No voo para Estocolmo, Szymborska e uma amiga se perguntaram se não podiam cometer um atentado terrorista e levar o avião para a Riviera, onde esperariam a cerimônia do Nobel acabar CREDITO: SOREN ANDERSSON_AP PHOTO_GLOW IMAGES
Fumando com o rei em Estocolmo
Quando a poeta Wislawa Szymborska ganhou o Nobel
Anna Bikont e Joanna Szczesna | Edição 157, Outubro 2019
Tradução de Eneida Favre
No dia 3 de outubro de 1996, Wisława Szymborska estava em seu quarto na Casa do Trabalho Criativo Astoria, em Zakopane,[1] justamente escrevendo um poema, quando a chamaram ao telefone. Um funcionário da Academia Sueca estava ligando para confirmar oficialmente que ela tinha ganhado o Prêmio Nobel de Literatura. Ela respondeu que não sabia o que fazer naquela situação terrível – “nem posso fugir para as Montanhas Tatra, porque está frio e chovendo”. Logo bateram à sua porta duas jornalistas de Bratislava – que coincidentemente estavam em Zakopane –, com um enorme buquê de rosas vermelhas.
Szymborska queria primeiro compartilhar a novidade com Nawoja, sua irmã.
“Wisława me telefonou para não deixar a irmã aflita de repente”, contou-nos Elżbieta Pindel, vizinha e amiga de Nawoja. “‘Elżunia, eu ganhei o Nobel! A Nawoja está dormindo? Então não a acorde, eu telefono outra hora.’ Já era tarde da noite quando conseguiu ligar de volta.”
Somente três anos depois, a poeta retornou ao poema que havia largado naquele momento.
Logo na primeira conversa com os jornalistas que acorreram imediatamente à Astoria, ela disse que se sentia ao mesmo tempo atordoada, espantada, encantada, enlevada e aterrorizada.
“Estou apavorada, por não saber se vou conseguir enfrentar a cerimônia; toda a minha disposição é diferente, contrária a esse tipo de contatos, e é claro que nem sempre poderei recusar. Queria ter uma sósia. A sósia seria uns vinte anos mais nova do que eu, iria posar para as fotos e teria uma aparência melhor do que a minha. A sósia viajaria, a sósia daria entrevistas, e eu ficaria escrevendo.”
“Há muito dinheiro associado ao Prêmio Nobel, mais de 1 milhão de dólares. A senhora não pensa às vezes que, com tanto dinheiro, já não precisa escrever mais?”
“Nenhum dinheiro vai substituir a força mágica, o tormento e a delícia de escrever”, respondeu Szymborska, rindo.
O quartinho da gerente da Astoria foi transformado num estúdio de rádio, e lá a recém-ganhadora do Nobel respondia aos ouvintes:
“Aqueles que me conhecem sabem que eu estou falando a verdade; eu não esperava o Nobel.”
“Dona Czesława, esse grande prêmio vai mudar alguma coisa?”, perguntou, nervoso, o jornalista.
“Wisława, Wisława”, corrigiu Szymborska. “Antes eu preciso me acostumar com a ideia. Por enquanto, tive apenas um segundo para tomar um Diazepam e beber água.”
Na entrevista coletiva à imprensa, convocada às pressas no saguão, ela disse:
“Espero que isso não me suba à cabeça.”
“Sou cética por natureza. Especialmente em relação a mim mesma. Esforço-me para não pensar em mim, e isso não é fazer fita ou charme para o leitor – realmente, não estou no centro dos meus próprios interesses. O mundo é tão interessante, as pessoas são interessantes, então não vale a pena se ocupar de si.”
Ela tentou almoçar; desceu para a sala de refeições e tomou sopa de endro, mas o telefone tocou de novo. Era o poeta Czesław Miłosz, Nobel de 1980, que lhe deu parabéns e depois disse que se compadecia dela, porque sabia o fardo que ela teria de carregar agora.
Até o fim de sua estadia na Astoria, Szymborska era constantemente chamada ao telefone e não conseguiu mais tomar uma sopa quente.
Escritores e poetas costumavam assistir à televisão no salãozinho da Astoria, bebericar café e chá numa varanda semicircular e se sentar em grupos de quatro junto às mesinhas na sala de jantar. Havia apenas um telefone na recepção, e a maioria das pessoas telefonava no momento das refeições, pois sabia que nessas horas todos poderiam ser encontrados. Quantas vezes ao longo daqueles anos, quando ia para a Astoria, Szymborska desceu para o almoço, sentou-se à mesa e escutou chamarem alguém ao telefone.
