Afastado da Presidência, Collor deixa o Planalto com Rosane, no dia 2 de outubro de 1992: “Pressinto um novo arrebol de decência no destino da pátria”, disse o senador Amir Lando CRÉDITO: RICARDO STUCKERT_AGÊNCIA O GLOBO_1992
Exumação de uma Presidência
O impeachment de Collor, ocorrido há trinta anos, ainda ensina sobre o que leva um governo ao colapso
Rafael Mafei | Edição 195, Dezembro 2022
No dia 8 de dezembro de 1992, terça-feira, pouco depois das 17 horas, o secretário-geral da Mesa do Senado, Guido Faria de Carvalho, chegou à mansão da família Collor, conhecida como Casa da Dinda, no Lago Norte, em Brasília. No início de outubro daquele ano, Carvalho havia sido designado escrivão titular do processo “Diversos nº 12”, despretensioso nome oficial do primeiro processo de impeachment que levou à condenação de um presidente da República no Brasil, um marco que completa trinta anos no dia 30 de dezembro.
Carvalho estava acompanhado de dois seguranças do Senado e de Raimundo Carreiro Silva, então escrivão substituto do processo contra Fernando Collor de Mello, eleito presidente pelo Partido de Reconstrução Nacional (PRN). Ambos foram recebidos por um sargento do Exército que fazia a segurança de Collor, já afastado da Presidência desde o dia 2 de outubro, após o plenário do Senado ter recebido a denúncia que pedia sua condenação por crimes de responsabilidade. Ao militar, Carvalho informou que estava ali a fim de entregar ao presidente a intimação para comparecer à sessão de seu julgamento no Senado, marcada para 22 de dezembro. Depois de ser ministro do Tribunal de Contas, Carreiro é hoje o titular da prestigiosa embaixada brasileira em Portugal.
No rito brasileiro dos processos por crimes de responsabilidade contra presidentes da República, ao contrário do que acontece em países como os Estados Unidos, a autoridade acusada é afastada do cargo antecipadamente, com o recebimento da acusação pelo Senado. Isso significa que, embora o presidente siga, em tese, como titular do cargo, na prática todo o poder de governo se desloca precocemente para o vice. Com isso, restam ao presidente poucas condições de se defender politicamente. Na ausência do apoio de um partido importante e de uma base social mínima – que Collor, ao contrário de Dilma Rousseff, nunca teve –, essa situação pode levar ao isolamento, à desilusão e, pior ainda, à humilhação.
Carvalho foi instruído pelo sargento a ir até a administração da propriedade da família Collor, do outro lado da rua. Lá, foi atendido por outro militar, um tenente, e na sequência conversou com um terceiro militar, dessa vez um capitão de corveta da Marinha, que explicou que Collor estava ocupado e não poderia receber a comitiva do Senado. Sugeriu que Carvalho marcasse uma audiência formal em outro dia. Os servidores só conseguiram realizar a intimação porque o advogado de Collor, José Guilherme Villela, foi localizado no Senado e aceitou dar-se por ciente do ato. Mas isso não garantia que o julgamento pudesse ocorrer no dia 22 de dezembro.
Fugir dos escrivães foi mais uma das chicanas praticadas por Collor na reta final. Além de se esconder para não ser intimado da data de seu julgamento, ele tentou estender seu processo, insistindo na realização de uma perícia técnica na Casa da Dinda. A Comissão de Impeachment do Senado, presidida pelo senador e ex-promotor de Justiça Antônio Mariz (PMDB-PB), recusou a prova pedida pela defesa, por entendê-la protelatória e irrelevante: a acusação contra o presidente independia de questões técnicas de engenharia ou de avaliação imobiliária. O que de fato importava era que as reformas na casa da família Collor haviam sido pagas com recursos de um esquema operado pelo traficante de influências Paulo César Farias, o PC. O presidente tentou também recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para adiar o julgamento, mas a Corte deu de ombros: em 17 de dezembro, cinco dias antes da data marcada para a sessão final, negou o mandado de segurança impetrado pela defesa do presidente afastado. A acusação estava na cara do gol para sacramentar a queda de Collor dali a cinco dias.
