A vida de Michael Atiyah lembra a de um herói grego: o ideal de beleza na matemática, a escala monumental de sua obra e o confronto trágico entre seus sonhos e o julgamento dos colegas FOTO_WWW.JAMESGLOSSOP.COM
A estrela polar e o fim da vida
Elegia para um amigo que partiu
Matilde Marcolli | Edição 149, Fevereiro 2019
Tradução de Adriano Scandolara
O Heidelberg Laureate Forum é um evento científico anual que goza de imenso prestígio desde sua primeira edição, em 2013. Em Heidelberg está a mais antiga universidade alemã, fundada em 1386. O objetivo do fórum é dar a jovens pesquisadores excepcionalmente talentosos a oportunidade de interagir por uns dias com nomes de primeira grandeza da matemática e das ciências da computação. Em 20 de setembro de 2018, o Twitter do evento anunciou: “As palestras do #HLF18 estarão disponíveis no canal do HLF no YouTube imediatamente após o início da programação, incluído aí um potencial abalo sísmico na #mat: a prova da hipótese de Riemann por sir Michael Atiyah!”
Em cinco linhas, o comunicado reunia dois personagens que inspiram reverência a qualquer pessoa familiarizada com as ciências exatas. Então com 89 anos, Atiyah, britânico de origem libanesa, ganhador da Medalha Fields e do Prêmio Abel – as duas maiores distinções atribuídas a um matemático –, é um dos gigantes da área dos últimos cem anos. Já Bernhard Riemann, nascido na Alemanha em 1826, integra o rol das figuras seminais da disciplina em todos os tempos.
Riemann morreu antes dos 40 anos. Suas obras completas cabem num volume “que ocupa menos de 3 centímetros de estante”, conforme descreve o matemático americano Robert Osserman em Poetry of the Universe [A Poesia do Universo]. Certas ideias que formulou não só transformaram a matemática, mas também, aplicadas à física por cientistas como Einstein, revolucionaram nossa compreensão do universo. Várias delas continuam a ser vigorosamente exploradas, mas nenhuma desperta tanto fascínio quanto a hipótese que leva seu nome.
Hipóteses são problemas abertos à espera de prova. O desafio de provar a conjectura de Riemann vem derrubando gente muito boa há mais de 150 anos. Poucos problemas se mostram tão resistentes ao ataque das inteligências mais fulgurantes, a tal ponto que, para evitar o risco do ridículo, muitos matemáticos trabalham nele em segredo. Assim, quando finalmente são derrotados, poupam a si mesmos do espetáculo público de reconhecer a própria soberba; a clandestinidade os livra de admitir que se imaginaram à altura do problema.
Por isso a comoção quando Atiyah anunciou que apresentaria a prova da hipótese de Riemann no encontro de Heidelberg. A plateia que ocupou o auditório naquela segunda-feira, 24 de setembro, primeiro dia do evento, estava tão atenta quanto ressabiada. Nos últimos anos de sua vida, Atiyah vinha oferecendo soluções dúbias para alguns problemas importantes. Eram 9h45 quando ele subiu ao palco. Não demorou muito para que a comunidade matemática confirmasse o que já suspeitava: não havia prova nenhuma. Um especialista diria mais tarde: “O primeiro conceito matemático que apareceu ali era incompreensível. Ou melhor: não fazia sentido.”
O que aconteceu em seguida diz muito sobre os tempos que vivemos: uma tempestade nas redes sociais, alimentada por ressentimento, piedade e troça. Atiyah viria a falecer menos de quatro meses depois, em 11 de janeiro. Estava ferido. Na semana seguinte, a italiana Matilde Marcolli, do Departamento de Matemática da Universidade de Toronto, postou em seu blog uma homenagem ao amigo que tanto admirava.