“Em todos os lugares, de uma forma perfeitamente normal, meus colegas e eu desaparecíamos no segundo plano – pessoalmente isso me agrada bastante. Seria o fim da picada se os refletores começassem a nos seguir… Bem, não parece que isso vá acontecer, graças a Deus. Os caçadores de estrelas, aqueles com câmeras e lâmpadas brilhantes, têm assuntos e pessoas mais importantes em mente […] Penso que a poesia deixou de ter qualquer coisa em comum com essas pessoas que conhecemos como ‘extraordinárias’, que se mostram no mercado, quiçá num pequeno mercado, despertam admiração e colhem aplausos”, disse Szymborska ao poeta e jornalista Aleksander Ziemny, sem suspeitar quão enganada estava.
Durante alguns anos, o nome dela vinha aparecendo entre os candidatos ao Nobel. Um ano antes, quando o poeta irlandês Seamus Heaney ganhou o prêmio, Szymborska respirou aliviada. “Ela ficou satisfeita por terem passado longe dela”, contou-nos o escritor e jornalista Jan Józef Szczepański. “E, além disso, sentiu-se segura. Quem poderia esperar que o Nobel seria dado dois anos seguidos a poetas da Europa?”
“Entre os favoritos deste ano, a Agência Sueca de Imprensa inclui o nome de Szymborska”, escreveu o correspondente do jornal Gazeta Wyborcza, Piotr Cegielski, um dia antes do anúncio oficial em Estocolmo. “As chances dela diminuem pelo fato de que, no ano passado, Seamus Heaney ganhou; mas melhoram se considerarmos que dois homens foram vencedores em anos consecutivos”, completou.
Entretanto, como enfatizou o poeta e tradutor Stanisław Barańczak, parecia pouco provável que ganhassem o prêmio em dois anos seguidos “representantes de duas nações católicas, vitimadas pela história e que consomem uma grande quantidade de batatas (e seus derivados)”.
No dia seguinte ao anúncio do prêmio, Szymborska ficou tão cansada com a constante presença da mídia que, em 5 de outubro, enviou um esclarecimento à Agência de Imprensa Polonesa: “Assim como todos os meus excepcionais predecessores, não tenho prática no recebimento de um Prêmio Nobel; por isso, também, à alegria causada por tão alta distinção, junta-se o embaraço […] Há pelo menos dois arquiexcepcionais poetas poloneses que, no meu entender, mereceriam esse prêmio. Prefiro, então, pensar nessa distinção dada ao meu trabalho como um reconhecimento de toda a poesia polonesa contemporânea, que, ao que parece, tem algo importante para dizer ao mundo inteiro. Decidi fazer essa declaração pública por razões muito prosaicas. Desde o momento do anúncio da decisão da Academia Sueca, dei centenas de respostas, depoimentos, entrevistas curtas e longas, e, uma vez que minhas cordas vocais não foram programadas pela natureza para esse tipo de trabalho, escrevo este pronunciamento com a esperança de que elas possam descansar, mesmo que por pouco tempo. Ficaria muito agradecida aos meios de comunicação se essa minha declaração escrita lhes bastasse por enquanto. Antecipadamente, agradeço.”
Dois dias depois, em 7 de outubro, Szymborska enviou de Zakopane uma carta ao intelectual e político Jacek Kuroń: “Querido sr. Jacek. Desculpe-me por tratá-lo de maneira tão familiar, mas é dessa forma que sempre penso no senhor. Conto muito com sua ajuda para resolver um assunto. Como é sabido, há muito dinheiro associado ao Prêmio Nobel, e, naturalmente, eu gostaria de partilhá-lo com alguma sabedoria. Tenho a intenção de manter a metade ou pouco menos à minha disposição, com disposições testamentárias para que seja transferido a tais e tais propósitos que ainda não sei exatamente quais serão; mas a outra metade do dinheiro eu gostaria de partilhar assim que possível […] Quem melhor do que o senhor para saber a quem esse dinheiro é mais necessário e que instituições podem usá-lo de forma proveitosa? Não gostaria que essas doações fossem destinadas à compra de novos tapetes, imagens de santos ou drinques infindáveis.”
Iniciaram-se as obrigações ligadas ao Prêmio Nobel: a poeta precisava redigir o discurso e fazer a lista dos convidados que poderia chamar para a cerimônia em Estocolmo. Bogusława Latawiec, poeta, redatora-chefe da revista literária Arkusz, escreveu: “Szymborska escolheu críticos e poetas do seu círculo de amigos e começou o exaustivo processo para reduzir a lista a dez pessoas, pois esse era o número de convidados que a ganhadora do Nobel poderia levar consigo. Todo esse processo me lembrava da brincadeira da rosa: ‘Lá vem a rosa do quintal com o chapeuzinho vermelho, quem a rosa vai cumprimentar com o chapeuzinho vermelho?’”