Mas Collor não desistiria fácil. No dia 21, véspera do julgamento, destituiu os dois advogados que o representavam no processo de impeachment. Como qualquer réu bem informado sabe, a constituição de um novo defensor instantes antes do julgamento muitas vezes obriga ao adiamento da sessão, pois a nova defesa precisa de um mínimo de tempo para preparar sua atuação. A fim de evitar o adiamento, o ministro Sydney Sanches, presidente do STF que conduziu o processo contra Collor, tentou constituir como defensores dativos (isto é, escolhidos pelo juiz, e não pelo acusado) os mesmos advogados que Collor acabara de dispensar. Eticamente, ambos recusaram.
A sessão teve de ser remarcada. Ficou para 29 de dezembro. Dessa vez, o presidente do STF não seria pego desprevenido: Sanches logo indicou um advogado dativo para estar presente na nova sessão de julgamento. O encargo recaiu sobre Inocêncio Mártires Coelho, que havia pouco se aposentara do Ministério Público Federal, após ter chegado a procurador-geral da República. O presidente do STF lhe enviou antecipadamente uma cópia de todo o processo, para que já se preparasse caso ocorresse uma nova troca de advogados na última hora. Os préstimos de Coelho, porém, não foram necessários, pois os advogados de Collor compareceram à sessão do dia 29. O presidente ainda guardava na manga uma última carta para embaraçar a conclusão do julgamento, mas só lançaria mão dela no dia do veredito: a renúncia, instantes antes do início da sessão. A manobra, que visava impedir a perda de direitos políticos, foi recusada pelos senadores, e Collor acabou inabilitado por oito anos.
O impeachment de Fernando Collor foi o evento inaugural da chamada era das Presidências interrompidas, que desde a década de 1990 tem derrubado os chefes do Executivo de diversos países, principalmente na América Latina.
A fogueira na qual a Presidência de Fernando Affonso Collor de Mello, na época com 43 anos, queimou até virar cinzas foi acesa por seu irmão, Pedro Collor de Mello, de 40 anos, em uma entrevista à revista Veja, em maio de 1992. Com o título O PC É o Testa de Ferro do Fernando e ilustrada com uma foto do caçula da família Collor sentado, de ombros erguidos e com as mãos sobre as pernas cruzadas, a entrevista deixava claro que a investida de Pedro visava tanto o irmão quanto seu braço direito, PC Farias.
Paulo César Farias estava na mira da imprensa havia algum tempo, tanto pela influência que mostrava no governo – onde colocou vários apadrinhados, inclusive seu irmão, o médico Luiz Romero Farias, nomeado secretário executivo do Ministério da Saúde –, quanto por falcatruas, entre elas furos inexplicáveis em seu imposto de renda. As desavenças entre Pedro, de um lado, e Fernando e PC, de outro, estavam relacionadas a disputas pelo controle dos negócios da família Collor em Alagoas.
A investida de Pedro Collor teve peso decisivo na derrocada de seu irmão, mas é importante não ignorar outros fatores que criaram a tempestade perfeita que liquidou o governo de Fernando Collor. Muitos deles tiveram a contribuição direta do próprio presidente, como a relação difícil com seu vice, Itamar Franco (PRN), e a antipatia pessoal que angariou para si pela sequência de humilhações públicas às quais submeteu a primeira-dama, Rosane Collor (atualmente, Rosane Malta).
Outros fatores foram políticos e sociais, como um plano econômico radical que fracassou e fez ruir sua estratégia para manter-se forte e politicamente independente, perante um Congresso no qual seu partido tinha pouca força. Outros foram históricos e contextuais: a redemocratização veio com uma imprensa calejada, mais combativa e mais profissionalizada, recentemente libertada do garrote da censura, e que produzia notícias sobre os bastidores do poder para um público entusiasmado com política, eleições e tudo aquilo que a ditadura roubara – inclusive o direito de encher as ruas pedindo a deposição do político que ocupava o mais alto cargo do país.
Dentre todos esses ingredientes, possivelmente o mais decisivo para o colapso de Collor foi seu fracasso altissonante em cumprir a maior promessa do seu governo: “liquidar” – como ele disse no discurso de posse – a inflação escorchante que vitimava a economia brasileira.