“Marcolli é uma matemática maior”, diz o brasileiro Artur Avila, Fields 2014. “O artigo dela é um confronto com a sociedade de hoje, em que todo erro imediatamente vira escândalo, se torna ridículo. Errar não é um problema. Errar de maneira tão pública, sim. Não sei se se pode dizer que a comunidade matemática agiu com crueldade. Algumas pessoas provavelmente sim, mas, de modo geral, o que se fez foi aplicar ao Atiyah os mesmos mecanismos de rigor que regem a nossa disciplina. É como agiríamos em relação a qualquer pessoa que apresentasse uma prova. Anunciar a solução da hipótese de Riemann é arriscado e estranho, uma coisa geralmente associada a matemáticos amadores com delírio de grandeza. Claro, não era o caso do Atiyah, de maneira nenhuma. Ele foi uma das grandes personalidades da matemática do século xx. Sua importância fez com que a comunidade matemática dedicasse às especulações dele uma atenção que não dispensaria a alguém de menor expressão. Talvez tenha faltado um amigo crítico, alguém para aconselhá-lo a não se expor numa palestra sobre um trabalho ainda tão incipiente.”
As observações de Avila prosseguem no mesmo tom realista: “Nossa área é de fato muito cruel. Você precisa sustentar o que diz com a prova, independentemente de quem você seja ou do que já tenha feito. Na matemática não existe argumento de autoridade. Ou está certo ou não está. A dimensão humana desaparece diante desse rigor binário, e isso soa muito duro. Nesse sentido, a Marcolli escreveu um texto de ciências humanas. Ela leva em conta a fragilidade humana, o que não faz parte da matemática. Tenta enfrentar o problema de como tratar as pessoas numa disciplina que, em última instância, é apenas exata. Existem várias respostas ao que aconteceu. Essa foi a resposta que ela encontrou.” É o texto que publicamos a seguir.
A REDAÇÃO
Quando nos aproximamos dos 90 anos de idade, a morte não chega de maneira inesperada: ela é a sombra silenciosa que caminhava ao nosso lado, que já conhecíamos intimamente muito antes do encontro final. Assim é a natureza das coisas, mas, como sabemos muito bem, os sentimentos de amizade ignoram por inteiro tais considerações: quando choramos a perda de um amigo, nosso luto não se importa com o fato de que isso seria de se esperar logicamente. Não vou escrever aqui o obituário que todos leram, que todo mundo correu para publicar, desde o New York Times (que confessou estar com o seu já escrito desde 2015) e a BBC até as várias academias científicas nas quais ele teve cargos importantes e as universidades britânicas de prestígio em que lecionou. Não apresentarei ao leitor o homérico “catálogo das naus”,[1] listando as conquistas científicas, prêmios e teoremas famosos. Se alguém busca visões de heroísmo matemático, tem à disposição sete volumes[2]: pegue na biblioteca um tomo qualquer das obras reunidas dele, abra numa página ao acaso e comece a ler. Você encontrará beleza e poesia em forma matemática.
A ideia da beleza como uma luz que nos guia, a estrela polar dos navegadores matemáticos, não é novidade: afinal, a matemática e a beleza estética estão estreitamente ligadas desde pelo menos o cânone clássico dos gregos. A obra de Michael Atiyah é, toda ela, uma das manifestações mais admiráveis desse princípio, no desenvolvimento da matemática contemporânea. Mesmo quando chega ao ponto de maior exigência de profundidade técnica, uma obra mantém sempre certa ideia de elegância, de fluidez suave (mesmo que não seja fácil) pelo caminho de menor resistência que atravessa a paisagem de nossa apreciação estética. Para aqueles que se perguntam se a matemática deveria ser vista como ciência ou forma de arte temos aí bastante material para reflexão: acredito que seja as duas coisas e talvez, ao mesmo tempo, nenhuma delas.
Muito já foi dito ao longo dos anos sobre como a matemática e a física teórica se separaram no século XX, depois começaram a se reconciliar e a encontrar novas formas de convergência num nível muito mais sofisticado do que antes. O próprio Atiyah teve um papel crucial na emergência dessa fase recém-descoberta de interação mútua, primeiro com o seu desenvolvimento matemático das teorias de calibre, depois com o apoio vigoroso que deu ao desenvolvimento atual da teoria das cordas. Ele sempre prestou atenção às muitas outras áreas da matemática nas quais se dava de maneira interessante a interação com a física teórica. Antes de me dedicar à matemática, eu me tornei uma especialista em física teórica. Lembro que o primeiríssimo artigo de pesquisa que li quando ainda era aluna de física foi a “Construção dos Instantons” de Atiyah, Drinfeld, Hitchin e Manin:[3] tive muita sorte em me tornar depois amiga próxima e colaboradora de dois dos autores.
