CRÉDITO: ALLAN SIEBER_2021
Há algo no ar
O impeachment e a faca de dois gumes
Fernando de Barros e Silva | Edição 173, Fevereiro 2021
Depois de quase onze meses de desídia no enfrentamento da pandemia, no momento em que o país voltava a bater recordes de infecções e mortes diárias, quando a exaustão de muita gente parecia ter atingido seu limite, a tragédia de Manaus foi a gota d’água. As imagens de agonia e caos na capital do Amazonas desencadearam reações de comoção e revolta em escala talvez inédita desde que a doença se instalou no país. Ao colapso do sistema de saúde no Norte, somaram-se ainda, nos dias seguintes, demonstrações em cascata de incompetência e desleixo do governo no planejamento da imunização dos brasileiros.
O país sentiu muito concretamente quais podem ser as consequências quando se tem um time com o general Eduardo Pazuello na zaga e um centroavante lunático como Ernesto Araújo. Eles dirão que apenas seguem as orientações do “professor Jair”. São, como os ministros Damares, Salles, Guedes e o meio de campo dos generais, craques acidentais do 7 a 1 a que Bolsonaro submete o país.
Nossa população representa menos de 3% dos habitantes do planeta, mas o Brasil responde por mais de 10% das mortes por Covid no mundo. Mais de cinquenta nações iniciaram a vacinação antes de nós. E começamos do jeito capenga que se sabe. Por ora, há mais fotos de João Doria Jr. abraçado a caixas de CoronaVac do que doses de vacina na praça. Enquanto o governador faturava o seu momento de messias, Bolsonaro ainda insistia em se posicionar contra a imunização: “Eu não posso obrigar ninguém a tomar vacina. […] Ela tem que ser voluntária, afinal de contas não está nada comprovado cientificamente com essa vacina aí”, disse à sua claque no cercadinho do Palácio da Alvorada, no dia 22 de janeiro.
Na esteira desses acontecimentos, o coro pelo impeachment engrossou. Assim como os partidos de oposição, ex-bolsonaristas do MBL e do Vem pra Rua fizeram suas carreatas pelo país; manifestos de classe de médicos, advogados e artistas começaram a circular pelas redes sociais; artigos pedindo a saída do presidente se multiplicaram nos jornais; intelectuais liberais, marcadamente antipetistas, passaram a esbravejar “Fora Bolsonaro”. Sem medo de ser feliz. Líderes religiosos aderiram ao movimento. Há algo no ar. O que por ora não significa, nem de longe, que o impeachment se viabilizará. Mesmo em baixa, hoje Bolsonaro teria mais chances de disputar o segundo turno de sua reeleição do que de ser defenestrado do Planalto.
Quando se examina detidamente a pesquisa Datafolha do final de janeiro, fica claro que a principal razão da queda de Bolsonaro veio do bolso. Ainda que o governo não fosse uma máquina de multiplicar cadáveres e dizer aos que ficam “e daí?”, “todo mundo morre um dia”, o revés na popularidade do presidente já estava contratado. Em dezembro, entre aqueles com renda familiar mensal de até dois salários-mínimos, a quem Paulo Guedes chama de “os invisíveis”, apenas 27% consideravam o governo ruim ou péssimo. Um mês depois, segundo o mesmo Datafolha, já eram 41%.
Em nove meses, o auxílio emergencial despejou cerca de 320 bilhões de reais na economia, o equivalente ao orçamento de dez anos do Bolsa Família. Com a atividade econômica no chão, em meio a um cenário de guerra, o dinheiro que chegou às mãos de quase 70 milhões de pessoas provocou a redução temporária da miséria e da desigualdade. Mais do que dizer que Bolsonaro salvou os pobres, o que aconteceu foi o contrário. A renda provisória de quem nunca teve ou havia ficado sem nada se converteu em colchão de popularidade para um governante que jamais, nem retoricamente, se preocupou com a pobreza.
O auxílio nasceu, como se sabe, da pressão do Congresso sobre o Executivo, à revelia de Paulo Guedes. Em meados de março, com milhares de mortes ao redor do mundo e a pandemia já instalada no país, o ministro tinha na ponta da língua a receita de sua cloroquina neoliberal contra o vírus: “Se promovermos as reformas, abriremos espaço para um ataque direto ao coronavírus. Com 3 bilhões, 4 bilhões ou 5 bilhões de reais a gente aniquila o coronavírus”, disse ele à revista Veja. Duas semanas depois, o Congresso aprovava o auxílio de 600 reais por três meses. Em maio, diante das evidências de que haveria necessidade de estender o benefício, Guedes rebelou-se: “Se falarmos que vai ter mais três meses, mais três meses, mais três meses, aí ninguém trabalha. Ninguém sai de casa e o isolamento vai ser de oito anos, porque a vida está boa, está tudo tranquilo.”
Temos um ministro austero. Mas ninguém imaginava que tudo pudesse ficar tão tranquilo nesse início de ano. A pandemia escala recordes, não há vacinas nem plano de vacinação digno do nome, o desemprego está nas alturas, milhões de pessoas voltaram a viver em condições de pobreza extrema.
Bolsonaro sabe que precisa do auxílio emergencial tanto quanto a população que seu governo “ora brinca de inflar, ora esmaga” (que Chico Buarque me perdoe). O espaço de manobra agora é menor, mas alguma coisa será aprovada. Acossado, o presidente terá de se equilibrar entre as pressões do mercado e o risco de convulsão social. Mais uma vez, a área econômica do governo, a quem caberia conduzir a discussão sobre o novo auxílio, fica a reboque das negociações no Congresso.
Sem vacina e sem auxílio, é muito provável que a massa pobre já castigada pela pandemia se some às classes médias que decidiram buzinar nas ruas. Isso dará contornos menos etéreos ao movimento pelo impeachment e talvez obrigue o Congresso a se mexer.
Mas há um paradoxo embutido nesse enredo. Se a crise social recrudescer e sair de controle, isso será ruim para o conjunto do país e será péssimo para os pobres, mas não será necessariamente mau para Bolsonaro. Não se deve descartar a hipótese de que um processo de impeachment malconduzido acabe se convertendo numa nova facada, da qual o líder ferido ressurge, fortalecido, na condição de vítima de um complô.
Não é difícil imaginar Bolsonaro recorrendo ao auxílio emergencial do Centrão para barrar no Congresso “a tentativa de golpe das elites comuno-globalistas contra um governo que representa a alma do povo”. Também não é difícil imaginar um cenário em que as Forças Armadas e/ou as forças policiais (ou parte dessas corporações) estejam dispostas a atender ao apelo patriótico do capitão. No planeta Bozo, ordem significa arbítrio e AI-5 quer dizer democracia. Bolsonaro está para o caos como o peixe está para a água. Sem caos, ele morre asfixiado.
Como a história demonstrou diversas vezes, em certas circunstâncias a calamidade se transforma em tábua de salvação para aquele que a produziu. Não podemos saber se tal manobra será exitosa no caso de Bolsonaro. Mas podemos apostar que ele tentará fazê-la. Por isso, é bom que se esqueça do roteiro dos impeachments de Fernando Collor e de Dilma Rousseff se quisermos entender o que está em questão agora. Bolsonaro já anunciou, com dois anos de antecedência, que tentará melar o jogo em 2022 caso seja derrotado. Por que não faria o mesmo antes, com mais margem para se vitimizar? Não haverá saída fácil ou rápida (nem, provavelmente, desprovida de violência física) para a imensa, monumental, indescritível crise em que o país mergulhou.
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