Logo no primeiro dia de seu mandato, 15 de março de 1990, o novo presidente editou um conjunto de medidas provisórias (MPs) que davam corpo ao Plano Brasil Novo, apelidado pela imprensa de Plano Collor. Consistia, principalmente, no bloqueio de ativos em diversas aplicações financeiras, inclusive as que os assalariados das classes baixa e média recorriam para se proteger da inflação: a poupança e o overnight. Na poupança, foram bloqueados saques acima de 50 mil cruzeiros (o equivalente a 12 mil reais). De uma hora para outra, famílias que juntavam recursos para quitar empréstimos, pagar viagens, comprar a casa própria ou investir em algum negócio, viram-se tungadas, sem dinheiro até mesmo para completar as compras do mês em muitos casos.
Collor apostou tudo nesse pacote econômico heterodoxo. Se as medidas tivessem liquidado a inflação, como ele prometera, seu prestígio possivelmente teria sido comparável ao que obteve Fernando Henrique Cardoso com o Plano Real, em 1994. Isso teria sido decisivo para sua relação com o Congresso. Afinal, que partido pagaria o preço de ficar contra o governo que conseguira resolver a grande emergência econômica e social do país? Basta lembrar o quanto o PT foi, e ainda é, cobrado por ter feito oposição ao Plano Real. Em muitos momentos, Collor parecia um político excêntrico, tresloucado até, mas sua estratégia política, nesse particular, não era sem fundamento.
De início, as medidas altamente recessivas derrubaram os preços, o que gerou aprovação de grande parte da população. O fato é que o pacote, por mais duro que fosse, causava impactos diferentes conforme os segmentos da sociedade. A população mais pobre, com poucos recursos na poupança, praticamente não sofreu confisco: só viu os preços pararem de subir nas prateleiras, e evidentemente gostou. A população mais rica se defendia de outras maneiras, inclusive porque tinha aplicações no exterior, legais ou ilegais – prática que não era incomum na época, dada a necessidade de se proteger da instabilidade econômica. A bomba do confisco estourou sobretudo no colo dos assalariados das classes média e baixa. Mas, quantitativamente, esses segmentos não eram suficientes para rebaixar a popularidade do governo. Collor – que não respondeu ao pedido de entrevista para este texto – deve ter ficado contente com os primeiros frutos que colheu com o Plano Brasil Novo.
A enxurrada de MPs dos primeiros dias de governo pegou o país desprevenido e deixou o Congresso sem reação. E Collor passou seu primeiro ano de mandato em uma situação relativamente confortável, pois dispunha de medidas provisórias que podiam ser reeditadas sem muitos constrangimentos. Nesse período, editou 151 MPs.
Na época, os mandatos da Presidência da República e do Poder Legislativo estavam descasados, e a nova legislatura só tomou posse um ano depois do presidente, no início de 1991. Como em ano eleitoral os congressistas estão mais preocupados com a própria eleição do que com o trabalho rotineiro da Câmara e do Senado, o Congresso não se moveu em 1990 para escrutinar, com o devido pente-fino, a constitucionalidade das MPs de Collor. Jogando praticamente sozinho, o Executivo pintou e bordou.
Ainda mais porque, como de início a acolhida popular ao Plano Collor e ao governo foi boa, partidos importantes como o PMDB e o PSDB viram-se sem condições de questionar o presidente. Ninguém queria arriscar a impressão de que jogava contra o plano de estabilização da moeda, algo que poderia ser prejudicial nas eleições legislativas de 3 de outubro de 1990. Com isso, mesmo sendo seu PRN um partido pequeno, as medidas encaminhadas pelo governo acabaram respaldadas tanto por legendas que haviam prometido apoiá-lo nas pautas econômicas, como PFL, PDS, PTB, PL e PDC, quanto por outros apoios de ocasião. Ou seja: de início, a estratégia política de Collor parecia funcionar.
Mas, à medida que a inflação começou a voltar e o setor produtivo passou a sentir os impactos da brutalidade do Plano Collor, o humor com relação ao governo virou. O presidente fora eleito com a promessa de fazer reformas que ajudariam o Brasil a se inserir na nova economia globalizada – reformas duras, que encontrariam muita oposição de setores importantes da economia e do Estado. Os anos 1990 viram o espalhamento da febre neoliberal na América Latina. Essa agenda fatalmente o colocaria em conflito tanto com a classe trabalhadora, pois Collor precisaria mexer na legislação trabalhista, previdenciária e tributária, quanto com a classe empresarial, por causa dos setores que haviam se acostumado com subsídios tributários e outros incentivos concedidos pelo desenvolvimentismo da ditadura militar. Talvez por isso ele tenha dito no discurso de posse que seu governo deixaria “a esquerda perplexa, e a direita indignada”.
