Tipsi só cortou as tranças típicas de sua origem aos 18 anos. “Disciplina não machuca”, dizia FOTO: ÁLBUM DE FAMÍLIA
Fusão invencível
Até o fim da vida ela cantou e rezou em alemão. Mas aprendeu a dançar forró e comer macaxeira no café da manhã
Dorrit Harazim | Edição 41, Fevereiro 2010
Observar Zilda Arns fazer as malas e partir em viagem era uma aula de “Eficiência Máxima com Risco Mínimo”. Bastava observar o minimalismo com que executava a tarefa para entender por que a pantagruélica Pastoral da Criança nunca saiu dos trilhos. Criação e criatura se espelhavam numa mesma cartilha: “Pensar e planejar é ótimo, mas o importante é fazer e resolver.”
Um dos quartos do apartamento de Zilda Arns, em Curitiba, era reservado ao material necessário para a sua vida pública. O armário embutido tinha roupas, sapatos e adereços de uso apenas para viagens e agenda profissional. A cama servia para espalhar e organizar itens que precisavam caber na bagagem. “Quando entro aqui, não desmobilizo a cabeça”, explicava. “Mas, quando estou no meu quarto, faço questão de me sentir completamente livre, só comigo mesma. Nele, não quero saber de serviço. Nem a minha bolsa eu quero ver na minha frente.”
O primeiro evento de uma viagem seria em estúdio de televisão? Sapecava logo um broche da Pastoral na lapela do traje que iria usar. Para homenagens em cidades múltiplas, levava um só conjunto coringa (blazer, tubinho básico, sapato de salto sensato). Já em caso de eventos múltiplos numa mesma localidade, escolhia peças avulsas intercambiáveis. Item obrigatório para missões de muito bate-perna: o par de chinelos dobráveis, acondicionado em saquinho próprio, cortesia de uma empresa aérea.
Sua mala preferida, apesar de compacta, permitia acondicionar vestidos e jaquetas com uma única dobra, em vez de duas. “Assim amassa menos e dispensa ser passado a ferro na chegada”, esclarecia, satisfeita. Com o tempo, e a milhagem crescente, elaborou uma lista de hotéis brasileiros que não cobram serviço de passadeira. Sua técnica de dobrar peças mantendo colarinhos e mangas lisinhos merecia ser patenteada.
Foram pelo menos vinte anos com uma média de 45 viagens por semestre, e apenas três extravios de bagagem. Um deles, em 1994, roubou-lhe a elogiada serenidade, face neutra que disfarçava a sua tenacidade. Ao desembarcar em Washington, numa manhã de sábado, para receber o prêmio internacional da Organização Pan-americana da Saúde, a mala com a “roupa chique” tinha sumido. Foi a um supermercado comprar uma blusinha enquanto esperava a mala que nunca veio. Por isso, a homenageada da soirée de gala subiu ao pódio vestindo blusinha de supermercado. Aprendeu a lição: a bagagem de mão, até então reservada para materiais de trabalho (“a única coisa que não pode extraviar nunca”) passou a abrigar também uma muda de roupa multiuso, zipada em plástico.
Poucas são as mulheres que encarariam com naturalidade uma viagem Curitiba-Timor Leste nos moldes do périplo realizado pela médica e sanitarista, aos 66 anos de idade. À época, o Brasil ajudava a reconstrução da ex-colônia portuguesa devastada pela guerra, e a implantação da Pastoral da Criança fazia parte da empreitada. Embora integrasse a comitiva do presidente Fernando Henrique Cardoso, a Dra. Zilda partiu em voo comercial, enquanto a caravana oficial seguiu no avião presidencial.
Chegou para o embarque com uma bagagem de 90 quilos. Para uma viagem que a levaria a três continentes, seus pertences pessoais ocupavam apenas uma mala pequena. O restante do excesso de peso estava tomado por material didático, dez balanças de pesar crianças e mil colheres de medição do soro caseiro. Na bagagem de mão, acrescida de duas sacolas, a pediatra acomodou camisetas com o emblema da Pastoral e material de treinamento de parteiras leigas. “Assim, pelo menos, garanti o serviço”, explicou na volta. “Eu quis levar o máximo possível comigo, porque a posteriori tudo seria mais complicado pela distância e difícil comunicação.” Para um dos cinco filhos, Nelson Arns Neumann, à época epidemiologista e até hoje coordenador-adjunto da Pastoral, nenhuma novidade. “Com a mãe nada fica para depois, e infeliz daquele que vier com relatos de dificuldades”, comentou.
