Uma tarde na areia: os homens são fortes e barrigudos, têm os braços cobertos por tatuagens imensas, e sob as lentes dos óculos escuros à policial rodoviário não é possível dizer se dormem ou não – esparramam seus corpanzis nas cadeiras, tombam as cabeças nos ombros ou entrelaçam os dedos por trás da nuca. Ele não se ilude quanto à possibilidade de vender sua arte CRÉDITO: PEDRO FRANZ_2022
He-Man
Um cata-bagulho é sempre bem-vindo
Antonio Mammi | Edição 191, Agosto 2022
Teso até o limite, o cadarço se amarra num nó desesperado para a bermuda, esgarçada, não arriar. A bunda segura o pano do lado traseiro, mas alguns pelos púbicos são inescapáveis ao olhar do potencial cliente que estiver sentado numa canga, sem dinheiro (ou disposição) para pagar por cadeira e guarda-sol.
É arte, artesanato em ferro e madeira, explica o vendedor, enquanto tenta se desvencilhar de um saco plástico que engancha no tornozelo, trazido pelo vento que precede a chuva.
Lagarteando na areia, os banhistas superaram uma prova de monotonia viária para chegar à praia: são dezenas de quilômetros de asfalto em planalto e serra, seguidos por uma avenida triste sobre um córrego canalizado, até dar numa orla povoada por pousadas caras, restaurantes ruins e caros, um estacionamento, alguns terrenos baldios.
É para esses escombros comerciais que o vendedor está virado quando tenta empurrar uma pulseira que seja a um casal que, passada a repulsa inicial, deixa de prestar atenção nele. Não tem o tino nem a obstinação dos ambulantes, girando suas grelhas de queijo coalho ou empurrando seus carrinhos de milho verde. Logo ele vai desistir, e a verdade é que se impôs uma meta – percorrer os 3 km da praia – só para poder se tranquilizar depois sob o argumento de que o movimento estava fraco.
Os olhos secos custam a esquadrinhar o ambiente. Poderia ziguezaguear pela faixa de areia, da espuma evanescente do mar à mureta do jardim moribundo que separa a praia do asfalto, mas não tem uma estratégia – naqueles dois meses, sempre optou pelo percurso menos trabalhoso possível.
Vê uma família numerosa, servida por um cooler do tamanho de uma mesa de centro. Os homens são fortes e barrigudos, têm os braços cobertos por tatuagens imensas, e sob as lentes dos óculos escuros à policial rodoviário não é possível dizer se dormem ou não – esparramam seus corpanzis nas cadeiras, tombam as cabeças nos ombros ou entrelaçam os dedos por trás da nuca; as mulheres, por sua vez, se ocupam de impor ordem a uma massa amorfa de crianças.
Ele não se ilude quanto à possibilidade de vender sua arte: larga o expositor com o salva-vidas e se oferece para recolher as latas que a família consumiu.
Um cata-bagulho é sempre bem-vindo, pensa, enquanto guarda alguma sucata no saco de lixo que traz no bolso de trás da bermuda. O conselho quem deu foi um ambulante de mais idade, um sujeito ruim da coluna que alternava bons e maus dias – naqueles, passava a impressão de ser o vereador da praia, mesclando uma prosa agradável com os banhistas a uma sabedoria altruísta com os colegas mais jovens; nestes, denunciava um princípio de demência, com um vaivém sutil e contínuo da cabeça, feito um limpador de para-brisa.
A chuva se materializa. Pingos grossos e quentes carimbam a areia, enquanto adultos abandonam a água viscosa – as crianças seguem ali, risonhas, tomando caldos de ondas fracas.
São quatro da tarde e o pasteleiro entorna o óleo do tacho, formando uma poça que escoa até o expositor do vendedor de artesanato, encostado no pé do cadeirão do salva-vidas. Um colarzinho mal amarrado nos ganchos do quadrante inferior do suporte vai ficar inutilizado, pensa, quando volta com seu saco de sucata. Acha ruim, mas não vê sentido em discutir e ser humilhado pelo pasteleiro.
A chuva aperta. Não vendeu nada e a sucata coletada dava pouco menos de meio quilo – mal valeria 1 real. Não completou a praia toda, mas agora não adianta. A cabeça trava ao pensar no próximo passo: valeria ir até o galpão para vender aquele alumínio sujo? Ou era melhor recostar em alguma sarjeta, entrar num transe, deixar perder o saco de lixo e tentar fazer as horas passarem rápido?
