ILUSTRAÇÃO: PEDRO FRANZ_2012
Fantasia
Naquela altura eu já tinha certeza de que não gostava de mulheres. Cheguei a ir para a cama com algumas da minha idade, mas, logo depois, só com homens, quase sempre mais velhos, mas não tão velhos como Luis Miguel, que tinha 44 anos, dois filhos e estava desempregado
Alejandro Zambra | Edição 71, Agosto 2012
1
Foi em 1996, quatro ou cinco meses depois da morte de meu pai. Talvez seja melhor que eu comece por essa morte. Não sei. Nessa época, meu pai era meu inimigo. Eu tinha 20 anos e o odiava. Agora penso que odiá-lo era injusto. Meu pai não merecia esse ódio. Não sei se merecia amor, mas estou certo de que não merecia esse ódio.
Ele tinha acabado de comprar, com suas últimas economias, um caminhão Ford 88, branco, em bom estado. No dia em que lhe deram as chaves, ele o estacionou a dois quarteirões de nossa casa, mas na manhã seguinte morreu – morreu de um enfarte, assim como o pai dele e o pai de seu pai – de modo que durante várias semanas o caminhão permaneceu ao relento, atrapalhando o tráfego. Depois do funeral, minha mãe decidiu viajar para o sul, ou melhor, voltar para o sul, obedecendo, talvez, a um projeto longamente arquitetado. Ela não quis me dizer que era para sempre. Não me pediu que a acompanhasse. Então fiquei com a casa e o caminhão, que, numa certa manhã, encorajado pela solidão, decidi dirigir com cuidado até encontrar um lugar distante onde pudesse deixá-lo.
Eu passava os dias meio bêbado, vendo filmes na cama de casal e recebendo com aspereza as condolências dos vizinhos. Estava, finalmente, livre. Que essa liberdade fosse tão semelhante ao abandono me parecia apenas um detalhe. Deixei a faculdade sem pensar muito, porque não me via de novo, pela terceira vez, estudando para a prova de Cálculo I. Bastava-me o dinheiro que minha mãe mandava, razão por que não me lembrei do caminhão até a noite em que Luis Miguel veio me pedir que o emprestasse. Lembro-me de que abri a porta com medo, mas que a amabilidade de Luis Miguel dissipou imediatamente qualquer suspeita. Depois de se apresentar e de pedir desculpas pelo horário, disse ter ficado sabendo que eu tinha um caminhão e que estava disposto a alugá-lo. Posso usar o caminhão e pagar uma quantia mensal, ele me propôs. Eu respondi que o caminhão não me interessava muito, na verdade, nada, e que, para mim, seria melhor vendê-lo. Ele disse que não tinha dinheiro, pediu que tentássemos levar o acordo adiante por pelo menos um tempo e prometeu que se encarregaria de encontrar um comprador. Parecia desesperado, mas logo vi que não, que o desespero, no caso dele, era um hábito, um jeito de ser. Convidei-o a entrar, ofereci-lhe batatas fritas e cerveja, e o que aconteceu foi o de sempre: tomamos muitas cervejas e, no dia seguinte, acordei do lado dele, com o corpo todo doído e muita vontade de chorar. Luis Miguel abraçou-me com cautela, quase com carinho, e contou uma piada de que não me lembro agora, uma besteira qualquer que amenizou a tristeza e que eu agradeci, ou acho que agradeci, com um olhar. Logo em seguida, preparamos um macarrão e improvisamos um molho ralo. Bebemos desta vez duas garrafas de vinho.
Ele tinha prometido à mulher que não dormiria mais com homens. Ela não se importava em vê-lo envolvido com outras mulheres, mas se preocupava muito quando ele dormia com homens. Naquela altura eu já tinha certeza de que não gostava de mulheres. No início, cheguei a ir para a cama com algumas da minha idade, mas, logo depois, só com homens, quase sempre mais velhos, mas não tão velhos como Luis Miguel, que tinha 44 anos, dois filhos e estava desempregado.
Eu contrato você agora!, disse-lhe de repente, e nós rimos juntos por um bom tempo, já de volta à cama.
Os braços de Luis Miguel eram duas ou três vezes mais grossos que os meus.
Seu pau era 5 centímetros maior que o meu.
E sua pele era mais escura e mais suave que a minha.