Ao desembarcar em Díli, capital do Timor Leste, Zilda Arns tinha lido o suficiente – e um pouco mais – sobre o país cuja população equivalia à metade do número de crianças brasileiras acompanhadas mensalmente pela Pastoral: 1,6 milhão. Ela estava pronta para dar palestras, explicar, perguntar e ouvir. Sabia que apenas 20% dos timorenses falavam português, que o indonésio e o inglês continuavam sendo idiomas de negócios, e que as palestras dos brasileiros seriam traduzidas para o tétum, a língua nacional da jovem nação. Durante a estadia, fez anotações de tudo que julgou útil ou pertinente.
Na viagem de retorno, atravessou vários fusos horários e incluiu escalas com reuniões em Jacarta, na Indonésia e Cidade do Cabo, na África do Sul, até cruzar o Atlântico e pousar em Brasília – onde pegou a conexão para Curitiba. Ao todo, Zilda Arns ficou socada dentro de um avião três dias. Na manhã seguinte, uma quinta-feira, dava expediente na sede da entidade, no bairro de Mercês. E no fim de semana escreveu um relatório de dez páginas intitulado “Memória da minha viagem ao Timor Leste na comitiva presidencial do senhor presidente da República Fernando Henrique Cardoso (18 a 24 de janeiro do ano 2001)”. Para quê? “Ora, para que a memória seja guardada”, respondeu, surpresa com pergunta tão óbvia. É pouco provável que outro integrante da comitiva tenha produzido tão rápido um texto tão informativo – se é que alguém escreveu algo.
O voo rasante de Zilda Arns sobre Díli gerou resultado imediato também para a Pastoral. Passada uma semana, a sergipana Ana Ruth Góes, graduada em obstetrícia e pediatria, e coordenadora estadual da entidade, recebeu um telefonema de Curitiba. A Dra. Zilda queria saber se ela aceitava implantar a Pastoral em Timor Leste. “Precisamos capacitar umas trinta agentes, além de formar algumas lideranças”, indagou e comunicou.
Feito. Em julho do mesmo ano, Ana Ruth, irmã Maria de Lourdes Mattiello e Odete Dorigon embarcavam para uma estadia de três meses no outro lado do mundo. O Timor Leste tornava-se o 13º país para onde o Brasil exportava o que tinha de melhor.
A morte de Zilda Arns aos 75 anos no interior da Igreja Sacré Coeur, em Porto Príncipe, tragada pelo terremoto que destruiu o Haiti, foi uma fatalidade dupla. Até poucos anos atrás, este período do ano estaria blindado em sua agenda, inapelavelmente reservado ao convívio com os filhos, netos e, sobretudo, os irmãos ainda vivos. O tempo entre a semana de Natal e meados de janeiro era sagrado: as três gerações se reuniam, ora na chácara da família, a 40 quilômetros de Curitiba, ora na casa de praia da ainda rústica Betaras, no litoral paranaense.
Com a morte de Heriberto (frei Crisóstomo), o reverenciado primogênito dos treze irmãos Arns (sete mulheres e seis homens), e a fragilidade física do irmão número cinco, Paulo (dom Paulo Evaristo, arcebispo emérito de São Paulo), a alegre rotina ficou mais flexível. Deixou de ser impedimento ao embarque rumo ao Haiti.
Penúltima na escadinha de filhos do patriarca e fundador da cidade catarinense de Forquilhinha, Zilda foi amamentada até os 3 anos de idade. As duas tranças loiríssimas que usou até os 18 anos, a covinha acentuada na bochecha esquerda, o par de olhos azul-faísca valeram-lhe um apelido familiar que os irmãos, mesmo quando já octogenários, jamais aposentaram: Tipsi, a bonequinha.