Existe algo de inapreensível sobre a ideia de beleza como um princípio que guia a pesquisa matemática, algo misterioso. Afinal, é bom admitirmos, na maior parte do tempo pelejamos muito para botar as coisas para funcionar, e não parece haver muita beleza e apreciação estética serena nisso. Todos nós concordamos que o belo é a verdade e a verdade é o belo quando estamos diante de uma urna grega,[4] mas e quando temos na nossa frente cálculos que ainda não deram certo? A chave aqui, a habilidade especialíssima que possibilita isso, é conseguir ver além, ter um horizonte maior e mais profundo, conseguir ver a estrutura em larga escala antes do detalhe, sem implicar, porém, que o detalhe seja desimportante no processo: “Uma grande teoria matemática deve ser bela em pequena e grande escala.”[5]
A ideia de que deveria haver uma estrela polar em nossas noções de beleza e elegância, conduzindo o processo da criatividade matemática, está intimamente ligada à noção de que as ideias matemáticas têm uma origem distante daquela forma polida que vemos como o resultado final do processo: “As pessoas pensam que a matemática começa quando você escreve um teorema seguido pela prova. Esse não é o começo, mas o fim. […] Você está tentando criar, como um músico tentando criar música, ou um poeta. Não tem regras prontas.” A parte mais notável, mas infelizmente menos documentada, da invenção matemática é quando você começa a confiar o suficiente nessa intuição vaga, desenvolvendo-a aos poucos ao longo do tempo até formar uma obra sólida e profunda: “A parte doida da matemática é quando uma ideia aparece na sua cabeça. […] Ela flutua no céu; você olha para ela e admira suas cores. Ela simplesmente fica lá, parada.” É bom ter em mente que é assim que tudo, todo esse imenso edifício formado pela obra matemática, começa de fato a tomar forma. Lembro quando um então professor do mit [Instituto de Tecnologia de Massachusetts] comentou comigo que Atiyah tinha um talento especial para fazer seus artigos entrarem para a história da matemática: ele não fazia um elogio, mas na verdade era. Os artigos de Atiyah entraram triunfais para a história da matemática porque tantas vezes ele simplesmente foi capaz de enxergar as aberturas certas nas quais uma nova ideia poderia se encaixar com perfeição, como a chave que destrancaria a porta para uma passagem que abriria todo um novo caminho e acabaria se tornando uma extrema influência para todos os desenvolvimentos posteriores no campo. Era um caso de criatividade matemática no que ela tem de melhor.
Atiyah diversas vezes criticou as divisões sectárias e o territorialismo feroz da matemática: “Não gosto de fronteiras, sejam elas políticas ou intelectuais, e acho que ignorá-las é um catalisador essencial para o pensamento criativo.” Algumas pessoas, com razão, se deram também ao trabalho de mencionar, em seus elogios fúnebres, o desejo genuíno que Atiyah tinha de construir uma comunidade matemática melhor e mais inclusiva, a atenção que dedicava às várias formas, implícitas e explícitas, de discriminação no mundo matemático e na sociedade em geral, a sua postura amistosa, acessível, e o seu bom humor. Não estou aqui para falar das muitas qualidades que cheguei a conhecer e a apreciar nele ao longo dos nossos anos de discussões, amizade e colaborações. Não estou aqui para tecer uma tapeçaria dourada com belas histórias da matemática, da física teórica e do jogo complexo entre a geometria e a física que ele revelou. Também não estou aqui para compilar uma biografia longa e complicada.
Meu propósito é outro. Temporariamente vestirei a capa e as sandálias do Marco Antônio de Shakespeare, para andar disfarçada pelo palco imaginário da comunidade matemática, que, ao longo dos anos, passei a ver como um lugar violento e hostil. Estou aqui para fazer um discurso que essa comunidade não deveria se dar ao luxo de ignorar nesta ocasião.