Vê dois meninos se engalfinhando na grama rala do jardim e lembra que, um mundo atrás, numa época que já era quase sonho, tinha sido um bom judoca. Federado e tal, o seu velho tinha bastante orgulho. Aos domingos, desbravavam juntos a região metropolitana da capital, campeonato atrás de campeonato. O pai em silêncio, como sempre, mas reverente nesses dias, quase um funcionário seu. Passava a impressão de ruminar um futuro, mas o filho não saberia explicar isso.
Nos fins de semana, o galpão de sucata do Gaúcho não abre o portão principal, e mesmo o Gaúcho não se digna a dar expediente, encarregando um funcionário de receber a clientela, que nos dias úteis inclui comerciantes e senhoras aposentadas.
O galpão do Gaúcho fica no pé da serra, do lado de lá da rodovia. São quarenta minutos a pé da praia quando não se tem dinheiro para tomar o ônibus, e esse é o caso do vendedor de artesanato, que chega ali sem pensar muito, num arroubo de perseverança.
A porta corrediça da entrada principal está baixada. Quando é assim, o Gaúcho deixa o fluxo subir para a sobreloja por uma porta lateral. Dali se acessa uma escadaria úmida e estreita que desemboca num escritório improvisado em depósito quando o galpão do térreo, mais amplo, está trancado.
Atrás de um balcão de madeira, o funcionário do Gaúcho recebe a sucata, espremido entre a parede e uma prensa. A pouca circulação de ar e o fedor do alumínio sujo afastam aqueles a quem o Gaúcho se digna cumprimentar. Só aparece no galpão, quando a sobreloja está aberta, quem precisa levantar dinheiro rápido para o dia.
Ainda há luz e é cedo para os catadores de recicláveis voltarem da praia. Os fornecedores de sucata que estão no pedaço não têm um espírito muito mercantil, dando ao lugar uma atmosfera de confraternização. O funcionário do Gaúcho é um maranhense que tenta não roubar na balança e gosta de conversa – talvez para aplacar a solidão do quarto dos fundos, onde dorme –, então ele não vem com aquela chatice de mandar circular depois de entregar a sucata, e até deixa beber Corote lá dentro.
O atendimento não fica dos mais eficientes, é verdade, porque se o sujeito conseguir articular duas palavras, o maranhense dá ouvidos, e tem paciência para contar as moedas, e explicar por que a conta está certa se o sujeito não entender, e se o cara engrossar ele nem precisa tirar a barra de ferro de trás do balcão porque o pessoal gosta do maranhense e se prontifica a enxotar o encrenqueiro para depois seguir calculando o quanto ganharam, tomando Corote, ressentindo-se de alguém que tenha feito pouco-caso deles nos últimos dias ou compartilhando indicações de bons lugares para cagar.
O vendedor de artesanato consegue 75 centavos com as latinhas, o que não é muito mais nem muito menos do que havia calculado.
Fica à toa durante uns minutos na sobreloja, mas num primeiro momento se entedia; depois, se agonia com os colegas, e então sente a barriga vazia. Desce a escadaria e vai para a rua em direção ao asfalto, onde é mais fácil arranjar comida.
Está no centrinho, já prestes a escurecer. Tem nas mãos um salgado que uma senhora lhe comprou, depois de ter comentado que ele ainda estava com a pele boa e que a dentição tinha jeito, para então lhe passar um breve sermão, dizendo que tinha que se cuidar melhor, do jeito que estava era normal que as pessoas o evitassem, precisava de um banho.
Mastiga o salgado frio, perambula um pouco, as pessoas estão voltando da praia e ainda é cedo para os restaurantes começarem a servir o jantar. É um enrolado de presunto e queijo com mais massa do que recheio e, apesar da fome, sente-se cheio e joga fora a última mordida.
Ha-hai está passando do outro lado da rua, e ele se dá conta de que já não o vê faz um tempo. Ha-hai é um mendigo de voz potente, que ganhou a simpatia de moradores e turistas pelas imitações que faz. Seu repertório inclui uma performance perfeita da vinheta do serviço de chamada a cobrar, mas o grande sucesso junto aos transeuntes é a gargalhada do Silvio Santos. É por isso que o vendedor de artesanato o chama assim, porque as pessoas o interpelam com um sorriso aberto, tentando reproduzir um “ha-hai” tão sonoro quanto o seu, ansiosas pelo arremate com um “hi-hi”.
Mas o grande trunfo de Ha-hai, na opinião do vendedor de artesanato, é a artimanha que usa na hora do almoço. É quando o mendigo costuma gritar com seu timbre de locutor: “Pelos poderes de Grayskull!” Toma ar e então, boca escancarada ao léu, sobe uma nota. “Eu tenho a fôôôme!” Ao jargão do He-Man, às vezes um gaiato se arrisca a responder. “Eu também!” Alguém acaba rindo, ele ganha um marmitex de lambuja.
