FHC atacou a "cultura de favores e privilégios, o amor à burocracia e à pompa dos ricos e poderosos"; Alckmin se recusou a pagar o fardão FOTO: GUILHERME GONÇALVES_ABL
Fardas e fardões
FHC, a ABL e o cupim da democracia
Fernando de Barros e Silva | Edição 85, Outubro 2013
Lá pelo meio de seu discurso de recepção ao novo colega na Academia Brasileira de Letras, quando já falava havia cerca de meia hora, o acadêmico Celso Lafer decidiu invocar o fundador da casa: “Nosso sábio Machado de Assis aponta em Esaú e Jacó que o imprevisto é uma espécie de Deus avulso que pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos”. Àquela altura dos acontecimentos, Fernando Henrique Cardoso, o homenageado da noite, de quem Lafer, além de amigo, foi chanceler, já havia discursado por quase uma hora e um previsível tédio parecia tomar conta da plateia.
O imprevisto, de qualquer forma, havia sido contornado horas antes, quando o governador Sérgio Cabral mandou avisar que não iria à cerimônia de posse do novo acadêmico, marcada para as nove da noite do dia 10 de setembro, no salão nobre do Petit Trianon – réplica do palácio homônimo de Versalhes, doada pelo governo francês à ABL em 1923.
Uma semana antes, quando o staff de Cabral anunciou que ele iria à festa, um protesto começou a se articular pela internet. A desistência de última hora do governador foi recebida com alívio pela presidente da Academia, a escritora Ana Maria Machado. Ela passara a semana tensa e temia pelo que pudesse acontecer. Acompanhada pelo forfait do prefeito Eduardo Paes, a ausência de Cabral esvaziou a manifestação. Mas a polícia, que já havia sido convocada, compareceu em peso.
Centenas de homens da Tropa de Choque isolaram o quarteirão onde fica o prédio da ABL, no Centro do Rio. Paramentados com roupas de camuflagem, escudos, capacetes e outros apetrechos de batalha, os robocops do estado só permitiam a passagem de pedestres, de preferência em trajes de gala. Trocavam olhares e retribuíam com um boa-noite tímido ao cumprimento igualmente vacilante de marmanjos fantasiados de pinguim e senhoras em vestidos longos que saltavam dos táxis e precisavam caminhar 100 ou 200 metros intermináveis sobre o asfalto até chegar ao portão do palácio. Nem mesmo alguns acadêmicos escaparam da passarela ao ar livre improvisada entre a barreira militar e o tradicional templo (que alguns chamam de túmulo) das letras.
“O que importa é o culto permanente à cultura, à língua que a expressa, à paz, à liberdade e à dignidade humana, valores que se servem de nós, mortais, para permanecerem imortais.”
Enquanto FHC começava a engatar palavras de elogio à vida do espírito diante de uma audiência reverente e silenciosa, ouvia-se lá fora, vindo do céu, o ronco intermitente de um helicóptero, que ia e voltava, atravessando seu discurso. A música de fundo que a rua trazia para dentro da ABL fazia parte da operação da polícia para monitorar manifestantes, reunidos àquela altura a poucas quadras dali, em frente ao prédio da Alerj (Assembleia Legislativa do estado). Protestavam contra a proibição do uso de máscaras em atos públicos.
Ao lado de um dos janelões do salão nobre, o jornalista Brian Winter, correspondente da agência Reuters no Brasil, podia “sentir a vibração dos vidros” durante o discurso. Winter é coautor do livro The Accidental President of Brazil, relato em primeira pessoa que FHC fez em 2006 para o público estrangeiro (e que terá sua versão em português lançada em breve pela Record).
Nenhum outro incômodo, no entanto, superava o calor. Desde a chegada de Paulo Coelho à ABL, em 2002, não se via uma posse tão concorrida. E o ar-condicionado não estava dando conta de refrescar 250 convidados apinhados no salão nobre. Além deles, cerca de outras 300 pessoas se espalhavam pelo Petit Trianon, acompanhando a cerimônia por quatro telões.
Vestido em seu smoking, em pé atrás das cadeiras, o cientista político Bolívar Lamounier não escondia certo desconforto: “Tradição é importante, não desconheço. Mas isso aqui está um pouco acanhado. Essa posse merecia um auditório mais amplo”, lamuriou-se.
Estavam lá, entre vipinhos e vipões, os ex-ministros da Cultura Francisco Weffort e Gilberto Gil, a dupla do Real Gustavo Franco e Edmar Bacha, o polivalente Nelson Jobim, o publicitário Nizan Guanaes, o cineasta Bruno Barreto, a jornalista Miriam Leitão, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor, a atriz Maitê Proença, o poeta Antonio Cícero etc.
O criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, defensor do publicitário Duda Mendonça, absolvido no processo do mensalão, chegou meia hora atrasado e ficou em pé, num canto. Não era propriamente um petista, mas sua presença tinha o poder de evocação do partido de Lula, o que fazia dele – embora bonachão – uma espécie de estranho no ninho.
Junto com o advogado chegou o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves, convidado a compor a mesa ao lado do ministro do Supremo Marco Aurélio Mello e da dupla de grão-tucanos Geraldo Alckmin e Aécio Neves, este último supostamente substituindo o presidente do Senado, Renan Calheiros. O lugar do ministro Moreira Franco, que representaria Dilma Rousseff, ficou vago. Como José Sarney, o imortal do PMDB, também não foi por motivos de saúde, e como Cabral e Paes desistiram de ir, coube a Henrique Alves, que debutava no Petit Trianon, a missão de sustentar o estandarte desta verdadeira ABL da política – o PMDB.
José Serra também chegou atrasado, como sói acontecer. Seu assento tinha sido ocupado. Passou um tempo em pé, até ser socorrido por uma moça bonita e simpática, que o conduziu à área reservada aos acadêmicos, a única com cadeiras vagas. Apenas 28 dos quarenta imortais estavam presentes, e Serra se acomodou entre eles, numa das pontinhas.
Em seu panegírico a FHC, Celso Lafer a certa altura elencou algumas das “muitas virtudes” pelas quais o ex-presidente seria capaz de conservar suas amizades: “Não sentir rancor por ninguém; não ter inveja ou ressentimentos porque tem a segurança dos seus próprios méritos e por isso não é um espírito tortuoso; estar atento ao próximo como prática, e não como abstração; ter humor, que é uma concordia discors que tempera e permite conter, na práxis, o enfático dos dogmatismos e também da luta política; ter o ‘dom das gentes’ associado a uma exemplar e educadíssima civilidade no trato com as pessoas” – e seguia por aí. José Serra ouvia.
Como já disse alguém, as citações são a muleta da retórica. E Lafer não fez economia: “Como aponta Aristóteles”, “Hannah Arendt observou”, “para evocar Cícero”, “o que elucida Voltaire”, “para usar um conceito de Hirschmann”, “lembrando a lição de Políbio”, “como apontou Francisco Weffort”, “Montesquieu define como”, “Bobbio entende que”, “evocando Isaiah Berlin”, “como apontou Assis Chateaubriand”, “esclarece o padre Antonio Vieira”, “na definição do grande romancista Mommsen”, “nas palavras de Goethe”. O acadêmico mencionou nomes de intelectuais ou políticos 102 vezes em seu discurso.
O propósito edificante e o aspecto enciclopédico da intervenção combinaram com as cortinas de veludo cor de mostarda, as paredes verde-claras, os lustres de cristal francês, os assentos aveludados com um lacinho dourado sobre o encosto, a pompa dos trajes. Acrescido do calorão do ambiente e do que se passava do lado de fora, o conjunto não deixava de ser uma homenagem involuntária às ironias de Machado de Assis. Um amigo de FHC arrancou gargalhadas quando comentou que sentia estar participando de uma cerimônia em Cabo Verde, capital da França. Geraldo Alckmin pescou algo no ar ao resumir sorridente, já no final da festa: “Foi uma noite entre aspas.”
Ao passar sua obra em revista, FHC recordou que seus “primeiros trabalhos sociológicos foram sobre a condição da vida dos negros e sobre o preconceito racial”. Falava, especificamente, de seu livro de estreia, Cor e Mobilidade Social em Florianópolis, de 1960. Momentos depois, quando os convidados se aglomeravam numa fila improvisada para cumprimentar o novo acadêmico, Gilberto Gil comentou comigo: “Pois é. Também pensei nisso quando ele citou o livro. Eu era o único preto na plateia. Mas é sempre assim, em todos os lugares de elite no Brasil.”
Fernando Henrique Cardoso passeou dos anos 60 até o presente com grande desenvoltura. Disse que, a despeito da arquitetura institucional do país, quase acabada, ainda falta o essencial: “A alma democrática.” Atacou então “nossa cultura de favores e privilégios, nosso amor à burocracia, à pompa dos ricos e poderosos, de retraimento da responsabilidade pessoal e atribuição de culpa aos outros, principalmente ao governo e às coletividades, que desobrigam o cidadão de fazer a sua parte”. Fazia um chamamento liberal, pela impessoalidade diante da lei, pela meritocracia, pelas responsabilidades e liberdades dos indivíduos. E arrematou dizendo que o corporativismo, encastelado em sindicatos, igrejas e partidos, “é o cupim da nossa democracia”. Foi muito aplaudido.
