já que ela operava a partir do Uruguai, um país conhecido por proteger suas atividades financeiras. El Hage decidiu então arriscar uma cartada. Os procuradores tinham indícios do envolvimento, no esquema de Sérgio Cabral, de Enrico Vieira Machado, o ex-sócio de Dario Messer que havia trabalhado com Tony e Juca Bala. No final de um dos depoimentos de Marcelo Chebar, o procurador blefou. Disse ao advogado Luiz Gustavo Rodrigues Flores, sócio de Figueiredo Basto, que sabia ser Machado um dos doleiros do Uruguai.
Deu certo: dias depois, em dezembro de 2016, outro advogado de Curitiba, Adriano Bretas, trazia a proposta de delação de Machado, que, em sua colaboração, não só revelou a identidade de Juca Bala e Tony como deu detalhes de suas operações ilícitas. Com base nesses dados, em 20 de fevereiro de 2017, o MPF pediu à Justiça as prisões preventivas dos dois doleiros. O que não seria nada simples, uma vez que isso exigia um pedido de cooperação judicial entre Brasil e Uruguai e dependia da boa vontade do governo em Montevidéu.
Alheios às investigações do MPF e do Judiciário no Brasil, Tony e Juca Bala levavam a vida de sempre. Em fevereiro de 2017, o primeiro estava de férias no deserto do Atacama, Chile, enquanto o segundo vendia pranchas de surfe em sua loja em Punta del Este – o esporte é um dos seus hobbies antigos. A sensação de impunidade era tanta que, ao fechar a loja na hora do almoço, Juca Bala deixava na porta de vidro um papel com o número do seu celular no Uruguai, conforme imagens feitas por um jornalista da Rede Globo no início de fevereiro de 2017. Era o mesmo número encontrado pela Polícia Federal na agenda da secretária Maria Lúcia Tavares, que trabalhou no Departamento de Operações Estruturadas da Odebrecht. Na agenda, ao lado dos telefones, estavam anotadas as palavras “Juca”, “Vinicius” e “Montevidéu”.
Para surpresa dos procuradores do MPF no Rio, os pedidos de prisão tramitaram rapidamente no Uruguai. Tony e Juca Bala foram presos pela polícia do país na manhã de 3 de março do mesmo ano em Montevidéu – o primeiro foi detido no aeroporto, assim que desembarcou da viagem de férias no Chile. Depois da audiência de custódia com um juiz, ambos foram levados para o Cárcere Central, na capital uruguaia. Cada um passou a ocupar uma cela individual com 9 metros quadrados, mobiliada com uma cama de ferro e uma prateleira. O banheiro era coletivo – por isso estava sempre imundo –, e os detentos podiam circular livremente pelo andar. Duas vezes por semana, tinham direito a banho de sol. Juca Bala passava a maior parte do tempo calado; Tony adquiriu o hábito de correr todas as manhãs no corredor da penitenciária. “Passei a comer pouco e a ter uma vida regrada. Era a única forma de não enlouquecer ali dentro”, recorda.
Durante o tempo que ficaram no presídio, os doleiros viram um preso se suicidar por enforcamento e outro ser morto a facadas. Seus vizinhos eram narcotraficantes, homicidas, estupradores. As visitas familiares eram o único alívio que tinham – Juca Bala recebia a mulher; Tony, divorciado, seu único filho.
Na manhã de 19 de abril, a dupla teve uma visita inesperada: a dos procuradores El Hage e Costa e Silva. “Oi Juca, tudo bem?”, cumprimentou El Hage. “Meu nome não é Juca. Meu nome é Vinicius”, respondeu o doleiro. Os procuradores tentaram ser simpáticos. Explicaram que as provas contra ambos eram muito fortes e que eles seriam condenados a penas severas no Brasil. Em seguida, propuseram aos dois assinarem um acordo de colaboração com a Lava Jato no Rio. Tony gostou da ideia. “Eu esperava uma postura arrogante por parte dos procuradores, mas eles foram tranquilos e educados”, me contou.