Nessa noite Ha-hai está com pressa. Carrega um saco de lixo, parece não estar com cabeça para os seus números, e quem ainda está na rua não estranha a ausência dos anúncios engraçados. E então o vendedor vê algo que lhe chama a atenção. À frente da porta da academia da cidade, que ele acreditava funcionar só durante a semana, um menino de quimono digita uma mensagem no celular.
Ele estuda o garoto por alguns momentos e pensa que deve falar alguma coisa. Pensa em falar do campeonato metropolitano infantil, quando ganhou de um adversário 15 cm mais alto. Pensa em falar de uma competição nacional que disputou, numa viagem acompanhado do pai.
O menino não levanta os olhos do celular, a penumbra começa a tomar conta do ambiente e seu rosto é iluminado pela luz fraca da tela. O vendedor de artesanato começa a andar reticente em sua direção e, depois de definir o que falar, caminha mais decidido.
Está a uns cinco passos do menino quando um instrutor, saindo da academia, presta atenção na movimentação.
“Vaza.”
Ele para, hesitante. Ameaça continuar, projetando o torso pra frente.
“Vaza”, prossegue o instrutor, desta vez dando uma pisada forte no chão.
Ele vaza.
“Noia do caralho”, esbraveja o instrutor, tirando as chaves do carro do bolso. O menino não levantou os olhos do celular.
Às vezes o vendedor deixa suas tralhas num pavilhão à beira-mar, circundado pelo mesmo jardim onde tinha visto os meninos brincarem de lutinha horas antes. É uma estrutura que deve ter sido digna no projeto, com um arco servindo de teto para um quiosque e um banheiro. O arco é de amianto, e ele suspeita que não deveria ser: de dia, é melhor tomar o sol das onze na cabeça do que se proteger na sombra daquela estufa retorcida de pé-direito alto, que deixa o ar espesso como gás de isqueiro.
Quem manda no pavilhão é o salva-vidas da tarde, que o vendedor acha que não sabe nadar. A única vez que o viu na água foi para resgatar uma criança no raso, e mesmo assim foi todo atabalhoado, esquisito. Tropeçou, ensaiou um cachorrinho. Ele sempre dava expediente com um rapaz de uns 14 anos, que dizia ser seu sobrinho e que era quem ia para o mar quando precisava.
Mas o homem sabia se impor, esculhambava até o pasteleiro. E era com ele que o vendedor tinha acertado de deixar o expositor antes de ir para o Gaúcho, no quiosque que o salva-vidas transformou numa casa de penhor, extorquindo todo mundo que dependia daquele cubículo desgraçado que nenhum comerciante queria mais. Disse que pagaria 10 reais, mesmo sabendo que não levantaria o dinheiro com a sucata.
A porta do quiosque foi arrombada há muito tempo. A segurança da casa de penhor quem faz é o salva-vidas ou o tal do sobrinho. Apesar de sempre ter alguém por perto, o sistema não é 100%. O salva-vidas vira e mexe dá uma sapeada na hora, dá um xaveco, namora encostado na moto. O sobrinho sempre se bandeia para a mureta, fuma um baseado. E é nessa situação, cada qual para o seu lado, que o vendedor de artesanato vê a oportunidade de pegar seu expositor de volta, depois de voltar do centrinho.
Ele faz uma tocaia do outro lado da avenida, escondido atrás da estátua de cabeça de leão da entrada da pousada, esperando o salva-vidas bandear para a moto, o sobrinho para a mureta.
Na praia mesmo não tem mais ninguém. Na mureta, uns gatos-pingados. Numa moto, ao longe, a silhueta do salva-vidas enroscada em outra. O vendedor aperta o passo, atravessa a avenida deserta. O cimento do chão do pavilhão cheira a mijo, uma areia grudenta se acumula sob as pegadas de chinelos, o vendedor dá um pique, descalço. Entra no quiosque, o expositor está debaixo da bancada de mármore falso. Cata rápido e vai saindo, até tomar um socão na boca do estômago. O sobrinho.
“Eeeei, Almir!”
O salva-vidas está a 200 metros, mas pega a moto. Acelera e dá com o vendedor no chão, as pulseiras e colares todos espalhados no cimento sujo. Acerta uma bica na cabeça dele. Um pessoal que tomava cerveja no bar da avenida se aproxima. Outros que esperavam o ônibus mais à frente também.
Do chão, o vendedor enxerga a plateia. Toma um pouco de ar.
“Pelos poderes de Grayskull!”
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