ILUSTRAÇÃO: IMAV ÉDITIONS_GOSCINNY_SEMPÉ_2004
Fêmeas talvez, quem sabe, algum dia
Há sempre o risco de que, com colegas meninas, os alunos fiquem efeminados
Manoel Francisco do Nascimento Brito Filho | Edição 18, Março 2008
Os alunos ainda vestem o mesmo uniforme – calça cinza e camisa azul, com o escudo de Nossa Senhora do Monte Serrat bordado no bolso – de décadas atrás. O prédio de concreto armado e esquadrias de alumínio do Colégio de São Bento, construído na colina debruçada sobre a baía de Guanabara onde monges beneditinos fundaram um mosteiro, em 1590, mantém praticamente inalterado o mesmo aspecto que tinha em 1971, quando foi inaugurado. Nem o mobiliário da reitoria, revestido em laca lilás, uma concessão à cultura psicodélica, também não mudou.
“Até os livros na minha sala são os mesmos”, diz dom Tadeu Lopes, homem cujo rosto em forma de lua cheia e o corpo roliço lhe dão um aspecto de monge saído de tela de cinema. Ele herdou o escritório de dom Lourenço de Almeida Prado, um paulista que se formou em medicina, largou a profissão, aderiu à vida monástica e comandou o colégio durante 45 anos, até 2001. Na década de 90, quando muitas escolas passaram a trombetear o ensino de informática como parte da atividade extracurricular, dom Lourenço mantinha seus alunos dedilhando velhíssimas máquinas de escrever. “Eu não consigo enxergar ainda o valor pedagógico dos computadores”, dizia. É com cautela semelhante que o São Bento olha para a possibilidade de aceitar a matrícula de meninas.
A marcha pela integração sexual nas escolas privadas cariocas começou há trinta anos. Uma a uma, as fortalezas do sistema educacional sucumbiram à tese de que a modernidade exigia colégios mistos. O São Vicente, para rapazes, e o Sion, para moças, foram os primeiros a capitular. Dom Tadeu conta que, além do São Bento, só o Padre Antônio Vieira e o Colégio Militar permaneceram fiéis a educar apenas meninos. “Mas eles acabaram cedendo e nós ficamos sozinhos”, diz, sem demonstrar um pingo de angústia com essa solidão. Ele próprio, no entanto, se encarrega de dar uma pista que agora as chances de o colégio receber meninas são maiores. “O que eu posso dizer é que nunca essa discussão foi tão evidente no comando do colégio.” O sorriso no canto da boca sugere que a intensidade do debate é até superior à que está sendo admitida publicamente. Porém, ele invoca os 150 anos da escola, completados em fevereiro, para justificar a necessidade de se ir devagar com o andor: “Não se mexe com um século e meio de tradição assim tão de repente”.
Nada no São Bento é de repente. Corria o ano de 1973, a única coisa semelhante a saias que se via no colégio eram as batinas usadas pelos monges, quando uma primeira presença feminina fez a sua aparição intramuros. Era uma psicóloga que viera dirigir o Serviço de Orientação Educacional, uma criação do ministério da Educação daqueles tempos da ditadura. Sua presença não foi bem recebida pelos veteranos. “Os mais velhos torceram o nariz. Diziam que o colégio ia perder sua alma, ia produzir…” Dom Tadeu fez uma pausa em busca de um termo adequado a um religioso para concluir a sentença e saiu: “… ia produzir alunos efeminados”.
De lá para cá, as mulheres foram ocupando espaço no corpo docente. A ponto de, entre a 1ª e a 5ª séries, restar hoje um único professor. “No ensino médio, ainda há ligeira predominância de professores”, contabiliza Mauro Silveira, professor de história e superintendente administrativo, indicando com o advérbio que esse penúltimo bastião de superioridade masculina também está com os dias contados.
Sobra o corpo de 1 070 alunos, nele o cerco aperta. Quando – e se – também ele vier a se romper, não será por arrependimento dos beneditinos em relação à sua postura educacional. Isso porque o São Bento continua entre os melhores colégios brasileiros. Nos três primeiros anos do Exame Nacional do Ensino Médio, Enem, o colégio conquistou o primeiro lugar. No ano passado, ele ficou em quarto, de uma lista de 21 990 escolas. “Nós seguimos usando um processo de seleção natural”, explica Silveira, interrompendo a frase no meio para pedir perdão a dom Tadeu por apelar a Darwin para explicar o sucesso acadêmico. O reitor abre os braços, franze a testa e sorri. “Nós temos quatro turmas na 6ª série que, conforme aumenta a demanda de estudo, vai se depurando, passando por um funil”, diz ele. “Quando esses alunos chegam ao fim do ensino fundamental, estão reduzidos a apenas duas turmas, onde ficaram os melhores.”
A razão para o São Bento voltar a se debruçar sobre a admissão ou não de meninas tem muito a ver com a pressão dos pais, que gostariam que suas filhas pudessem estudar junto com os irmãos. “Ela ficou pesada nos últimos dois, três anos”, admite dom Tadeu. Segundo Silveira, existem duas preocupações. Uma, de estrutura física. “Nem banheiro para elas temos. Seríamos obrigados a fazer uma reforma radical”, diz. A outra preocupação é definida como conceitual. As centenárias máximas de que os dois sexos, juntos, têm muitos motivos para não prestar atenção aos estudos e que meninas, na adolescência, se desenvolvem mais rápido que os meninos – ainda têm aliados. “Há resistências, tanto na comunidade abacial, como entre os próprios pais”, reconhece dom Tadeu.
No Colégio Militar do Rio, a experiência de juntar os dois sexos no mesmo espaço tem sido boa. “Elas vêm tendo um desempenho superior, e ajudaram a puxar para cima o desempenho dos rapazes”, observa Silveira. O reitor dá uma última pista de que a capitulação no São Bento é praticamente inevitável: “Fui chamado para rezar duas missas de formatura de turmas de engenharia no fim do ano passado. Em ambas, as mulheres eram a maioria”.
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