Quando a inflação mostrou que viera para ficar, o governo reagiu com um novo pacote: o Plano Collor II, lançado em janeiro de 1991, pouco antes da posse dos parlamentares. O novo plano era uma combinação de medidas mais ortodoxas, como o controle de gastos, com heterodoxas, como o congelamento de preços. A essa altura, porém, a popularidade de Collor já havia despencado: na pesquisa Datafolha de um ano de governo, os índices de ruim/péssimo (34%) superaram os de bom/ótimo (23%). Entidades patronais e sindicais espelhavam o mau humor: enquanto a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) batia no governo por causa do congelamento de preços, as centrais sindicais criticavam os mecanismos de reajustes de salários e o caráter recessivo do pacote.[1]
Nesse cenário, os deputados e senadores empossados em 1º de fevereiro de 1991 já não precisariam andar a reboque do governo. Os novos presidentes da Câmara, Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), e do Senado, Mauro Benevides (PMDB-CE), assumiram prometendo independência e condenando o uso abusivo de medidas provisórias. Collor entendeu o recado e, entre fevereiro e dezembro de 1991, editou apenas seis MPs. Os grandes conflitos começaram, justamente, com a ameaça do novo Congresso de investir contra os poderes normativos do Executivo por meio de lei, o que deixou Collor enfurecido. A queda de braço transbordou para outras matérias. Câmara e Senado mostraram sua força em agosto de 1991, quando uma ampla coalizão de parlamentares, com nomes do PMDB ao PCB, aprovou uma lei salarial que contrariava projetos enviados pelo governo sobre a mesma matéria.
A articulação das legendas para aprovar medidas economicamente importantes mostrava que a importância relativa de Collor vinha diminuindo: ele deixava de ser liderança e tornava-se, pouco a pouco, um estorvo dispensável. Alguns deputados e senadores tiveram a ideia de colocar em pauta a alternativa parlamentarista, que passaria de vez o leme do país ao Congresso, escanteando definitivamente o presidente. Convenientemente, havia um plebiscito marcado para o feriado da Independência de 1993, quando o país escolheria a forma e o sistema de governo sob os quais viveríamos. Bastaria antecipar a votação em, digamos, um ano, como propunha um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) apresentado pelo senador José Richa (PMDB-PR), para livrar-se logo de Collor.
Naturalmente, o presidente se opôs à iniciativa: embora tivesse prometido não interferir na votação da PEC, usou toda a força do governo para sepultar a proposta. Nos partidos que mais apoiavam a medida, como o PSDB, e que contavam com a não intromissão prometida pelo Executivo, Collor ficou com a pecha de ser um presidente sem palavra, no qual o Congresso não podia confiar.
Impopular timoneiro de uma crise econômica transatlântica, malquisto por diversos setores da sociedade e visto como um enguiço pelo Congresso – pouco a pouco, os elementos para uma crise terminal foram se formando. A essa altura, vale destacar, o nome Paulo César Farias significava muito pouco. Apenas no segundo semestre de 1991, as denúncias sobre seu grupo de apaniguados no governo, batizado de “República de Alagoas”, começaram a ganhar força nos jornais. Na mesma época, a palavra “impeachment” passou a circular na imprensa, mas timidamente.
As condições políticas e sociais capazes de derrubar um governo estavam se encaminhando, mas faltava algo que pudesse, de fato, colocar fogo no parquinho: um tema explosivo que mobilizasse todas as atenções, atraísse cobertura incessante da imprensa, tomasse conta das rodas de conversa nos círculos de poder e na sociedade e tornasse impossível a vida normal de um governo.
Para isso, nada é tão eficiente quanto um grande e espalhafatoso esquema de corrupção. Houve outros episódios, antes do affair PC Farias, que ensaiaram produzir combustão. O mais desgastante deles, para o presidente, envolveu sua mulher, Rosane, uma jovem alagoana que tinha apenas 25 anos de idade quando seu marido recebeu a faixa de José Sarney (PMDB). Ao fim e ao cabo, embora o parente que empurrou Collor da beirada do precipício tenha sido outro, os desgastes provocados pela crise conjugal não devem ser ignorados.