Para proteger sua privacidade, Szymborska logo contratou um secretário, Michał Rusinek, que felizmente provou ser não apenas bem-educado, como também firme. A poeta decidiu também que, como deveria se doar um pouco, ela se mostraria de um jeito diferente, menos séria e menos reservada. Tinha, afinal, consciência de que em Cracóvia, cidade orgulhosa de seu prêmio e explicitamente criada para a vida social, as aparições públicas não poderiam ser totalmente evitadas. Talvez por isso tenha aceitado a proposição de Jerzy Illg, diretor-chefe da editora Znak conhecido pelas ideias divertidas para a “vida periliterária”, e, em 18 de novembro, ela se apresentou no Teatro Velho, em Cracóvia, para um público de algumas centenas de pessoas (os que ficaram de fora puderam assistir à apresentação em telões no saguão). Szymborska leu seis de seus poemas. Depois respondeu com total seriedade algumas perguntas da linguista e crítica literária Teresa Walas (ficamos sabendo, por exemplo, que a poeta nunca tinha sonhado com a fama e, portanto, não conseguiria se transformar de pessoa em personalidade), mostrando claramente qual parte de si ela estava disposta a exibir publicamente.
Então começou a brincadeira. O condutor da festa, Jerzy Illg, leu um limerique[2] dedicado a ela: “Por certa poeta o Nobel aguardava,/mas a porta da casa ela sempre trancava./E, em vez de voar para Estocolmo,/escondeu-se numa cabana de colmo:/‘Esse problema não é meu’, sussurrava.”
Os amigos de Szymborska subiam ao palco um após o outro e também liam limeriques encomendados por Illg especialmente para aquela ocasião.
O poeta e ensaísta Bronisław Maj: “Seu nome é Wisełka, a globe trotter famosa,/a vida toda sonhou em viajar para Arosa./E logo faz a mala, na porta passa a tramela,/mas os suecos sabidos dão o Nobel para ela./Estocolmo sorri, e Arosa está toda chorosa.”
O historiador da arte e escritor Jacek Woźniakowski: “Em Cracóvia, uma linda Safo havia,/que de autógrafo não gostava e corria,/mas aos poucos acabou a antipatia/não só dá autógrafo hoje em dia,/como dela tiram até fotografia.”
A própria Szymborska também leu alguns limeriques de sua autoria, dentre eles um escrito especialmente para Illg:
Na Znak, Jerzy Illg, o editor cem por cento,
No trabalho se pendurava num gancho a contento
E, sentado atrás da mesa, eis o exausto paletó
Para o autor apavorado exclamar num grito só:
– O manuscrito lhe mostro para o ano, miserento.
Dessa maneira, a brincadeira literária privada, do mesmo tipo que há anos a poeta realizava no grupo de amigos, pela primeira vez foi apresentada à luz dos refletores. O que teria importantes consequências para a corrente de poesia engraçada e de puro nonsense até então fracamente representada na Polônia.
Enquanto isso, a premiação instigava parte da direita a relembrar, mais uma vez, alguns poemas de Szymborska escritos no período stalinista. A revista Tygodnik Solidarność (Semanário Solidariedade) publicou o texto O Prêmio Dá o Que Pensar, no qual o crítico Krzysztof Dybciak, então da Universidade Católica de Lublin, afirmou que Szymborska, por ser autora de poemas dedicados a Stálin e ao Partido Operário Unificado Polonês, não podia ser considerada um modelo ético e que sua poesia “não iniciou novas correntes ou tendências estéticas na nossa literatura, nem provocou quaisquer discussões intelectuais”.
O crítico literário Jacek Trznadel escreveu que, se o Nobel fora concedido a poemas tão fracos, então havia por trás disso “um lobby específico”, do qual participavam “círculos influentes”. “O que fazer com os poemas stalinistas de Szymborska, da sua primeira coletânea de poesia?”, perguntou ele, com preocupação. “E o elogio ao ódio na crítica aos imperialistas americanos [no poema Da Coreia], com a seguinte imagem de um coronel americano: ‘Um gaiato ignóbil, pagando ao torturador pela perfuração dos olhos de um menino coreano.’ Lembro-me de que riam daquele ‘gaiato ignóbil’ depois que o poema foi publicado.” (É interessante notar que Trznadel, autor de Hańba Domowa [Vergonha doméstica, com entrevistas com escritores sobre os anos do stalinismo na Polônia], que apelou para que o passado não fosse apagado, de certa maneira não teve pressa de recordar que, em 1953 e 1954, escreveu duas resenhas entusiasmadas sobre os livros do período realista socialista de Szymborska e que ficou particularmente comovido com o poema em que ela expunha sua antipatia pelo coronel americano na Coreia).
