Você sempre morou em cidades que achava feias. Até descobrir que todas as cidades são irremediavelmente feias, salvo algumas em que você não moraria. Sair de casa é mergulhar num lamaçal ILUSTRAÇÃO: VÂNIA MIGNONE_2017
História geral da sua vida
Um belo dia você simplesmente vai abrir os olhos e perceber que já aconteceu
Margarita García Robayo | Edição 129, Junho 2017
O menino bate palmas tão rápido que suas mãozinhas parecem se desintegrar em partículas subatômicas. Homens de uniforme instalam uma televisão descomunal na sala minimalista da sua casa. Foi seu marido que comprou. O aparelho, visto de perfil, é uma lâmina; de frente, é a maior televisão que existe no país: das sete que entraram, só três foram vendidas. “O universo audiovisual cabe na tela do seu smartphone”, você leu na revista de domingo. Seu marido não leu. Estava muito ocupado em atiçar o fogo e queimar uns papéis que soltavam uma fumaça preta.
Você se planta num canto isolado da sala e fica olhando, como se essa atitude tivesse o poder mágico de excluí-la da sua própria vida. Seu marido e seu filho têm genes nórdicos: são loiros, bonitos, desalinhados. A essa altura você já deve ter aprendido que esse desleixo voluntário no modo de vestir – jeans surrados, camisetas desbotadas, tênis sempre sujos – é sintoma inequívoco de esnobismo. É um jeito de dizer: somos elegantes demais para nos preocupar com a aparência.
Você está irritada. Faz muito tempo que você está irritada.
Antes, a irritação era uma sensação rasteira circulando no seu corpo como um gel ardente que queimava suas artérias. Agora, a irritação é um corpo compacto que se instalou na boca do seu estômago e pede para sair. O tempo todo. Dói como se você tivesse engolido uma pedra tão grande que você se pergunta como é que ela passou por sua garganta. Ela nunca passou. Nasceu e cresceu ali, e faz você querer vomitar toda vez que topa com algo que te irrita.
1) Comentários vazios.
2) Agressões silenciosas.
A humanidade se funda sobre esses dois grandes vícios.
Você dá uma olhada num novo app que de hora em hora atualiza drops de “informações gerais” extraídas da web. A seleção se baseia nos seus critérios, mas você não se reconhece neles: a pessoa que navega na internet é uma versão impune de você mesma. Há um post anunciando um eclipse para daqui a dois dias. Outro divulgando o batismo de umas siamesas negras e outro criticando a Coca-Cola: propõe seu banimento de escolas, hospitais, playgrounds. As respostas são cheias de exclamações e raiva: “Fora, Coca-Cola!”
As batalhas inúteis a enfurecem.
Você pensa que a ecologia, o veganismo e a paixão pelos animais representam a vitória de uma civilização esteta sobre outra que fracassou em sua fixação humanista.
A foto que ilustra o post mostra uma garota magra e nua com uma frase tatuada ao longo da clavícula com a mesma tipologia da Coca-Cola: Melhor beber água. Você pensa que há um ponto em que o sujeito obstinado numa causa idiota deixa de ser um inocente e passa a ser um terrorista. Pensa em escrever essa resposta no campo reservado aos comentários. Percebe que, se clicar nesse post em vez de outros, o app vai entender que você é tipo essas pessoas que despreza.
Fecha rápido, deleta.
Seu marido demora, em média, um minuto para responder a suas perguntas. Às vezes mais. A resposta dele, em geral, é outra pergunta: “O quê?” E ele afasta a mecha dourada da testa larga. Você acha que isso lhe daria tempo suficiente para formular uma frase completa que estivesse à altura da sua expectativa, mas não, porque a resposta – a segunda resposta – é sempre a mesma: “Não sei.”
Sua sogra lança elogios ao vento. Ela sente que deve dizer coisas amáveis, mas superficiais, por default: você está linda – quando é evidente que não –, que sapatos lindos – os mesmos de sempre –, que penteado lindo – um coque desleixado. Antes ela te examina com olhos de lince dos pés à cabeça, franzindo o nariz. Em seguida solta essas frases que se evaporam com seu hálito. Para ela, “lindo” é algo que já está dado como certo, não importa a quem é dirigido, o que demonstra uma fabulosa falta de consciência do outro, um egoísmo extremo, uma violência flagrante. Você a vê com seu sorriso amável e suas bochechas rosadinhas e diz para você mesma: seria capaz de pegar uma arma e estourar os miolos de alguém.
A irritação faz você chorar. Você já nem precisa de qualquer mediação.
Enquanto você olha os técnicos fixando o aparelho na parede, aquela bola sobe e se instala na sua garganta, e as lágrimas inundam seus olhos. Você tenta se acalmar imaginando as horas que passará diante desse monstro, anestesiada, desligada de seus pensamentos negativos cíclicos. Vê a si mesma como um feto entubado tragando grandes volumes de um líquido hipnagógico.