A afinidade entre escândalos e impeachments presidenciais é bem estabelecida na literatura especializada. Grandes casos de corrupção geram notícias muito desgastantes de forma permanente, depreciam a popularidade do governo e causam paralisia política. Além disso, a corrupção materializa um tipo de má conduta muito fácil de ser compreendida por qualquer pessoa: não é preciso muito esforço para convencer alguém de que um agente público que enriqueceu ilicitamente já não merece confiança.
Mesmo no caso do impeachment de Dilma Rousseff – que não foi acusada ou condenada por qualquer ato de improbidade –, todo aquele clima de mar de lama que se projetou sobre o pt, por obra da Operação Lava Jato, teve papel importante no imaginário da população que pediu o afastamento da presidente. Em junho de 2016, quando ela já estava afastada e Michel Temer (MDB) exercia a Presidência, apenas um terço dos brasileiros sabia que a acusação à qual Dilma respondia era por “pedaladas fiscais” – e nada indica que essa fração de pessoas soubesse o que eram as tais pedaladas ou por que elas configurariam crime de responsabilidade. Por outro lado, 44,1% diziam que a presidente havia caído do poder por “corrupção no governo federal”, e 37,3% por “tentativa de obstrução à Lava Jato” – algo que nem a própria Lava Jato a acusou de ter feito.
O primeiro escândalo de corrupção que ameaçou dar problemas a Collor envolveu Rosane e uma instituição que ela presidia, a Legião Brasileira de Assistência. Fundada por Getúlio Vargas em 1942, em pleno Estado Novo, a LBA tinha por objetivo institucionalizar o papel assistencialista tradicionalmente reservado à primeira-dama. A primeira presidente da instituição foi, justamente, a mulher de Getúlio, Darcy Vargas. Essa escrita que atribuía à primeira-dama um papel assistencialista só foi rompida em 1995, quando a antropóloga Ruth Cardoso escolheu outros caminhos para si, e Fernando Henrique Cardoso extinguiu a LBA, no primeiro dia de seu mandato.
O escândalo que envolveu a gestão de Rosane Collor na LBA em 1991 dizia respeito à compra supostamente superfaturada de 1,6 mil toneladas de leite em pó para distribuição a creches. A legislação da época limitava a 25% a reposição inflacionária em aditamentos de contratos, mas a primeira-dama autorizou reajuste de até 41% em alguns casos. Quando viu o nome de sua mulher envolvido em uma suspeita de corrupção que poderia lhe causar ainda mais apuros, Collor declarou que nunca simpatizara com o fato de ela exercer aquela função. Mas as evidências sugerem o oposto, pois ele não apenas manteve a LBA funcionando, como usou a entidade para alavancar sua popularidade pessoal. O projeto de apoio a creches, no qual havia a suspeita de superfaturamento, chamava-se Programa Minha Gente, uma explícita alusão ao vocativo que Collor frequentemente empregava em seus pronunciamentos públicos – uma evidente violação do dever de impessoalidade que deve nortear a atuação de toda a administração pública. Foi como se Sarney tivesse criado uma política pública chamada Programa Brasileiras e Brasileiros, ou Bolsonaro chamasse seu auxílio emergencial de Bolsa Taoquei.
Na tentativa de explicitar que não compactuava com a corrupção imputada à primeira-dama, Collor achou que seria boa ideia tratá-la mal em público. Em várias oportunidades, humilhou sua mulher, recusando os gestos de carinho que ela lhe dirigia. Em 12 de agosto de 1991, na sua festa de aniversário de 42 anos, ele apareceu sem aliança (ela ainda usava a sua). No auge do escândalo, Rosane foi esperar Collor no Aeroporto de Brasília, mas ele desceu do avião e embarcou direto em um helicóptero, deixando para trás sua mulher e toda a imprensa que estava lá para cobrir o possível reatamento do casal.