Eu venho enterrar César, não louvá-lo. […]
Foi meu amigo, justo, bom, leal; […]
Todos vocês, um dia, amaram César,
E não foi sem razão; então me digam:
O que os impede de chorar por ele?[6]
Por mais que agora todos estejam convenientemente fingindo se esquecer, muitos de vocês, meus compatriotas da Roma da matemática, foram os que, nos últimos meses, andaram espalhando aqui e ali inúmeros comentários desdenhosos que ninguém solicitou: por toda parte eram palpáveis sua condescendência, seu escárnio e sua rejeição, mas agora, ah, agora vocês são só elogios e gentilezas.
Porque Brutus é um homem muito honrado;
E os outros todos, homens muito honrados […].
Os matemáticos, todos eles homens honrados. Sim, assim são todos eles, homens honrados. Não contesto que as provas que Atiyah ofereceu de alguns enunciados famosos soavam dúbias. Portanto, não se escondam atrás disso, porque não é o que estou discutindo aqui. Todos os Brutus e Cássios têm razão a respeito desse ponto, são todos eles homens honrados. Então, por favor, não ocultem suas adagas atrás da exegese matemática desse ou daquele texto: isso não vai ter serventia.
Não venho contrariar o que ele [Brutus] disse,
Só vim dizer o que eu conheço e sei.
O que é uma ideia matemática e como se forma? Deixem-me retornar por um momento às citações que mencionei antes: as ideias são uma coisa doida e flutuam no céu, têm mais cor do que substância, um teorema é o fim, não o começo. Essas declarações não são metafóricas, de verdade: era realmente assim que a mente matemática maravilhosa de Michael funcionava, desde sempre. A ideia doida que flutua no céu é a parte que vocês normalmente não chegam a ver: o que vocês veem é o teorema já todo polido e bonitinho que aparece muito mais tarde, no fim do caminho. A doidice desapareceu, deixando um rastro de deslumbramento que faz com que você reflita, diante do produto final, como foi que tudo isso surgiu. “Durante o dia, os matemáticos olham suas equações e suas provas e não deixam pedra sobre pedra em sua busca pelo rigor. Mas, de noite, sob a lua cheia, eles sonham, flutuam entre as estrelas […] Sem os sonhos não existe a arte, não existe a matemática, não existe a vida.”
O que aconteceu então? O que acontece quando os sonhos da noite de repente invadem a realidade do dia? Já ouvi diversos comentários nos últimos meses de pessoas tentando defender a circulação pública (sem o consentimento do autor) e a discussão em público de escritos destinados apenas aos olhos de um pequeno número de amigos. Não sei quem foi que tratou a confidencialidade de forma tão leviana. Parece que há uma parte de nós, que cresce cada vez mais, que gostaria de policiar em público (e brincar de “curti”/“não curti”) até mesmo as nossas ideias matemáticas mais íntimas e ainda mal formuladas. O único efeito que poderá ter este pan-óptico voyeurístico de vigilância matemática de vocês será o de matar todos os pensamentos. Precisamos da noite, da lua cheia, de flutuar entre as estrelas. Temos que ser capazes de formar ideias selvagens e inconclusivas e só muito mais tarde, à luz do dia, descartá-las, após as ponderarmos por tempo suficiente para conseguirmos aprender com elas: aprendemos com as ideias que funcionam, mas também com as que não funcionam. Temos que ser capazes de confiar naqueles com os quais podemos contar para ouvir nossas confidências na fase inicial e para tentar ao menos ver o que nessa etapa vai parar em pé, enquanto tentamos processar tudo. É um procedimento delicado que às vezes cai por terra e às vezes decola. Isso é a matemática, é assim que funciona.
A comunidade matemática, tal como a conhecemos, ama seus membros mais velhos, mas só quando eles desaparecem em silêncio. É claro que a comunidade gostaria de vê-los exibidos por aí em eventos especiais, mas só para contar uma história ou outra. A discriminação por causa da idade é brutal, extrema e praticada sem piedade. Em face dessa brutalidade, é um desafio e um ato de extrema ambição continuar a ser o que se é, um matemático.