No mês seguinte, Luis Miguel convidou-me para ir a La Calera e, depois, a Antofagasta. Desde então, passamos a dispensar convites: durante um ano e meio trabalhando juntos, como sócios, dividimos os lucros. Transportávamos tudo: entulho, verduras, madeiras, cobertores, fogos de artifício, caixas suspeitas, sem rótulos. Não digo que essas viagens passavam rápido: nós nos divertíamos, procurávamos encurtar o caminho rindo, falando da vida, mas, pouco a pouco, a estrada ia apagando as palavras, e aguentávamos os últimos quilômetros bufando. Na volta, passávamos o dia inteiro dormindo, e depois transávamos até a saciedade, ou até que Luis Miguel se sentisse culpado, o que acontecia com frequência. Do nada, interrompia as carícias para ligar para sua mulher e dizer que estava perto de Santiago, e eu aceitava essa comédia sem reclamar porque sabia que, na verdade, não era uma comédia. Um dos meus filhos tem a sua idade, disse-me ele uma noite, com os olhos cheios não de sangue ou de raiva, como dizem, mas de um pudor negro e insondável que naquela época não entendi, que não entendo agora e que não entenderei jamais.
2
É um amigo, eu disse a Nadia.
Luis Miguel a cumprimentou com vergonha. Estava nu porque havia acabado de acordar, entre dez e onze da manhã, e Nadia sorriu, ou esboçou um sorriso: tinha vindo me pedir que a ajudasse com a mudança. Não aguento mais meus pais, me disse, e eu não pedi mais detalhes, mas ela desandou a falar, nervosa como sempre. Depois fomos, os três, pegar o caminhão e seguir logo para a casa de Nadia, onde trabalhamos tendo o choro da minha amiga e os lamentos de sua mãe como música de fundo. Depois, durante o trajeto, Nadia não chorava mais; ria descontroladamente, numa espécie de desvario. Fomos de Maipú até um pequeno apartamento na Diagonal Paraguay, onde ela planejava morar com uma amiga. Era no 6º andar, sem elevador, mas a mudança foi tranquila, já que suas coisas (“Minhas posses”, dizia ela) se resumiam a um colchão, duas malas e seis caixas com livros. No caminho de volta, Luis Miguel me perguntou sobre Nadia e lhe contei que a conhecia havia anos, desde criança, que era a minha melhor amiga ou, pelo menos, que tinha sido minha melhor amiga um dia.
Duas semanas depois tivemos que refazer a viagem. Acabávamos de chegar de Valparaíso quando Nadia ligou e me suplicou que a salvássemos de sua amiga, uma louca, me disse, uma imbecil que pensa que sou sua babá. Só no fim do trajeto entendi que Nadia não estava voltando para sua casa, mas sim para a minha. Conversei com sua mãe, ela me contou. Sua mãe ficou feliz de saber que viveríamos juntos. Ao contrário do que eu esperava, Luis Miguel não desgostou da ideia.
Temos que encontrar um nome fantasia, disse Nadia, naquela mesma noite, enquanto jogávamos palavras cruzadas. Para quê? Para nossa empresa de mudanças, respondeu ela com alegria e solenidade. Chega de viagens longas. Chega de rodovias, disse. E nós concordamos antes de dedicarmos o resto da noite à escolha do tal nome fantasia. Finalmente escolhemos este, Fantasia, uma sugestão de Nadia, naturalmente. O melhor nome era Fantasia. Mudanças Fantasia, ela sentenciou, e nós aceitamos, felizes.
No dia seguinte, Nadia fez nossos cartazes e comprou macacões de trabalho para os três. Duas semanas depois, tivemos nosso primeiro cliente, um advogado que estava prestes a se casar e que se mudava para uma casa grande em Ñuñoa. Daí em diante não paramos mais. Nesse bairro, as pessoas mudam muito de casa, é como um vírus, dizia Nadia todas as vezes que nos perguntavam como andava nosso negócio.
Pintamos o caminhão com desenhos estranhos que Luis Miguel classificava como horrorosos, e tinha razão, mas nos agradava a ideia de quebrar a paisagem uniforme das casas com o extravagante caminhão de mudança. Gostávamos dessa nova vida semiempresarial, passávamos horas fazendo planos e arrumando a casa com as diversas doações que nossos clientes nos faziam. A sala ficou cheia de abajures, cadeiras mancas e baús desengonçados.
Numa manhã, sem avisar, minha mãe chegou. Já tinham se passado quase três anos da morte de meu pai e havíamos falado por telefone pouquíssimas vezes. Ela costumava me enviar, isso sim, cartas extensas e carinhosas, escritas com caligrafia suave e uma quantidade assombrosa de reticências: O sul… é o lugar mais lindo do universo… onde voltei a encontrar… minhas irmãs. Era meu aniversário, mas eu não esperava aquela visita de jeito nenhum, muito menos que ela abrisse a porta com sua antiga chave e entrasse naquele que havia sido seu quarto para me ver dormindo abraçado com Luis Miguel.