Tipsi cresceu segundo o receituário de vida naquela colônia de assentados, onde crianças trabalhavam na roça desde cedo. Com 8 anos, Heriberto, o primogênito, já encarava sozinho 18 quilômetros a cavalo entre Criciúma e Forquilhinha, com parada para um único pão no meio do caminho. As meninas Arns trabalharam na olaria a partir dos 5 anos. “Criança forma o caráter através do trabalho, da realidade nua e crua”, assegurava o mesmo Heriberto, que se tornara frade franciscano e conceituado educador. “O trabalho foi formador para nossa geração. Quem se acostuma a ele entende melhor o progresso, cujas leis estão no sangue, no cérebro, na alma de um povo. No nosso tempo não havia tevê, nem rádio havia.”
O que havia, toda noite, era a reza do terço. “Ficávamos, todos os treze irmãos, enfileirados no quarto da mãe – e de joelhos, viu?”, contava Zilda. Depois cantava-se. “Minha mãe tinha uma voz lindíssima. Também tocava um pouco de violino, gaitinha de boca e adorava dançar.” Sete décadas depois, em tardes de verão na chácara, Zilda e os irmãos ainda podiam ser vistos entoando canções alemãs a quatro vozes durante caminhadas.
Pela cartilha desses colonos que cravaram enxada no Sul do Brasil, a vida se balizava em quatro eixos: fé, família, trabalho e estudo. A primeira construção em Forquilhinha, antes de qualquer casa, foi uma igreja. A segunda, uma escola. Quando Zilda e seus irmãos cresceram além do potencial local, o pai, que tinha apenas dois anos de escolaridade formal, despachou todos os filhos para estudar em Curitiba. Ele mesmo ergueu naquela cidade a casa onde os filhos morariam sozinhos – irmãos homens de um lado do corredor, as meninas do outro.
Todos dividiam o serviço doméstico, com Tipsi encarregada de cozinhar nos fins de semana e encerar parte da casa. Às nove e meia em ponto, todos se aprontavam para dormir. “Quando chovia, a gente levava sapato e meia limpos numa sacola de pano, e calçava sapato de andar no barro até perto da escola”, gostava de relembrar a dra. Zilda. “Depois, trocava um pelo outro para poder entrar com o uniforme impecável, senão tinha de voltar para casa. A disciplina fazia parte da cultura e quando faz parte da cultura não machuca, não é?”
Toda primeira quinzena de janeiro, três gerações de Arns acorriam para a casa de praia de Betares, no litoral paranaense (STILL DO FILME TRAVESSIA DO TEMPO_2001)
Ela demonstrou, ao longo da vida, ter razão. Ergueu a maior teia de ação social que o Brasil já conheceu sem que, em 27 anos de existência, tenha surgido uma única suspeita de desvio de verba. Lia da primeira à ultima linha tudo o que assinava, e relia em caso de alguma alteração, mesmo mínima. Apesar de, estatutariamente, poder fazê-lo, nunca assinava cheques da Pastoral sozinha. “Para dar o exemplo”, explicava. A entidade sempre funcionou com mordomia zero – nem carros, motorista, aluguel de jatinhos, nem cargos comissionados.
Aprendeu a lidar com a cultura de Brasília. “Há anos observo que é melhor somar esforços com o governo nos objetivos que nos são comuns”, disse. “Mas também sei que é melhor não procurar gabinetes nos primeiros meses de poder. O titular, quando assume, pensa que ele pode tudo por estar no cargo, e só percebe com o tempo que a máquina está enferrujada. É então que vale a pena a gente voltar lá – já nos olham com mais humildade e procuram entender melhor.”
Teve paciência infinita com o bloco de feministas consagradas de esquerda, desnorteadas pela eficácia e impacto social da Pastoral. “Odeio comitês estéreis”, comentou tempos atrás. “Mas bater boca é bobagem, não leva a nada. Eu, em 41 anos de administração, só perdi a paciência umas três vezes, porque, realmente, me provocaram até o fim. E as três vezes me arrependi.”
A vida e obra de Zilda Arns resultam do encontro dessa descendente de alemães fugidos da fome no século XIX, com o Brasil desnutrido dos séculos XX e XXI. Nesta fusão, ambos foram muito além do imaginado. Quanto ao Haiti, o país perdeu, além de tudo o mais, a chance de ter o destino de suas crianças melhorado.
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