Que assim seja com César. O bom Brutus
Disse que César era ambicioso.
Se for verdade, eis um grave crime
E César foi punido gravemente.
Michael era uma pessoa muito sociável, o que é um pouco raro entre matemáticos. Ser naturalmente sociável oferece vantagens numa comunidade saudável, mas, se a comunidade é tóxica e disfuncional, a pessoa acaba mais exposta e mais vulnerável a facadas nas costas. Ele reclamou muitas vezes, ao longo dos anos, do etarismo virulento da comunidade matemática. Muito recentemente, na nossa última conversa mais longa, ele me contou que se sentia um prisioneiro numa comunidade que ele havia amado por muito tempo, uma vez que o seu acesso a espaços onde poderia compartilhar e discutir suas visões e sonhos matemáticos vinha diminuindo mais e mais. Ele me disse então que vinha se fiando, sobretudo, em amigos, com os quais compartilhava as suas ideias em particular. Mas um amigo, infelizmente, é uma joia rara, e a privacidade, terreno dos mais violados.
Não é apropriado
Que saibam como César os amava.
Mas por que a urgência, o leitor vai me perguntar, por que se apressar para compartilhar, com os poucos ou muitos, ideias ainda em maturação, por que não passar antes pelo mesmo processo lento de destilação que leva às formas finais, sólidas e polidas, que estamos acostumados a ver? Essa aceleração contínua do tempo subjetivo é um fenômeno psicológico bem conhecido que vivenciamos muitas vezes em nossas vidas. Em algum ponto ela chega a um auge frenético, produzindo um sentimento irresistível de que o tempo está acabando, uma pressa que tudo consome. Todos os que têm amigos na mesma faixa etária que ele certamente já vivenciaram, mesmo a distância, a pressão crescente dessa aceleração enorme. Não é desaceleração o que ocorre quando a vida está para terminar, como imagina o senso comum, mas a conflagração ultravioleta de uma aceleração explosiva.
Numa entrevista dada alguns anos atrás, Michael disse, brincando: “A maioria das pessoas vai falar: ‘O.k., ele foi um bom matemático, mas, no fim da vida, estava com alguns parafusos soltos.’” É claro que vocês dirão: “Você disse o que era mais fácil dizer, independentemente da realidade factual.” É assim que funciona o preconceito: ele substitui uma realidade complexa com uma simplicidade fictícia. Para a informação de vocês, não houve nenhum “problema da idade”, não no mesmo sentido que suas “piadinhas” e insinuações de mau gosto sobre declínio cognitivo. Houve, sim, alguns estados de bipolaridade que vocês nem sequer tentaram compreender, tão mergulhados que estão em sua sopa primordial de preconceitos, tão adaptados ao seu ecossistema putrefato.
Havia uns picos súbitos de energia cósmica, o fluxo rápido de comunicações enviado no meio das noites inglesas que empilhava montes de ideias como se a ordem linear normal do tempo e da linguagem fosse inadequada demais para transmitir tudo aquilo que se precipitava a florescer: outra estrela polar que brilha forte demais. Os períodos mais sombrios, porém, em sua maior parte, eram silenciosos. Mas eu passei, com o tempo, a entender que, mesmo nessas horas, a presença de amigos era bem-vinda. Sinto falta dessa época, tanto dos momentos de entusiasmo quanto dos outros: eles nem sempre eram os melhores para discutir matemática (mas, bem, talvez fossem, às vezes), mas eram sempre especiais e significativos.
O que foi? Vocês preferiam não ter que ler sobre isso? Então podem devolver os sete volumes das obras dele para a biblioteca de uma vez e sumir, porque, sinto muito, meus honrados amigos, mas entendam, por favor: não dá para ter um Atiyah sem o outro! Talvez, um dia, num mundo futuro, teremos a matemática sem os matemáticos, com teoremas criados por máquinas inteligentes; então, talvez, elas sejam capazes de gerar a beleza matemática sem os picos assustadores e os vales depressivos da criatividade humana. Eu duvido, mas, enquanto os pontos mais altos da beleza matemática forem um produto exclusivo da mente humana, devemos aprender a aceitar o pacote completo e aprender a apreciá-lo por inteiro, inclusive as partes que são desconfortáveis para o matemático mediano.