Depois do Nobel, publicações polonesas tais como Nossa Polônia e O Pensamento Polonês já revelavam, por seus títulos, o conteúdo dos textos: “A alegria [com o prêmio] parece menor”, “Se [o poeta Zbigniew] Herbert fosse mulher…”, “Nobel do contexto, modelo moral?”, “A outra face da laureada”, “O Nobel é um lixo?” etc.
Os mais variados jornalistas de direita tomaram a mesma linha de raciocínio. Se uma poeta polonesa ganhou o Nobel, isso significa que esse Nobel pertence à Polônia. E, uma vez que pertence, é necessário pensar a quem ele deveria de fato ter sido outorgado. E, realmente, não há o que pensar duas vezes, já que a questão é clara: “Este é um prêmio contra Zbigniew Herbert”, sentenciou-se.
E assim explicaram aos leitores: a esquerda intelectual mundial que administra a distribuição dos prêmios foi incapaz de superar suas limitações e dar o Nobel a alguém que não se manchou com nada nos tempos do stalinismo – e, então, decidiu premiar justamente Szymborska. Esclareceram que “a melhor recomendação para os acadêmicos suecos” foi o fato de ela ter publicado crônicas mensais na Gazeta Wyborcza e poemas nas revistas Tygodnik Powszechny, Odra, NaGłos, dentre outras mídias “pouco patrióticas”.
Por sua vez, os autores do bizarro livro Dwa Oblicza Szymborskiej (As duas faces de Szymborska), no qual fatos conhecidos da biografia da ganhadora do Nobel foram distorcidos, escreveram que os poemas dela despertam a suspeita de que “não gosta muito de Deus”; também disseram que a poeta, ao citar as Sagradas Escrituras, sempre está se referindo ao Antigo Testamento.
Voltou também à tona a questão do poema Ódio. Criou-se a tese de que o diretor da Gazeta Wyborcza tinha encomendado a Szymborska um poema contra a investigação das relações de políticos e funcionários públicos atuais com o antigo sistema comunista.
“Esse ataque traz um elogio oculto: alguém imaginou que eu era tão capacitada a ponto de escrever um poema em algumas horas, e o poema era bastante longo”, admirou-se a poeta, que, naquele mesmo período, junto com algumas dezenas de intelectuais, tinha assinado uma carta aos políticos: “Em nome do bem comum, apelamos para a decência em atos e palavras. O ideal do serviço público não pode ser destruído.”
Foi um leitmotiv nas conversas que tivemos com conhecidos e amigos de Szymborska, no outono de 1996, a compaixão que manifestavam pela poeta, atormentada pela súbita fama, o interesse da mídia e os ataques da direita. Eles se condoíam da “pobre Wisława” de todas as maneiras possíveis depois que Bronisław Maj definiu a concessão do Nobel a ela como “a tragédia de Estocolmo”. Apenas o professor Tadeusz Chrzanowski declarou com severidade: “Quando se escreve poemas tão bons, é preciso contar com o Prêmio Nobel, e já se sabe que com ele estão associadas várias obrigações.”
“O sr. [Seamus] Heaney me escreveu contando como é a vida depois do Nobel. Começam a aparecer amigos dos quais você se lembra com dificuldade, parentes dos quais nunca ouviu falar o visitam e, inesperadamente, algumas pessoas se tornam seus inimigos. É muita dor de cabeça, com viagens, palestras etc. Ele resumiu: ‘Pobre, pobre Wisława’”, ela contou a Andrew Nagorski, da revista americana Newsweek. “Proferir palestra é uma tarefa tão exaustiva que eu gostaria de evitar. Talvez eu tenha dado três palestras em toda a minha vida, e todas as vezes foi um suplício.”
“Em Cracóvia”, ela contou à escritora Bogusława Latawiec, “eu já não abro a porta para ninguém, falo só pelo interfone: ‘Minha irmã não está em casa.’ Montes de cartas pedindo dinheiro estão espalhadas no chão. E eu ainda nem tenho nada.”
No aeroporto de Varsóvia, antes do voo para Estocolmo, um dos jornalistas perguntou como era pertencer ao panteão dos maiores nomes da literatura mundial.
“Isso só o tempo dirá. Vamos voltar a nos falar daqui a cem anos”, ela combinou com ele.