O que lhe atrapalhou um pouco a intenção foi o cupim corporativo da ABL. Os costumes da casa mandam que o acadêmico debutante preste homenagem aos que o antecederam na cadeira. FHC saudou um a um todos os que ocuparam a de número 36. O primeiro foi Affonso Celso, poeta, jornalista e político mineiro, autor do famigerado Por que me Ufano de Meu País, responsável pela projeção da expressão “ufanismo”.
Foi preciso um tanto de malabarismo retórico para salvar o autor de si mesmo. E FHC o fez. “Reli Affonso Celso e revi minhas convicções”, disse ele, para dar uma longa volta, antes de concluir: “Em 1901, data de publicação do livro, quando os miasmas das grandes cidades e o desalento diante do progresso de outras nações induziam ao pessimismo, haveria mal em realçar ou mesmo idealizar virtudes que motivassem a população?”
Finda a lição de casa, o acadêmico assinou o livro de posse, recebeu de Nélida Piñon o colar com uma medalha, a seguir a espada, das mãos de Eduardo Portela, que substituía o decano Sarney, e por fim o diploma, entregue pelo historiador José Murilo de Carvalho. O ritual, importado da Academia Francesa, já foi até mais obsoleto. Aboliu-se, há alguns anos, o tratamento majestático – Vossa Excelência para cá e para lá. Da mesma forma, sumiram da cabeça dos imortais os vistosos chapéus de veludo preto com plumas brancas.
O que não muda é o fardão. E foi em torno dele que se criou uma pequena celeuma. Pela praxe, quem arca com os custos do uniforme de gala é o governo do estado em que o acadêmico desenvolveu sua obra. Alckmin, no entanto, não se sentiu confortável. Fez chegar ao ex-presidente que não seria bom para a imagem de nenhum dos dois gastar dinheiro público com isso. Alguém sugeriu que FHC fizesse um jantar e arrecadasse a quantia entre amigos. O tucano achou aquilo constrangedor. Contrariado, disse que pagaria o fardão do próprio bolso. Faria palestras para arrumar o dinheiro. Já tinha decidido quando foi veementemente desaconselhado. Estaria criando um problema para os colegas de academia, todos presenteados pelos respectivos estados.
Pensou-se numa solução de compromisso: como FHC nasceu no Rio, embora seja um intelectual e um político formado em São Paulo, os governos dividiriam os custos. Chegou-se a noticiar na véspera da posse que Alckmin e Cabral dividiriam a conta. Mas a notícia era falsa.
O fardão de FHC foi feito pelo alfaiate Diógenes Cardoso. Seu ateliê é vizinho do prédio da ABL. A peça, verde-escura, é de cambraia inglesa, bordada a ouro com fios importados da França. “Só o bordado levou quinze dias para ser feito, tudo à mão”, disse Diógenes. Mas e o preço? “Ah, isso eu não falo. Isso dá problema, os governos não querem, têm divergências entre eles.” Pedi que me dissesse o valor em off. Diógenes ficou irredutível: “Não falando com ninguém, eu sei que não falei. Se sair, não fui eu.”
Na sua conta, Diógenes já confeccionou catorze fardões. Disse que as encomendas lhe dão mais prestígio do que dinheiro. Orgulhou-se de ter ido à posse de FHC. “Tive o prazer de me sentar ao lado da Ellen Gracie”, comentou.
Depois de idas e vindas, ficou decidido que a prefeitura do Rio de Janeiro pagará o fardão de FHC. Oficialmente, nem o governo de Eduardo Paes, nem o alfaiate, nem a ABL confirmam o pagamento. Mas uma parte da conta já estava paga no final de setembro. O valor total é de 68 mil reais.
Fernando Henrique Cardoso é o primeiro acadêmico a ser eleito depois de junho de 2013. Sem a onda de protestos, é muito pouco provável que um assunto como esse viesse preocupar os governos. Em 2011, quando o jornalista Merval Pereira foi eleito imortal, quem lhe “ofereceu o fardão” (palavras dele) foi o governo do estado do Rio. O colunista do jornal O Globo desconhece quanto a peça custou: “Não tenho a menor ideia do preço”, escreveu por e-mail. Merval seguiu a tradição. Hoje Sérgio Cabral não pode ir à ABL sem a polícia. Mas, se estivesse lá, teria ouvido FHC concluir seu discurso dizendo o seguinte: “A história nos pregou uma peça: ‘Decifra-me ou te devoro!’ é o enigma que as ruas, sem o proclamar, deixam entredito sobre a democracia atual.”
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