Seria injusto a Brutus e injusto a Cassius,
Que são homens honrados – todos sabem.
Será que sua tentativa não terá sido a de provocar a comunidade e forçá-la a confrontar alguns desses problemas? Era o que ele sugeria às vezes, mas não acho que teria funcionado: seria como tentar enxotar um porco que fuça num fosso cheio de lodo. Nem mesmo o seu drama real de dor e morte será capaz de comover esses mesmos homens honrados, de afastá-los dessa complacência embotada e de sua respeitável brutalidade. Alguns de vocês se aproximaram de mim e disseram: “Fale para ele ficar quieto.” Na verdade, queriam dizer que era melhor que ele morresse de uma vez. Bem, foi o que aconteceu, mas eu continuo viva e gostaria de lembrar a todos vocês: não pensem que eu vou ficar quieta só porque agora tentam esconder as suas adagas.
Em minhas visitas a Edimburgo, tive longas discussões com Michael e seu colega Andrew [Ranicki], um sujeito bom e generoso. Falávamos sobre matemática, mas também sobre como lidar com os difíceis altos e baixos da criatividade matemática e com a hostilidade de uma comunidade sempre ávida por colher os benefícios desse processo, cujo funcionamento se recusa a reconhecer, assim como o custo humano que ele acarreta.
Ao longo dos anos, Andrew, que compreendia bem a situação, sempre encontrou maneiras ponderadas, mas significativas, de ajudar, até o começo do ano passado, quando faleceu: outra rara alma amável e atenciosa em nossa comunidade que perdemos. Eu queria que Andrew ainda estivesse vivo: ele teria conseguido encontrar um modo mais delicado de dizer o que estou dizendo agora. Era da sua natureza ser uma pessoa gentil e amorosa. Eu não sou, e, além do mais, encarno neste momento o papel do Marco Antônio de Shakespeare.
Amigos, se têm lágrimas guardadas,
Fiquem prontos pra vertê-las. […]
Foi este o golpe mais cruel de todos;
Eu vi alguns dos e-mails que Michael recebeu nos últimos meses, em sua maior parte enviados por jovens matemáticos fazendo pós-doutorado em um lugar qualquer: alguns eram muito parecidos com o que se poderia chamar de hate mail. Temo que o que pude ver seja apenas a ponta do iceberg: em nossa última conversa, apenas algumas semanas antes de sua morte, Michael ainda reclamava do fluxo incessante dessas mensagens em seu e-mail, motivo de dor e distração. É isso que nós nos tornamos? É essa a nossa nova geração de répteis desprovidos de qualquer humanidade, moldados inteiramente como predadores não sencientes pela mais rígida seleção natural darwiniana da academia? Mais trágico ainda, além do próprio fato, é que o bem-estar de Michael dependia muito de ele manter boas relações com os jovens matemáticos. Ele adorava suas experiências como mentor formal ou informal dos alunos e como colaborador de pesquisadores mais jovens. Sempre foi naturalmente otimista: mesmo quando passava por dificuldades pessoais, imaginava um futuro mais feliz adiante e o aperfeiçoamento da matemática, como disciplina e como comunidade.