Szymborska já estava em Estocolmo quando a imprensa noticiou que ela apareceria nas cerimônias do Nobel com trajes feitos pela Casa de Moda Telima, uma das mais tradicionais da Polônia. Em sua mala havia quatro costumes, sendo um deles cinza, um quadriculadinho e um na cor vermelho-borgonha, dois vestidos de noite e dois casacões. Ela recebeu o Nobel usando um longo vestido na cor marrom-tabaco, de cetim francês com lycra, e no baile no palácio do rei, apresentou-se num vestido cor azul-cobalto com acabamento em renda na cor prata-velha. O resto da equipe – a poeta foi para Estocolmo com um secretário e uma dezena de amigos – teve de se preocupar com os trajes por conta própria. O professor Tadeusz Chrzanowski nos contou que pegou emprestado um fraque do Teatro Juliusz Słowacki usado na ópera Eugene Onegin. Precisou mandar ajustá-lo às pressas e também pregou nele uma medalha para encobrir uma marca de bala.
No avião, verificaram que o boletim editado pela linha aérea Scandinavian Airlines destacava fotos coloridas de macacos, animais que sempre tiveram a simpatia da poeta. Então, arrancaram as imagens e entregaram-nas à Szymborska, que poderia utilizá-las nas colagens que costumava fazer (realmente, depois de voltar da Suécia, seu secretário recebeu da chefe um cartão-postal com uma colagem e a inscrição “Os doze macacos já estão em Cracóvia”). Ainda durante o voo, a ganhadora do Nobel foi convidada a ir à cabine do piloto, o que ela aceitou de bom grado. Sua amiga e linguista Teresa Walas a acompanhou. Durante a viagem, elas se perguntaram se não podiam cometer um atentado terrorista contra a tripulação e conduzir o avião para o Sul, onde ficariam esperando em algum lugar da Riviera até que a cerimônia do Nobel acabasse.
Quando perguntaram a Szymborska, ainda em Varsóvia, o que mais a apavorava, ela respondeu que eram os jornalistas. No aeroporto em Estocolmo, uma multidão deles e de fotógrafos a esperava. E, então, tudo começou.
“O que a senhora pensa sobre a poesia do papa [o polonês João Paulo ii]?”
“O santo padre é infalível apenas nas questões da fé”, ela comentou.
Mas também se esforçou para responder de maneira menos lacônica.
“Eu não evito as pessoas, gosto muito de me encontrar com elas, mas não mais do que uma dúzia por vez. Se houver um número maior do que esse, já é para mim uma multidão. Há dois meses estou rodeada por pessoas, pessoas e pessoas. E isso é mais terrível para mim do que para alguém que gosta de muita confusão em torno de si. Eu não gosto muito disso.”
“É verdade que a senhora escreveu o discurso mais curto da história do Nobel?”
“Estou bem preocupada com isso. Eu, em geral, tenho tendência para o aforismo e a brevidade, e essa é provavelmente uma condição incurável, não sei escrever discursos, não tenho talento nenhum para isso. Foi assim: eu estava escrevendo numas folhinhas bem pequenas; escrevia, cortava alguma coisa, de modo que não tinha a menor ideia de quanto havia escrito de fato. Depois, durante alguns dias, tive medo de transcrever aquelas notas, porque eu sempre escrevo à mão, e não diretamente no computador. Depois da transcrição, eu tinha seis páginas e meia de discurso, nem uma linha a mais. Se os organizadores me permitirem, como acréscimo lerei três poemas que têm relação com o que vou falar.”
“[A poeta] Ewa Lipska se esqueceu de pôr na mala sua saia longa; [o crítico] Edward [Balcerzan] perdeu um botão ornamentado; o professor Chrzanowski, a condecoração da Águia Branca que adornava seu fraque; na recepção do Pen Club, alguém trocou o sobretudo preto do poeta Ryszard Krynicki por uma jaqueta desgastada; a gravata-borboleta do poeta [Piotr] Sommer se desprendeu dez minutos antes da ida para a Filarmônica; e Szymborska, no último instante, tomada de aversão pela roupa de gala com a qual deveria receber o Nobel, trocou-a num piscar de olhos pelo vestido marrom-tabaco, que, por fim, ganhou o segundo lugar no concurso de modelos femininos, depois do vestido da rainha da Suécia” – assim Bogusława Latawiec enumerou as chamadas tragédias menores da expedição conjunta a Estocolmo.
O programa oficial contava 22 pontos, ou seja, uma quantidade tal de compromissos que, num período normal, Szymborska certamente os distribuiria ao longo de alguns meses ou talvez de anos.