Sai em busca de um café. Nessa manhã a garçonete será grosseira. Aliás, como sempre. Mas você não vai ficar analisando as razões dela – nem o piercing na sobrancelha, nem seus lábios azuis, nem a tatuagem no pulso, nem sua córnea amarelada. Você vai pegar o gesto dela, vai amassá-lo entre as mãos formando uma perfeita bola de rancor e atirá-lo contra seu peito como uma granada. Depois que explodir, você vai olhar os restos: “Ou você muda de emprego ou muda de atitude.” Será a primeira de uma sequência de frases ocas, mas ferinas, que você criará ao longo dos anos, como uma lenta artrite cerebral superior à sua vontade que irá tomando conta de zonas do pensamento ligadas à linguagem. Um dia você se verá transformada numa máquina de disparar sentenças intempestivas. “Mula que outro amansa sempre fica com algum vício”, dizia sua avó Cata, com amargura, enquanto limpava o feijão. A empregada bufava, apontava o indicador para a orelha e fazia círculos no ar. Você vai no mesmo caminho.
Você sempre morou em cidades que achava feias. Até descobrir que todas as cidades são irremediavelmente feias, salvo algumas em que você não moraria. Sair de casa é mergulhar num lamaçal. Você lamenta que os minúsculos sapatos do seu filho tenham que pisar em merda de cachorro. Lamenta que seu filho aponte o dedo para coisas horríveis – o luminoso de uma publicidade de sopa, um rolo compressor enferrujado, uma casa ostentação com um carro ostentação estacionado na porta, uma árvore podada no formato do cogumelo de Hiroshima – e que ele faça barulhinhos de satisfação, indicando que adora tudo isso. Você suspeita que, se ficar olhando essas coisas por mais tempo que o tolerável, talvez descubra a beleza delas. Prefere ignorá-las. Se refugiar no grotesco e se lamentar. Saber que a feiura não tem solução faz bem a você; que qualquer tentativa de atenuá-la é inútil; que, se alguém se oferecesse a apagá-la em duas palhetadas, a primeira coisa que desapareceria seriam os espelhos.
Você gosta dos espelhos, eles são o olhar complacente e mentiroso.
Muitas vezes, as coisas que te agradam e que te desagradam são as mesmas. É por isso que, em questão de horas, você pode entender que o belo se torne feio e o bom, mau. Seu entusiasmo míngua e se esconde sob as sombras do que resta do dia, como um animal de estimação cansado, até desaparecer com o último raio de luz. Você pode achar que ele está dormindo, mas na verdade morre um pouco a cada dia.
Um dia você caiu do alto de uma goiabeira. Dizem que foram 6 metros. Na sua lembrança, os galhos amorteceram o impacto, mas deixaram arranhões no corpo que nunca desapareceram por completo. Durante a queda você ria tomada de uma euforia adrenalínica. O homem que dizia ser seu tio te olhava de baixo, com as mãos na cabeça. Você teve a impressão de que ele também ria, mas não poderia garantir. A pancada foi na base do crânio e te deixou inconsciente por 27 segundos. Alguém cronometrou. Quando você abriu os olhos, uma multidão de parentes olhava para você.
Foi como nascer.
Mais tarde, alguém diria que a pancada expulsou sua alma anterior e deu lugar a uma nova. Ou velha, mas diferente. Daí em diante, você seria acusada disso mesmo: de ter uma alma velha, viciada, manhosa, imprópria de uma menina. Seus irmãos e suas irmãs a acusariam de observá-los com demasiada atenção. Hoje você não consegue reproduzir um único traço deles: todos os seus parentes se misturam numa espessa colagem que a exclui. A pancada, você pensa, não apenas expulsou sua alma antiga, mas apagou sua linhagem. Você ficou sozinha, pairando entre desconhecidos, tentando atribuir a eles papéis que lhe serviam à sua necessidade de superar logo o estágio incômodo da infância, onde sua alma nova/velha ficou atolada.
Numa outra vez, você pegou na mão do homem que dizia ser seu pai e lhe pediu que a levasse ao parque. Ele estava ocupado e pediu ao homem que dizia ser seu tio que te levasse. O homem que dizia ser seu tio cuspiu na mão, limpou na calça e depois pegou na sua mão. Caminhou ao seu lado, cantarolando. Não a levou ao parque, mas a um boteco onde havia outros homens: “Não vai apresentar a namorada?”, riram. Ele escondeu você num banheiro fedorento: “Volto já, não sai daí.” Agachada num canto imundo, você viu entrar e sair homens que urinavam e cuspiam gosmas verdes. O espelho da pia estava quebrado e seus rostos apareciam desfigurados.