O festival de enxovalhamentos públicos aos quais Collor submeteu Rosane teve efeito oposto ao que ele esperava: em vez de parecer um marido honesto, sinceramente abalado pela improbidade da esposa, o presidente passou a ser visto como uma pessoa insensível e cruel. Pesquisas de opinião da época mostram que os brasileiros se compadeceram do sofrimento de Rosane. Muita gente achava, até mesmo, que as brigas do casal, que Collor fazia questão de tornar públicas, prejudicavam a imagem do país no exterior. Na novela em que se transformou o relacionamento do presidente e sua mulher, foi Collor que ganhou a pecha de vilão – e a vilania não compõe bem com a imagem do líder que as pessoas desejam ter.
O impeachment de Dilma Rousseff deixou claro que o vice-presidente é uma peça-chave das engrenagens que trituram uma Presidência, mas poucos se lembraram da atuação de Itamar Franco nos meses anteriores à queda de Collor. Se na ditadura os dois estiveram em lados opostos – Itamar no MDB, Collor na Arena –, na eleição de 1989 eles celebraram uma união de conveniência, aliados ao mesmo PRN. O político mineiro, já em trajetória descendente, poderia se beneficiar dos holofotes de uma disputa presidencial, ao passo que o alagoano ganharia a vitrine de um nome conhecido no Sudeste e com reputação de honestidade – um ativo valioso para quem se vendia como “caçador de marajás”.
Mas o fato é que as ambições de Collor para seu vice não eram as mesmas que Itamar tinha para si. O presidente pensava Itamar como uma espécie de cacique regional do PRN, enquanto o vice desejava ter participação relevante no governo. Itamar se frustrou enormemente quando seu parceiro de chapa sequer o convidou para a cerimônia de apresentação do plano de governo. Quando Collor escolheu começar seu ambicioso programa de privatizações com a venda da Usiminas, menina dos olhos de Itamar, o distanciamento entre os dois se ampliou.
O caldo entornou de vez em abril de 1992, quando o presidente fez uma ambiciosa reforma no governo, a fim de recuperar a credibilidade com um “ministério de notáveis”. Itamar não foi consultado para indicar o nome de um ministro sequer. Antecipando o movimento que celebrizou Michel Temer em 2016, o vice de Collor fez chegar à imprensa uma carta em que reclamava de seu isolamento. Pouco tempo depois, se desfiliou do PRN.
Assim, no mês seguinte, quando Pedro Collor lançou a bomba PC Farias sobre o irmão, o vice-presidente já estava suficientemente distanciado para que seus movimentos não fossem percebidos como uma traição. O trabalho de Itamar, a partir de então, foi apenas conquistar o apoio de quem tinha aversão a seu nome. Era o caso de boa parte do empresariado, que o via como um nacionalista estatizante, um político de outra era, atrasado em suas convicções econômicas.
A nomeação do novo ministério, com figuras respeitadas e de confiança, teve efeito oposto ao pretendido por Collor. Com as áreas-chaves do governo nas mãos de nomes experientes e com bom trânsito político, a pessoa do presidente da República pareceu ainda mais dispensável. Afinal, ministros e secretários como Marcílio Marques Moreira (Fazenda), Célio Borja (Justiça), Helio Jaguaribe (Ciência e Tecnologia) e Celso Lafer (Relações Exteriores) tinham cacife suficiente para conduzir o país com segurança, enquanto Collor atravessava sua tormenta pessoal. Nesse contexto, nada mais impedia o avanço do cerco jurídico que culminaria em seu impeachment.
Embora tenha havido um inquérito penal requisitado pelo então procurador-geral da República, Aristides Junqueira, o grande palco da fritura de Collor foi sem dúvida a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que ficou conhecida como “CPI do PC Farias”. Numa época em que não havia redes sociais e as informações dependiam da grande imprensa para chegar ao público, a CPI era uma fonte concentrada de revelações desgastantes para o governo. A cada dia, uma testemunha após a outra comparecia perante deputados e senadores e, diante das câmeras de tevê, expunha detalhes sobre a vida financeira da família de Collor e as suas relações com PC Farias.
