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Foguete desgovernado
Janeiro mostrará se o vôo levantado por Mike Huckabee tem combustível político para prosseguir na campanha presidencial americana ou se o ex-governador do Arkansas voltará à sua rotina de Bíblia, rock'n'roll e corrida diária de 10 quilômetros
Dorrit Harazim | Edição 16, Janeiro 2008
Só mesmo duas temporadas de George W. Bush na Casa Branca para fazer levantar vôo um candidato à presidência americana tão acidental quanto Michael Dale “Mike” Huckabee, ou “Huck” para os mais chegados. Até dois meses atrás, ele era apenas aquele figurante de covinha na bochecha direita e olhar maroto que participava, pro forma, dos sonolentos debates entre aspirantes à indicação do Partido Republicano. Nomes de ressonância nacional como Rudy Giuliani e John McCain, e coadjuvantes de notoriedade espasmódica como Mitt Romney ou Fred Thompson, o condenavam a permanecer invisível. Ainda assim, Huck não perdia um único debate – estava sempre lá, enfileirado entre a dezena de candidatos sem chance. Como não tinha dinheiro nem estrutura de campanha, também não tinha o que perder.
Foi em meados de novembro, durante mais uma dessas sabatinas entediantes, que Mike Huckabee decolou – para passar todo o mês de dezembro em órbita desvairada. Tão desvairada que ele corre o risco de se arrebentar com estrondo já neste janeiro, quando começam as eleições preliminares para a escolha do candidato oficial de cada partido. Ou, então, se aprumar numa trajetória eleitoral mais duradoura, e neste caso a América republicana terá conseguido se superar em matéria de candidatos insólitos.
Com um aparte inesperado, feito durante o debate de novembro em cadeia nacional, na CNN, Huckabee desnorteou seus adversários de partido, seduziu a grande imprensa liberal e acordou os telespectadores republicanos. “Com todo o respeito, somos uma nação melhor do que a que pune crianças pelo que fazem seus pais”, disse ele, ao opinar sobre um dos temas caros aos candidatos à herança de Bush, o combate à imigração ilegal. E surpreendeu o próprio mediador ao defender o direito a atendimento médico gratuito, além de bolsas de estudo universitário para filhos de imigrantes sem documentos.
Na manhã seguinte, Mike Huckabee era manchete dos principais jornais, e passava de lanterninha à linha de frente nas pesquisas do primeiro teste eleitoral de 2008, no estado de Iowa. A grande imprensa, até então obcecada pelo embate entre os democratas Hillary Clinton e Barack Obama, passou a festejar o cometa Huck. Ao menos, ele injetava vitamina, bom humor e idiossincrasia no plantel republicano.
Espremida em dois parágrafos, a biografia do pré-candidato a 44º presidente dos Estados Unidos da América pode ser lida assim:
Aos 52 anos de idade, é o mais jovem pretendente à Casa Branca depois do democrata Barack Obama, de 46. Do currículo constam dois cargos – ex-pastor evangélico, ex-governador do estado de Arkansas -, mas nenhuma profissão formal, definida ou atual. Em compensação, é roqueiro dedicado desde os 11 anos de idade e se apresenta até hoje com a banda Capitol Offense, da qual é baixista. Não confundi-lo com o outro ex- governador do Arkansas que chegou à Casa Branca e toca sax.
Faça chuva ou sol, seu dia-a-dia começa com uma corrida de 10 quilômetros, como parte de um regime que o fez perder 50 quilos ao longo do último par de anos. E nenhuma jornada se encerra sem a releitura de algum capítulo da Bíblia. É nas Escrituras que mora a parte mais consistente do cidadão e candidato Mike Huckabee. Ele não crê na teoria da evolução (“Não sabemos se a Terra tem 6 mil ou 6 bilhões de anos”), acredita no Inferno, compara o aborto e a união entre gays ao Holocausto, e não se esquiva de nenhum mandamento de sua igreja. Há dez anos, assinou um manifesto de página inteira, publicado no jornal USA Today, que endossava os valores da família defendidos pela Southwestern Baptist Convention. Reza o manifesto: “Uma esposa deve submeter-se docilmente à liderança do marido da mesma forma que a igreja se submete voluntariamente à orientação de Cristo”. Huckabee é casado, tem três filhos e acredita na eficácia do castigo corporal.
Por que o franco-atirador caiu nas graças tanto da grande imprensa liberal democrata – que evita qualificá-lo como doutrinário evangélico xiita – como do eleitorado republicano, que o perdoa por ter aumentado impostos e gastos públicos em benefício das camadas mais pobres do Arkansas?
A resposta pode estar no estilo de Mike Huckabee. Ele é o primeiro candidato em campanha que parece ser a mesma pessoa no palanque e em casa, de chinelo. Seu senso de humor autodepreciativo desarma. Sua falta de agressividade verbal agrada. Seu jeito de furão no clube dos grandes é percebido como uma lufada de frescor numa campanha tensa e crispada.
Enquanto o campo democrata vive às turras, e se alimenta das diferenças entre seus candidatos, os republicanos, de um modo geral, detestam ataques pessoais e preferem idolatrar seus candidatos. Só que, na eleição de 2008, nada parece eletrizar os órfãos de Dwight Eisenhower, Ronald Reagan ou mesmo George W. Bush. Em pesquisas de opinião, nenhum dos candidatos republicanos conseguiu, até agora, entusiasmar sequer a metade dos seus seguidores. O eleitorado como um todo anda sorumbático. Sete entre dez entrevistados acham que o país está andando na direção errada e, pela primeira vez em mais de meio século, não tem um presidente em exercício, ou o seu vice, como candidato.
O próprio país está em transição. Pela primeira vez também, os eleitores solteiros são maioria, e a população de imigrantes altera o perfil social americano. Talvez a eleição de novembro próximo tenha um significado maior que as habituais, e seja comparável à de 1932, que elegeu Franklin Delano Roosevelt e sua política de expansão do governo federal. Ou à de 1960, que escolheu John Kennedy para liderar a troca de gerações. Ou à de 1980, que confiou os destinos da nação à visão conservadora de Ronald Reagan.
A política do medo, deflagrada por Bush em 11 de setembro de 2001, e que virou pilar do governo, já não basta para eleger seu sucessor. Foi nesse nicho que se infiltrou a candidatura de Huckabee. Enquanto seus adversários de partido teimam em falar de política externa, segurança nacional e experiência para o cargo, o ex-azarão introduziu temas como caráter, religião e personalidade. Mesmo quando é forçado a se manifestar sobre os chamados “grandes temas”, recorre a bordões e aforismos algo infames, porém do agrado popular, como “Não posso dividir o Mar Vermelho, mas consigo destrinchar a burocracia” ou “Quero conduzir o país ao estágio em que vamos precisar do petróleo saudita tanto quanto da areia saudita”.
A bordo de seu foguete desgovernado, Mike Huckabee talvez já tenha ido longe demais. A esquálida estrutura operacional de sua campanha não consegue acompanhar o súbito inchaço de popularidade, tanto que a sua página na Internet costuma ficar fora do ar por períodos de 24 horas – sinônimo de suicídio nos dias de hoje. Mas ele emplacou o nome e o estilo, que podem lhe valer uma indicação para compor a chapa republicana. Afinal, excetuando-se o mandato único de
George Bush pai (1988-1992), os Estados Unidos vêm sendo presididos por ex-governadores há 32 anos – 24 dos quais por ex-governadores sulistas.
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