“Ao que parece, a primeira frase de um discurso é sempre a mais difícil. Pois bem, essa já ficou para trás…”, ela disse em seu pronunciamento, em 7 de dezembro. “Por isso valorizo tanto estas duas pequenas palavras: NÃO SEI. São pequenas, mas têm asas poderosas que expandem nossa vida até os espaços no interior de nós mesmos e os espaços nos quais está suspensa nossa minúscula Terra. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo ‘NÃO SEI’, as maçãs do pomar poderiam ter caído como granizo diante dos seus olhos e ele, na melhor das hipóteses, teria se abaixado para pegar uma e comer com apetite. Se minha conterrânea Marie Skłodowska Curie não tivesse dito a si mesma ‘NÃO SEI’, provavelmente teria se tornado professora de química em alguma escola para moças de boa família e, nesse emprego – aliás, perfeitamente respeitável –, teria passado sua vida […]
“Imagino, por exemplo, em minha audácia, que posso ter uma conversa com Eclesiastes, o autor daquele lamento tão comovente sobre a vaidade de todas as ações humanas. Eu lhe faria uma profunda reverência, pois se trata de um dos poetas mais importantes – pelo menos para mim. Mas, depois, tomaria sua mão e diria: ‘Nada de novo sob o sol’, escreveste, Eclesiastes. No entanto tu mesmo nasceste novo sob o sol. E o poema que criaste também é novo sob o sol, já que ninguém o escreveu antes de ti. E novos sob o sol também são todos os teus leitores […] E, além disso, Eclesiastes, queria te perguntar o que pretendes escrever agora que seja novo sob o sol […] Não dirás decerto: ‘Escrevi tudo que tinha para escrever, nada tenho a acrescentar.’ Nenhum poeta no mundo pode dizer tal coisa […] O que quer que pensemos sobre este mundo – ele é espantoso. Porém, no termo ‘espantoso’ se esconde uma armadilha lógica. Espantamo-nos, afinal, com o que diverge de alguma norma conhecida e comumente aceita, de alguma obviedade à qual nos acostumamos. Mas a questão é que não existe esse mundo óbvio. Nosso espanto existe por si só e não resulta de comparação com coisa nenhuma.” Szymborska dedicou à incerteza e ao espanto muitos poemas, porém nunca havia conversado com Eclesiastes antes. Quando mais tarde lhe perguntamos se ela havia usado no discurso uma ideia de poema que seria justamente a conversa com Eclesiastes, ela respondeu que sim com um aceno de cabeça.
Seu discurso (o então secretário da Academia Sueca, Sture Allén, disse que foi o maior poema que ele leu na vida) foi complementado, conforme anunciou, com três poemas – Salmo, Certa Gente e Uma Versão dos Acontecimentos –, que ela leu em polonês e seu tradutor Anders Bodegård leu em sueco:
Se é que nos foi permitido escolher,
parece que ponderamos por muito tempo.
Os corpos propostos eram desconfortáveis
e se acabavam muito feios.
[…]
Concordamos com a morte,
mas não com todas as suas formas.
O amor nos atraía,
sim, mas o amor
que mantém as promessas.
[…]
Todos queriam ter uma pátria sem vizinhos
e viver a vida toda
nos intervalos entre as guerras.
Nenhum de nós queria tomar o poder,
nem se submeter a ele,
ninguém queria ser vítima
das ilusões próprias e dos outros,
não havia voluntários
para as multidões e desfiles,
sem falar das tribos em extinção
– sem isso, contudo, a história
não poderia de maneira alguma avançar
pelos séculos previstos.
(Uma Versão dos Acontecimentos, do livro Fim e Começo, 1993)
“A cada intervalo de poucas horas, todas as emissoras de tevê do mundo lançavam luzes em seu rosto, suas mãos, em toda ela”, escreveu Bogusława Latawiec. “Eu me perguntava quanto tempo aquilo ia durar, ao ver sua expressão contraída no café da manhã, quando, por um segundo, ela acreditava que ninguém a estava olhando. ‘Não consigo dormir, nem com remédios’, queixou-se para mim baixinho, como uma criança cansada, e, fechando os olhos, tragou avidamente o terceiro cigarro num período de alguns instantes […] Um dia antes da entrega do Nobel, os artifícios elaborados com tanto zelo começaram a desabar. Por trás dos buquês de flores dispostos em esferas cor de safira, das limusines, dos clarões dos flashes, por trás dos refletores, aparecia a face cansada de Wisława. Isso não fora previsto. A rosa recém-escolhida deveria emanar de si uma felicidade sincera.”