Dias depois, os dois aceitaram a proposta do MPF. “Eu cheguei pro Vinicius e falei que faria a delação. E alertei que, se ele não fizesse também, iria pegar uns cinquenta anos de cadeia. Aí ele topou.” Ainda na prisão uruguaia, os dois assinaram um pré-acordo de colaboração. O processo de extradição se arrastou por várias semanas. Enquanto aguardavam, os dois doleiros foram procurados por um dos advogados de Dario Messer. “Óbvio que ele queria saber o que eu iria falar”, afirmou Tony durante a palestra no Centro do Rio. Surpreendentemente, o advogado apoiou a decisão da dupla de colaborar com o Ministério Público. “Mas, se eu delatar, vou ter que citar o meu financiador”, disse Tony. “Sim, perfeitamente, Dario está de acordo”, respondeu o advogado.
Em 28 de dezembro, após quase nove meses detidos no Uruguai, os dois doleiros chegaram ao Rio, em voo comercial, sem algemas, escoltados por agentes da PF. Foram para a Cadeia Pública de Benfica, onde já estavam Cabral, Hudson Braga e Carlos Miranda – este último também acabaria firmando acordo de colaboração com a força-tarefa. Os doleiros ficavam em outra ala do presídio, mas certo dia encontraram o ex-governador na biblioteca. “Falam que vocês são os meus doleiros. Eu nem conheço vocês.” Tony e Juca Bala nunca tinham estado frente a frente com Cabral. Nem precisavam.
Na manhã de 3 de maio de 2018, enquanto a dupla trocava Benfica pela prisão domiciliar com o uso de tornozeleira, a força-tarefa da Lava Jato deflagrou a Operação Câmbio, Desligo, a primeira desencadeada pelas investigações baseadas na delação dos dois doleiros. Foi a maior operação contra crimes financeiros no país desde o caso Banestado, com 45 mandados de prisão contra doleiros no Brasil e no Uruguai. Mas faltou prender o maior deles, Dario Messer, que não foi encontrado naquele dia nem nos meses seguintes – o MPF suspeita de vazamento da operação policial. Um de seus prováveis esconderijos é o Paraguai, onde possui fazendas e uma casa em Hernandarias, município vizinho a Ciudad del Este, na fronteira com o Brasil. No apartamento dele, no Leblon, os agentes da PF encontraram quilos de papel triturado, muitas joias e dezenas de quadros, inclusive doze pinturas de Di Cavalcanti – em uma delas há uma dedicatória feita em 1967 pelo próprio artista a Izaak Messer, com “carinho e admiração”. Havia também um retrato de Dario pintado à maneira de Van Gogh.
A delação de Juca Bala e Tony serviria de base para a Operação Furna da Onça, que levou à prisão, no início de novembro, de dez deputados estaduais fluminenses – “Furna da Onça” é o nome de uma sala na Assembleia Legislativa do Rio onde os parlamentares costumam se reunir antes das votações em plenário. Extratos no sistema ST dos doleiros comprovaram ser verídicas as delações de Carlos Miranda e de outros doleiros sobre o pagamento de um “mensalinho” àqueles parlamentares durante o governo Cabral. Um detalhe curioso marcou a operação. Na casa do deputado Marcos Abrahão, do Avante, em Rio Bonito, para evitar a apreensão de dois malotes de dinheiro alguém os jogou pela janela. De nada adiantou: a chuva de notas foi flagrada pelos policiais, e tudo foi recolhido.
Já passava de meio-dia e a aula na sede da Procuradoria Regional da República estava perto do final. Os dois doleiros chegaram ao último item a ser abordado: “Propostas para o combate à lavagem”.