Você ouviu um tiro e depois outro. Imaginou que tinham matado o homem que dizia ser seu tio por não querer pagar a cachaça. Depois, você o viu entrar no banheiro, tirar um lenço do bolso e vendar seus olhos. Ele a levou pela mão até a rua e depois até o parque: “Agora pode ir”, ele disse. “Aonde?” Ele encolheu os ombros e desviou o olhar.
Sua mãe te disse que você não era filha dela. Estava sentada na frente do espelho, fazendo touca no cabelo. Você olhava suas costas, seus braços levantados, seus dedos manobrando mechas crespas e grampos.
Era adotada?
Ela disse que não. Tinha te parido, como a todos os outros, mas você não era sua filha.
Era o quê, então?
Ela não sabia. Não tinha uma explicação.
Mas…
Algo havia crescido na sua barriga por obra e graça de alguma doença e depois de algum tempo tinha conseguido expelir sem comprometer nenhum órgão.
Um tumor?
Isso mesmo, ela disse. Virou-se e acariciou seu rosto.
Você sonhou que era um verme.
Você sonhou que paria um verme.
E isso acontecia muitas vezes.
A primeira vez que você fugiu pela janela, você torceu o pé. Deixou o sujeito se contorcendo na cama, com a mulher chutando as costelas dele. Você acabou de se vestir na rua, tinha esquecido o sutiã e pegou a camiseta errada. Estava com a dele: azul, larga, perfumada; no peito, o símbolo da anarquia. Seguiu mancando por uma avenida escura e se sentou na mureta de uma garagem onde havia uma banquinha de cachorro-quente. Fazia calor. Seu rosto estava úmido, o cabelo revolto, a respiração ofegante, os pés inchados, os peitos soltos. Pediu um cachorro-quente simples, com cebola. “E para beber?”, perguntou o garoto que atendia. “Coca-Cola.”
Desde então, no seu guarda-roupa há sempre peças alheias. Roupas que você rouba e guarda, assim, sem mais nem menos. Que você quase nunca usa – nem no corpo, nem na vida. Ninguém sabe que roupas são essas, nem de quem são: é um gesto egoísta que você gosta de entesourar.
“Pequenos segredos de cada um”, você disse a uma amiga por telefone, “a individualidade é feita dessas coisas.”
A roupa parece importante para o mundo.
Volta e meia, duas mulheres da igreja tocam a campainha e pedem roupa para os pobres. Da última vez, uma delas vestia uma blusa sua com estampa de zebra. Você quis lhe dizer alguma coisa – “que linda blusa”, alguma coisa. Não disse. Doou mais roupa. Alguns brinquedos.
Na caridade há certo luxo com que você se identifica.
Não se deve ao fato de sempre ter tido – você não teve sempre –, mas à confiança de se saber hoje do lado dos que dão e não dos que recebem. Você pode se deleitar na elegância de ter dado, sem se envergonhar. Pode olhar em silêncio sua blusa velha no corpo de outra e sentir que está contribuindo – de um modo absolutamente desprovido de bondade – para que as posses circulem de mão em mão. Uma vez você conheceu pessoas assim, tão seguras de seu próprio bem-estar que não temiam se desfazer de nada. Você as invejava por isso.
O casal de velhos que mora do outro lado da rua foi assaltado. Dois rapazes bem-vestidos tocaram a campainha às três da tarde e, quando a senhora abriu a porta, lhe acertaram uma pancada na cabeça. Depois na do marido. Enquanto o casal conta como aconteceu, você olha condoída os hematomas. Ele levou pontos na maçã do rosto e tem um olho quase fechado. E o peito enfaixado, por causa do “traumatismo” de duas costelas. Ela, os olhos injetados de sangue, mas arregalados, e estuda a reação dos interlocutores: os vizinhos do quarteirão que foram convocados para uma reunião na calçada dos velhos, por meio de um bilhetinho que enfiaram embaixo das portas. Nessa mesma calçada em que a velha cumprimenta você todas as manhãs, enquanto rega as azaleias; ela tem um tique que consiste em engolir o início das frases: “… dia, vizinha.” Um dos presentes propõe criar um grupo no WhatsApp para ficar alerta a situações de perigo. Todos concordam, animados, e logo se instaura um clima quase festivo, como se isso já resolvesse o problema. Os velhos estão visivelmente fragilizados, desprotegidos. Cheiram a remédio vencido. Seu marido pega na sua mão e a aperta. Você o olha surpresa: já nem se lembrava de que ele estava ali.
