FOTO: GAL OPPIDO
Escutei sabiás-laranjeira
Eu vestia uma calça com suspensórios, escutava sabiás e imitava Rita Pavone
Ná Ozzetti | Edição 15, Dezembro 2007
O primeiro contato com a música é a lembrança mais remota que tenho. Eu ainda dormia num berço, no quarto dos meus pais. Acordei de madrugada e fiquei escutando os cães que latiam nas casas vizinhas. Passei um tempo me divertindo, comparando a distância entre o som de um latido e de outro. Pela primeira vez percebi por meio do som a tridimensionalidade do espaço. Essa mesma sensação sobrevive até hoje na minha escuta musical.
Naquela mesma noite tive uma impressão nítida de que aquilo quieto e escuro chamado noite tinha uma dinâmica diferente da claridade e da movimentação do dia e me senti, juntamente com os cães e tudo ao redor, integrada nesse todo, que a partir de então abrangia um espaço além do quarto, da casa e da rua. Quando pequena, dizem os mais velhos, meu avô materno me colocava sentada na mesa e me fazia cantar. Eu me lembro de ter cantado uma canção que aprendera com meus parentes, na cerimônia de casamento de uma prima, assim que a avistei entrando na igreja. Imagine a cena, com 2 anos e meio de idade, a todo pulmão: “Branca e radiante vem… [o nome da noiva], e acompanhando o… [o nome do noivo] amado”. Foi minha primeira e última experiência gospel.
Uma vez, eu viajava pelo litoral com tios e primos, todos numa perua Rural Willys do meu tio, quando o carro quebrou. Enquanto esperávamos por socorro, anoiteceu e meu tio, para distrair a turma, começou a ensinar a cantar Tristeza do Jeca, Luar do Sertão e outras. A voz grave do meu tio me acompanha desde então.
A primeira impressão sobre o poder da música eu tive na época em que freqüentava diariamente a casa de minha madrinha, onde meus primos escutavam insistentemente os primeiros discos dos Beatles. Aquela sonoridade, a beleza das canções, os ritmos e as vozes de Paul, John e George me fascinaram. A emoção mal cabia na criaturinha de 3 anos. Aprendi naqueles dias o quanto a música era infinita e tive certeza de que ela seria fundamental para minha vida.
Sempre que me encantava pelo canto de alguém, escutava insistentemente até desvendar os caminhos desse canto e conseguir reproduzir igualzinho. Só me considerava completa como cantora depois que conseguisse. Assim desenvolvi meu canto, desde a infância até o início da carreira profissional. A partir de então outras necessidades surgiram. Passei a buscar a minha personalidade, tanto na forma de expressar o canto como na adequação desse canto às características físicas da minha voz.
A primeira cantora que imitei foi a Rita Pavone, que eu via na TV. Eu vestia uma calça com suspensórios e cantava “Datemi un martello“.
Aprendi muito com a genialidade e a maestria do canto de Carmen Miranda. Passava semanas ouvindo sistematicamente suas gravações e tentando seguir os caminhos daquele canto cheio de surpresas, flexibilidade e graça. O modo como ela conduzia o samba, com divisões rítmicas quebradas, inspiradas na fala coloquial, me impressionava demais. Depois dela, com esse rigor, só João Gilberto. Que maneira de cantar era aquela?
Com o Rumo, grupo musical que integrei na década de 80, aprendi a ouvir e definir as notas musicais presentes na melodia da fala, o tal canto falado do Luiz Tatit. Foi assim que aprendi as entrelinhas das canções. Depois deixei que as próprias canções me revelassem seu conteúdo em detalhes e conduzissem o canto.
Nos trabalhos musicais aprende-se com os parceiros. Músicos alimentam músicos. A música pode ser individual. Para mim, é um projeto coletivo.
Na adolescência participava como ouvinte dos ensaios dos meus dois irmãos. Cada um teve sua própria banda. Meu sonho era participar delas, mas não havia a menor chance pois eles eram meninos e mais velhos. Até que um dia consegui uma vaga como backing vocal em um show do Dante. Subi naquele palco com uma vontade de dar gosto, foi maravilhoso soltar a voz em direção à platéia, que sensação incrível. Olhar nos olhos das pessoas, sentir o calor dos holofotes na pele, estar em companhia dos outros músicos. A experiência foi decisiva para que eu optasse por fazer música.
Minha casa é uma espécie de “Sítio do Picapau Amarelo”. No mesmo espaço convivem cavalos, galinhas, cães, gatos, pássaros, esquilos. Na minha fase mais xiita, eu estudava o modo como os animais emitiam os sons e que musculatura usavam para isso. Aprendo demais com eles. Um dia, observando e ouvindo um sabiá-laranjeira, transcrevi a melodia do seu canto e criei o refrão de uma composição. Depois percebi que cada sabiá tem sua própria melodia.
Aprendi a fazer haicais com a poeta Alice Ruiz. Acho que nunca aprenderei a fazer letras de música.
Tive um mestre caiçara que me ensinou a remar em pé nas canoas. Aprendi alguns segredos do mar e a tirar “fina” das pedras costeiras. Um privilégio.
Há uma ponte direta entre a música e a dança no meu trabalho. A relação é indireta. Não sou bailarina. Quem dança é a minha voz.
O primeiro professor de dança foi o Klauss Vianna. Foi nesse período que tomei conhecimento da musculatura interna de sustentação do tronco. Os exercícios aplicados a esse tema específico me fizerem entender melhor a anatomia da voz. Essa base é fundamental para o canto. O canto não se inicia nas cordas vocais, e sim no tronco do corpo.
Nos estudos de dança aprendi sobre a estrutura do esqueleto, da musculatura, as dinâmicas de movimento e improvisações. Cada um dos meus mestres trouxe uma abordagem diferente do corpo. Isso foi fundamental para a prática musical.
Dei muitas aulas de canto. A percepção da singularidade do conjunto da voz física e da personalidade musical dos alunos me induziu a desenvolver uma didática que personalizava o ensino de cada um, ajudando-os a explorar suas expressividades e desenvolver suas técnicas. Aprendi mais com meus alunos que eles comigo.
Fui e continuo tímida para a maioria das coisas, mas nunca para cantar.
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