A ingratidão, mais forte do que as armas
Brandidas por traidores, derrotou-o;
E o seu potente coração rompeu-se;
Também estou aqui olhando diretamente para aqueles dentre vocês que o conhecem há mais tempo, os amigos em quem ele confiou: aqueles que vieram e foram embora, o mais rápido possível, quando ele pediu sua ajuda uns dois ou três anos atrás. Conheço todos vocês, eu não esqueço, e estou aqui, olhando para vocês. Porque foi mais fácil para vocês se confortarem com esse seu preconceito com relação à idade, que alimenta a si próprio, do que gastar um momento de seu tempo precioso a fim de tentar entender o que estava acontecendo. Foram sobretudo aqueles que ele mais se esforçou para apoiar, mesmo nos últimos anos, viajando longuíssimas distâncias quando não deveria fazê-lo, para seu próprio bem, aqueles mesmos de quem ele reclamou recentemente, da última vez que conversamos, como sendo os mais agressivos (estou falando com você, Brutus: eu o conheço bem, você sempre foi muito hábil em conduzir as pessoas ao desespero). Por quê? Eu pergunto a vocês todos: por quê? Que tipo de raiva ou medo toma de assalto a mente das pessoas e as deixa tão desumanas quando confrontadas com o fato de que os bastidores da matemática não são um jardim florido perfeito, mas um matagal cheio de espinhos, assim como a vida?
Os autores deste ato são honrados.
Infelizmente, desconheço as causas
E os agravos privados que os moveram.
Porém, eles são sábios, são honrados,
E hão de explicar, decerto, seus motivos.
Não vim roubar seus corações, amigos;
Acho que eu fui a única a ficar até o fim. Nenhum de vocês conseguiu enxergar o caminho estreito nas montanhas que cortava a paisagem acidentada e onde algum trabalho matemático pacífico ainda poderia acontecer, apesar da rápida alternância de desfiladeiros e picos, apesar dos rugidos crescentes das tempestades. Talvez isso tenha ajudado, ou pelo menos gosto de pensar que sim, mesmo com os pedacinhos e restos de trabalhos inacabados. Que isso me ajudou, eu tenho certeza: era um tipo de trabalho alegre, livre do fardo da expectativa e do preconceito. Por muito tempo eu pensei que tudo ia ficar bem. No final, não ficou, infelizmente, mas, acreditem, isso não era inevitável. É tarde demais agora para desfazer o que foi feito, mas ainda acredito que a comunidade matemática como um todo deveria dar um passo para trás, coletivamente, refletir sobre si mesma e buscar uma expiação a respeito do que houve.
Vocês não são madeira, não são pedras,
São homens simplesmente […].
As paisagens da Escócia são, ao mesmo tempo, duras e belas. Não deixa de ser trágico, num sentido shakespeariano. Nossos milênios de cultura acumulada nos treinaram para associarmos grandes conquistas humanas ao trágico em sua forma mais majestosa: o heroico e o trágico são a mesma coisa em nossa visão de mundo ainda bastante homérica. A vida e as conquistas de sir Michael Atiyah tiveram todas as qualidades das de um herói grego clássico: desde sua confiança em um ideal estético de beleza na matemática até a escala monumental de sua obra e o confronto trágico final entre seus últimos sonhos matemáticos e a resposta coletiva da comunidade. O grande drama shakespeariano chega ao fim, cai a cortina, e ficamos sozinhos naquele palco vazio, nos perguntando…
Eis um César.
E quando haverá outro?
[1] Em sentido figurado, refere-se à célebre passagem da Ilíada (Canto II, 484-759), em que Homero enumera os povos gregos que foram à guerra contra Troia. A passagem ficou conhecida como “catálogo das naus”.
[2] Referência a Michael Atiyah: Collected Works, publicadas pelo selo científico da editora da Universidade de Oxford. Cinco volumes foram lançados em 1988. O sexto saiu em 2004 e o sétimo, em 2014.
[3] “Construction of instantons”, publicado em 1978 por Atiyah e os matemáticos Vladimir Drinfeld (1954, ucrano-americano), Nigel Hitchin (1946, britânico) e Yuri J. Manin (1937, russo-alemão).
[4] “Beauty is truth, truth beauty”, verso de Ode sobre uma urna grega, do poeta inglês John Keats (1795-1821).
[5] Todas as citações foram extraídas de textos, palestras e entrevistas recentes de sir Michael Atiyah. [Nota da autora.]
[6] Todas as citações em itálico são da peça Júlio César, de Shakespeare, ato III, cena II [na tradução de José Francisco Botelho, editada pela Penguin/Companhia das Letras].
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