Figuras desconhecidas, como a secretária pessoal do presidente, Ana Maria Acioli Gomes de Melo, e o motorista Eriberto França, detalharam o mecanismo por meio do qual despesas pessoais de Collor eram pagas com dinheiro sujo do esquema de PC Farias. O presidente tentava reagir em pronunciamentos oficiais, mostrando-se indignado e dando explicações que eram rapidamente desmentidas ou simplesmente caíam no vazio, com o surgimento de novos detalhes sobre um esquema difícil de explicar. O enredo envolvia doleiros, empréstimos clandestinos no exterior, contratos aparentemente falsos e contas fantasmas. Tudo, enfim, cheirava a falcatrua. O fato é que Collor não conseguia dar uma versão convincente sobre o dinheiro com o qual PC Farias, seu amigo havia tempos e notório traficante de influências no governo, bancava as despesas pessoais da família presidencial.
A sequência de explicações de Collor, no melhor “estilo Rolando Lero”, acabaram rendendo a ele uma segunda acusação por crime de responsabilidade. Além da improbidade de haver se beneficiado do esquema de corrupção de PC Farias, o presidente foi acusado de quebra de decoro por tentar enganar, com documentos fajutos e testemunhos mentirosos, os parlamentares que investigavam seu amigo na CPI. O relatório final da comissão, assinado pelo senador Amir Lando (PMDB-RO), era praticamente um convite à acusação de Collor por crime de responsabilidade. O parlamentar repetiu a redação do artigo da Lei do Impeachment pelo qual o presidente acabaria condenado e arrematou seu texto clamando por desdobramentos: “Pressinto um novo arrebol de decência no destino da pátria.”[2]
O protesto popular contra Fernando Collor que mobilizou milhares de pessoas em diversas cidades aconteceu em 16 de agosto de 1992, domingo. Num grande erro de avaliação, o presidente convocara a população para ostentar seu apoio a ele naquele dia exibindo as cores da bandeira. Collor assistiu, porém, a uma onda de manifestações em que a cor preta dominou nas roupas, objetos e faixas, agitadas em carros, casas e ruas.
Grandes protestos ocorreram durante o governo de Dilma Rousseff e ajudaram na sua queda. No caso de Collor, entretanto, é uma simplificação dizer que foram as ruas que impulsionaram o primeiro impeachment presidencial no Brasil (os impedimentos de Carlos Luz e Café Filho, em 1955, foram uma “parlamentada”: não houve julgamento, produção de provas e outros elementos que caracterizam o processo de impeachment). Quando elas se encheram de gente pedindo o afastamento do presidente, já fazia onze semanas que a CPI vinha produzindo provas e depoimentos, alimentando diariamente o noticiário com revelações que instigavam um descontentamento crescente, dada a terrível situação socioeconômica do país. Em paralelo, a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Polícia Federal tocavam um inquérito policial por corrupção. As ruas se enchem mais facilmente quando a população percebe que sua insatisfação tem chances de ser acolhida e processada pelas instituições. No caso de Collor, a dinâmica dessa relação foi oposta à que assistimos no governo de Jair Bolsonaro, quando a PGR e a Câmara dos Deputados deram repetidos sinais de que não estava em seus planos investigar e punir o presidente.
O relatório final da CPI do PC Farias, que praticamente pedia uma denúncia por crime de responsabilidade, foi apresentado dez dias após as grandes manifestações de agosto. O processo contra Collor andou muito rapidamente: em menos de um mês, sua tramitação na Câmara já havia terminado, e o presidente estava em condições de ser afastado pelo Senado, o que formalmente ocorreu em 2 de outubro. Ele tentou estender seu mandato com aquelas chicanas que visaram adiar seu julgamento final, mas de fato seu governo acabou ali.
Talvez isso só tenha ficado claro para Collor no momento em que ele teve que se mudar do Palácio da Alvorada para a Casa da Dinda, sua residência particular. Depois de embarcar no helicóptero, ele pediu ao piloto que sobrevoasse uma região específica de Brasília que queria ver do alto. Sem olhar para trás, o comandante da aeronave disse que não seria possível. “Acabou o combustível”, acrescentou. Aí está uma boa metáfora para o fim da nossa primeira Presidência eleita pelo voto direto desde o fim da ditadura militar.
[1] Conforme Brasilio Sallum Jr. em O Impeachment de Fernando Collor: Sociologia de uma Crise (Editora 34, 2015).
[2] Autos do Processo de “Impeachment” contra o Presidente da República, do Senado Federal (Diversos nº 12, v. I, 1992).
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