“Somente agora compreendi o mito de Orfeu, que foi dilacerado pelas bacantes apaixonadas por sua arte”, disse Szymborska, passando a palma da mão pelo rosto, como se tivesse esperança de assim retirar dele aquela máscara opaca e espessa. “Acontece que isso não é nenhuma metáfora […] Eu preciso não olhar para ninguém por algumas horas, senão amanhã vou estragar tudo.”
Szymborska desistiu das atividades planejadas para o dia 9 de dezembro. Não foi à sessão de autógrafos na maior livraria de Estocolmo, para a qual acorreram multidões de moradores. A maioria recebeu com compreensão sua ausência, mas não faltaram os amargurados. O correspondente da Gazeta Wyborcza ouviu quando uma mulher se lamentou: “É de se esperar que um laureado com o Nobel venha e dê autógrafos. Que exemplo para as crianças!”, ao que um funcionário da livraria lhe disse: “Nunca nos tinha acontecido antes de um laureado do Nobel não vir. No ano passado, Seamus Heaney autografou seus livros, embora estivesse com febre alta.”
A poeta também não foi ao almoço. Apareceu por alguns minutos na recepção em sua homenagem no Grande Salão da Academia Sueca e posou para fotografias em grupo. Não compareceu também à leitura de poemas, à noite.
“Um pouco antes, o médico a examinou”, relatou Latawiec, “e disse que não era nada grave. Que era apenas a ‘doença do Nobel’, como a chamavam na Suécia. Todo ano alguém pega essa doença. Recomenda-se repouso total.”
No dia seguinte, Szymborska desceu para o café da manhã já com o ânimo melhor. “Hoje o rei vai me pedir a mão, porque já tenho dote”, ela disse. E voltou para a moedeira.
Antes do meio-dia, ensaio geral da cerimônia principal na Filarmônica. “Oportunidade para espiar os laureados submetidos à ordem unida de conduta da corte.”
“Dez laureados do Nobel, 3 poltronas douradas com forro azul-celeste, 8 mil cravos em vários tons de amarelo e laranja, 1,2 mil lírios, 1 mil gladíolos e 200 gérberas – o aroma por si só já deixava tonto, mesmo as flores estando cobertas com filme plástico no ensaio geral”, descreveu o correspondente da Gazeta Wyborcza.
O presidente da Fundação Nobel encarnou o papel do rei, para que cada laureado pudesse treinar como receber o diploma com a mão esquerda e com a direita apertar a mão do monarca. Depois ainda houve a sequência das reverências: primeiro o rei, depois a Academia e finalmente o público. Jerzy Illg descreveu que o presidente da Fundação Nobel, ao desempenhar suas funções de substituto do rei, corria de um laureado a outro para pegar de volta o diploma e a medalha, pois só dispunha de um conjunto deles (à tarde, Szymborska divertiu e comoveu todos com suas mesuras fora do regulamento, curvando-se primeiro para o público, sem conseguir esconder a confusão com esse faux pas). O recebimento do prêmio pelas mãos do rei Carlos XVI Gustavo deu-se às quatro da tarde, e às sete da noite ocorreu a recepção nos salões da prefeitura.
Havia 1 250 convidados, 650 mesas, 305 garçons. Entrada: gelatina de lagosta com creme de couve-flor e caviar e um pãozinho chamado nobel, com quatro tipos de sementes; prato principal: galinha-d’angola guarnecida com batatas da Lapônia e legumes cozidos cobertos com molho de limão. “Os pratos foram unanimemente considerados horríveis, apesar de os nomes serem maravilhosos. A falta de conhaque para acompanhar o café também espantou”, escreveu o correspondente da Gazeta. “Além disso, havia um espetáculo no estilo pseudo-oriental.” No banquete, Szymborska sentou-se no lugar de honra, do lado direito do rei Carlos XVI Gustavo. Depois, ela disse à tevê sueca que tudo para ela tinha sido extraordinário e que nunca havia se sentado ao lado de um rei antes.
Szymborska, fumante inveterada havia anos, que evitava as cerimônias oficiais nas quais não se podia fumar, conseguiu tirar da recepção o próprio rei para fumarem um cigarro (numa fotografia vê-se com que prazer a poeta solta para o alto circulozinhos de fumaça, mas a imagem sofreu embargo, porque nela aparecia o rei, que não deveria escandalizar os súditos). Os opositores do tabagismo protestaram também contra a colocação nas bibliotecas públicas suecas de um cartaz de autoria de Joanna Helander que mostrava Szymborska fumando um cigarro.