São duas as ideias sugeridas por Juca Bala e Tony para dificultar a vida de quem queira imitá-los. A primeira é o que denominam “bancarização” da economia. Por ironia, o exemplo vem do Uruguai, que nos últimos anos tenta se livrar do epíteto “paraíso fiscal” e, em 2014, iniciou um amplo processo de inclusão financeira. Por um lado, forçou os bancos a incorporarem todos os uruguaios ao sistema bancário – metade da população do país não tinha conta-corrente. Por outro, obrigou as empresas a só pagarem o salário de seus funcionários por meio de depósito em conta, proibindo saques em espécie com essa finalidade – o que, no Brasil, a lei permite. A ideia do governo uruguaio é fazer com que o dinheiro circule mais eletronicamente e menos em espécie, o que facilita a fiscalização do poder público. “O mais importante é tirar dinheiro vivo de circulação”, resumiu Juca Bala. Eles citam o exemplo das fintechs, empresas de pequeno porte que atuam como bancos, mas sem dinheiro em espécie.
A segunda ideia proposta é dificultar a geração de dinheiro vivo a partir do pagamento de boletos, o que foi uma das grandes especialidades da dupla. “Para o banco receber um boleto pago por terceiros, só com justificativa, como nos Estados Unidos”, sugeriu Juca Bala. Coincidência ou não, em 10 de novembro a Febraban, a Federação Brasileira de Bancos, adotou uma plataforma única de cadastro de todos os boletos no Brasil, o que deverá evitar a circulação de boletos frios. Isso permitiu mudar as regras para o recebimento: desde aquela data, boletos podem ser pagos em qualquer banco, mesmo após o vencimento.
“As tipologias que a gente viu hoje são apenas algumas que podem ser praticadas”, afirmou o procurador El Hage. “Por isso acho importante esse contato próximo com os doleiros, para sabermos quais são as tipologias atuais. Há vinte anos era o Banestado, atualmente são os boletos, daqui a pouco será a criptomoeda. É importante essa atualização para sabermos o que está ocorrendo do lado de lá.” A palestra terminou, o público aplaudiu. Como se fossem dois scholars, os doleiros foram cercados por delegados e fiscais da Receita em busca de mais informações. A dupla parecia disposta a dirimir todas as dúvidas.
Desde aquele dia até 8 de novembro, já ocorreram outros oito encontros com Tony e Juca Bala no Rio e em Brasília, com a presença de 630 representantes de 27 instituições – procuradores da República, promotores de Justiça, policiais, fiscais da Receita e juízes. Até meados de dezembro, estão previstas mais cinco palestras. Sempre com a autorização da Justiça, uma vez que os eventos exigem deslocamentos para além do perímetro permitido na Barra da Tijuca.
“No começo eu ficava mais tenso, temia falar algo que a plateia já sabia. Mas peguei gosto. Agora conto até piada”, disse Tony. Ele pretende utilizar o seu conhecimento sobre crimes financeiros para também dar palestras para executivos de bancos. Recentemente, encontrou-se com Marcelo Chebar em uma audiência na Justiça Federal. “Ele veio chorando, pedindo desculpas. Eu falei que ele teve os seus motivos e eu não iria julgá-lo. Fomos homens para sermos doleiros, agora temos que ser homens para sermos delatores. Sei que sou considerado um traidor, mas fiz o que as circunstâncias exigiam. Dói saber que muita gente foi e ainda vai ser presa por minha causa, mas eu paguei pelos meus erros.”
Tony segue com a rotina matinal de exercícios físicos. Por causa das restrições de movimento, corre em uma rua vizinha. Prepara-se para percorrer os 42 195 metros da maratona do Rio, em junho de 2019 – um mês antes ele deve migrar para o regime aberto, sem tornozeleira, apenas com a obrigação de ficar em casa à noite. A partir de então, ele e Juca Bala pretendem viver no Uruguai, retornando ao Brasil de quando em quando para as palestras. Mas essa mudança depende, segundo El Hage, de um acordo com a Justiça uruguaia. Tony planeja investir em um restaurante vegano em Montevidéu, enquanto Juca Bala deseja reativar sua loja de pranchas de surfe. Outro plano de Tony é percorrer os 800 quilômetros do Caminho de Santiago, no norte da Espanha. Ao fim do trajeto, em Compostela, quer deixar na beira da estrada uma pedra gravada com o codinome que o consagrou entre os doleiros no Brasil. “Será o meu jeito de matar o Tony de vez.”