Minha mãe começou a chorar ou a gemer, eu tentei acalmá-la, mas ela gritava cada vez mais. Nadia e seu amigo colorido, uma espécie de namorado com quem ela costumava dormir de vez em quando, enfim apareceram. O amigo colorido foi embora, Nadia preparou apressadamente dois Nescafés e se trancou com minha mãe o dia inteiro. Luis Miguel quis ficar comigo, me fazer companhia, escutar comigo o choro, os gritos e os misteriosos intervalos de silêncio que vinham do quarto ao lado. Elas saíram de lá pouco depois de anoitecer. Minha mãe me abraçou e estendeu a mão para Luis Miguel. Comemos o queijo e os doces que ela tinha trazido, e ela se embebedou a ponto de insistir que cantássemos o Parabéns a Você. Não é todo dia que se faz aniversário, disse minha mãe antes de começar a cantar e a bater palmas.
Luis Miguel já quase não via sua família, mas, naquele dia, precisou ir embora antes da meia-noite. Eu dormi no quarto de Nadia, e Nadia, do meu lado, em um sofá-cama encardido que nos tinham dado de presente havia pouco tempo. Minha mãe dormiu na cama de casal e foi embora muito cedo. Deixou um bilhete e 20 mil pesos sobre a cama.
O bilhete só dizia: Cuidem-se…
3
Tínhamos muito trabalho, mas gostávamos disso. Pensávamos, até mesmo, em comprar um segundo caminhão e talvez contratar mais alguém. Mas a história acabou de outro jeito: Luis Miguel apareceu um dia muito nervoso, com uma garrafa de uísque na mão. É um presente, ele nos disse, vocês são meus amigos, temos que comemorar, vocês têm que ficar felizes com essa notícia. Temi pelo pior. E não errei: depois de muitos anos tentando, ele e a esposa tinham conseguido crédito para dar entrada numa casa própria, razão pela qual no fim do mês se mudariam para longe (mas isso não será um problema, continuaremos trabalhando juntos, ele disse), para Puente Alto, para uma casa um pouco maior. Ouvi tudo que ele tinha a dizer com raiva e tristeza. Não queria chorar, mas chorei. Nadia também chorou, mesmo que não precisasse chorar. Luis Miguel levantou a voz, como quem punha em cena algo que talvez tivesse ensaiado na frente do espelho – parecia fora de si, mas não passava disso, de uma aparência: gritava e batia na mesa com uma falsa ênfase. Falou de futuro, de sonhos, de filhos, de oportunidades, de um mundo real que nós não conhecíamos. Acima de tudo, falou disso: de um mundo real que nós não conhecíamos. Nadia respondeu por nós dois: disse-lhe que no dia 31 de outubro, às nove da manhã, estaríamos em sua casa, que deixasse anotado o endereço e que embalasse com cuidado os móveis. Mudanças Fantasia lhe dará essa mudança de presente, seu idiota, mas agora vá embora e comece a procurar outro emprego.
Os dias que se sucederam foram horríveis. Horríveis e desnecessários.
Na manhã do dia 31, chegamos com quinze minutos de atraso. Luis Miguel vivia numa casa de campo, num antigo sítio que ele alugava por pouco dinheiro. Foi um de seus filhos quem nos recebeu, o mais velho, o que tinha a minha idade, mas que aparentava ser mais velho do que eu – parecia, aliás, mais velho que seu pai: as mesmas sobrancelhas fartas, muito fartas, os olhos pretos, os sulcos nas bochechas marcadas, o corpo grande e belo. O filho mais novo era um menino muito moreno de 6 ou 7 anos que andava de um lado para o outro lendo uma revista. Sua mulher era amável. A simplicidade de seus traços contrastava com o olhar atento: era difícil não corresponder a esse olhar com um cumprimento envergonhado. Ela nos ofereceu chá e não aceitamos, nos ofereceu pão com geleia de amora, mas nós agradecemos; não queríamos nos sentar à mesa com eles, o trabalho deveria ser rápido, deveríamos olhar o mínimo possível, só o necessário. Mas Luis Miguel me procurava com o desespero seco que eu tinha visto algumas vezes e que agora se mostrava em sua plenitude.
Viajamos os três na boleia do caminhão, em completo silêncio. A mulher e os filhos viriam mais tarde, de forma que tivemos tempo para nos despedir. Não voltaremos a nos ver, eu lhe disse, e ele assentiu. Nadia o abraçou com carinho. Eu não o abracei: saí e esperei minha amiga do lado de fora por dois ou dez minutos intermináveis. Nunca tínhamos conversado sobre o assunto, mas Nadia e eu sabíamos que queríamos deixar o caminhão com ele. Andamos vários quarteirões à procura de um micro-ônibus. Depois de um longo trajeto, chegamos a casa, de mãos dadas.
Há algumas semanas, Nadia começou a trabalhar como secretária. Sai muito cedo, me deixa livros e cigarros e, quando volta, bebemos longas xícaras de chá. Talvez você devesse escrever essa história, disse-me ela hoje de manhã, antes de sair.
Pronto, Nadia, já escrevi.
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