Edward Balcerzan, presente em Estocolmo, contou-nos que a poeta, um dia, lhe perguntou: “O senhor deixou de fumar? Ah, isso significa então que não quer morrer?”
Certa vez ela escreveu: “Num mar de café nadou A Comédia Humana. Num lago de chá, As Aventuras do Sr. Pickwick. Na suspensão da fumaça do tabaco, nasceram Pan Tadeusz,[3] No Coração das Trevas, A Montanha Mágica…” Ela repetiu, com todo vigor, no filme de Lars Helander: “Quando me concederam o Prêmio Nobel, dei-me conta de que as obras dos meus excelentes antecessores, como Thomas Mann ou Herman Hesse, também surgiram nas nuvens de fumaça. Eu duvido que a goma de mascar de nicotina fará um bem semelhante à literatura.”
Agora só faltava isto para Szymborska fazer: encontro no departamento de Filologia Eslávica da Universidade de Estocolmo e banquete no castelo real, oferecido pelo rei e a rainha em honra dos laureados com o prêmio Nobel (11 de dezembro); visita à Fundação Nobel e excursão a Gotemburgo para um encontro na universidade (12 de dezembro); visita à Universidade de Uppsala (13 de dezembro); encontro com a colônia polonesa local no prédio da Academia Sueca e depois sessão de autógrafo de seus livros (14 de dezembro).
No encontro com a colônia polonesa, quando proferia o panegírico, o tradutor Leonard Neuger foi interrompido pela vencedora do Nobel: “Leo, eu não sou assim tão dramática. O próprio Miłosz escreveu que no meu mundo dá para se viver.”
Num dos inúmeros banquetes, calhou de ela se sentar ao lado de outro laureado pela Academia Sueca, o cientista suíço Rolf Zinkernagel, premiado por suas conquistas no campo da fisiologia, medicina e imunologia. Szymborska confessou a ele que preferiria receber um Nobel na área em que ele trabalhava. “‘Se a senhora pensa assim’, respondeu Zinkernagel, ‘já tem um emprego garantido comigo.’ ‘Tudo bem’, eu disse, e perguntei: ‘Mas o que eu vou fazer?’ ‘No começo a senhora vai lavar os frascos do meu laboratório.’”
Szymborska insistia com seus convidados que foram a Estocolmo para que não deixassem de ver o navio Vasa exposto no museu de mesmo nome, que a poeta havia conhecido em uma visita anterior à cidade. O navio era para ser o orgulho da frota bélica sueca do século xvii, mas não chegou até a Polônia, afundou na primeira viagem, quarenta minutos depois de ser lançado ao mar. Latawiec anotou as palavras dela: “É muito lindo quando, depois de um conflito bélico entre nações, resta apenas uma exposição num museu.”[4]
Alguns anos depois, quando saiu em sueco mais uma grande coletânea de poemas de Szymborska, na tradução de Anders Bodegård, a poeta foi com seu secretário, Michał Rusinek, ao recital de poemas em Estocolmo. “Depois, a guia nos levou a um restaurante que fica numa casa onde trabalha o Comitê do Nobel, no andar superior”, contou-nos Rusinek. “Ao chegar ao restaurante, como não tínhamos reserva, a guia disse ao garçom que aquela senhora que estava conosco tinha um Nobel.” “De que ano?”, perguntou o garçom. “De 1996”, ela respondeu. “E Nobel de quê?” “De Literatura.” “Está bem, é a mesinha junto à janela, por favor.” J
[1] A partir de 1952, quando se tornou membro da União dos Escritores Poloneses, Szymborska passou a ir regularmente, no outono, a Zakopane, cidade no Sul da Polônia conhecida como “a capital do inverno” do país. A poeta se hospedava na Casa do Trabalho Criativo Astoria.
[2] Poema humorístico composto de uma estrofe com cinco versos rimados.
[3] Pan Tadeusz Czyli Ostatni Zajazd na Litwie (Dom Tadeusz ou a última excursão armada à Lituânia), poema épico publicado em 1834 por Adam Mickiewicz (1798-1855), nome central do Romantismo polonês.
[4] Entre 1600 e 1629, a Polônia e a Suécia travaram uma guerra intermitente, em razão das tentativas do rei polonês Sigismundo III Vasa para recuperar o trono sueco, que ele herdara em 1592 e do qual fora destituído em 1599.
Trecho do livro Quinquilharias e Recordações: Biografia de Wisława Szymborska, a ser publicado em janeiro pela editora Ayiné.
Jornalista e escritora polonesa, colabora com a Gazeta Wyborcza
Jornalista e escritora polonesa, colabora com a Gazeta Wyborcza.