Num velório você descobre que passa boa parte do tempo procurando semelhanças entre pessoas e animais. Quanto maior a semelhança, mais você perde o interesse no que a pessoa diz. Um homem com focinho conta que sua relação com o morto tem a ver com uma transação imobiliária. Logo suas palavras viram latidos, e depois uivos, e depois ganidos de filhotinho abandonado, e por fim um ruído constante e homogêneo. Até que o sujeito vira as costas e se afasta com gesto contrariado.
Na primeira vez que você foi a uma reunião de acadêmicos aprendeu que nunca se deve dizer “Não sei”. Deve-se dizer “Não estou bem certo”: frase que não acrescenta informação alguma, mas deixa aberta a possibilidade de conhecimento.
Na primeira vez que deixou uma cidade do Primeiro Mundo para voltar à sua, uma dilaceração quase física tomou conta de você. Começou a sentir saudade de coisas que nunca teve, mas com as quais sempre sonhou. Sentiu tristeza pela perda do que poderia ter sido.
Na primeira vez que você se apaixonou por um homem, ficou fascinada com a falta de questionamento dele. Sua presunção de certeza. Ele dizia, não perguntava: Vamos jantar, Vamos ao cinema, Vamos viajar no fim de semana. E ligava para o agente de viagem e comprava duas passagens de avião. Como se para realizar certas ações não fosse preciso: 1) envolver o outro; 2) dinheiro.
Na última vez que você se apaixonou por um homem, o que a fascinou foi justamente o contrário.
The existence, the physical universe is basically playful.
Você voltou a baixar o aplicativo de celular e logo chega um vídeo com frases de Alan Watts insistindo que a vida é gozo sem destino, puro prazer lúdico. Como os aniversários de crianças, que concentram em duas horas um ideal de felicidade que inclui tudo: música, brincadeiras, doces, bolo, brindes, bexigas, confete, aplausos, sanduichinhos.
A criança que chora parece que não entendeu essa verdade. É um caso para estudo.
Você pensa tudo isso num aniversário de criança, quando o animador inicia sua performance com uma frase esquisita: “Desta vez, me deixem ser feliz!” As crianças olham para ele sem piscar. As mães sorriem hesitantes. Aparece o mágico com sua assistente de shortinho e as palmas explodem. Você vai procurar um café. Perto da mesa, escuta uma das mães dizendo para outras: “Qual a vantagem de mostrar partes de um corpo que o planeta inteiro aceita como bom?”
Isso consegue despertar seu interesse. Você espera um desenvolvimento, está doida para perguntar. Mas na hora em que vai se aproximando do pequeno simpósio, a pomba do mágico foge da cartola e sobrevoa a salinha causando grande comoção. Mães se arremessam para proteger os filhos. Você não vê o seu. Aparece o Homem-Aranha, e você escuta o choro de seu filho: ele tem pavor do Homem-Aranha.
O menino chora.
Você o abraça e o aperta contra o peito, suas lágrimas molham seu pescoço e seu choro fura seus tímpanos. Você o ajeita de modo a colar a orelha dele em alguma parte do seu corpo onde se escutem bem as suas pulsações. Você leu que os batimentos cardíacos da mãe aplacam a angústia do filho.
O menino continua chorando.
Você canta para ele. Você o embala. Diz que o Homem-Aranha já foi para a casa dele, e o menino repete, entre lágrimas: “O Homem-Aranha foi para a casa dele.” No carro você o senta na cadeirinha e ele logo se distrai com uma cabeça de Shrek que estava abandonada no banco.
Surge, como um bálsamo, o silêncio.
Você liga o som. A mesma música que toda noite você coloca para ele – e você mesma – dormir. Um piano relaxante que apareceu na primeira busca que você lançou no Spotify: “Música para dormir.” Dá a partida. No sinal, ouve o menino dizer entre risadas: “O Homem-Aranha foi para a casa dele.” Você o olha pelo espelho retrovisor com indignação: Era isso? Era só isso?
Às vezes você tenta desligar o senso crítico. Não sabe que isso vai acabar acontecendo sem necessidade de forçar nada. Um belo dia você simplesmente vai abrir os olhos e perceber que já aconteceu. Vai olhar para os outros pensando coisas horríveis, mas vai dizer algo diferente. E nem vai doer. Seus verdadeiros pensamentos ficarão presos numa bolha, numa área deteriorada do cérebro que você só frequentará no final, quando suas palavras forem interpretadas como surtos de demência senil que os mais entendidos chamarão, condescendentes, de lesão do lobo frontal.
Volta a lembrança da vó Cata limpando feijão.
Você olha o menino olhando pela janela do carro, seus olhos são dois faróis incandescentes.
Você também tem pavor do Homem-Aranha.
Seu marido recebe vocês na sala às escuras e com a televisão ligada. Ele comprou filmes, pediu pizza. Você está cansada, e o menino já comeu um monte de porcaria, mas você não quer ser desmancha-prazeres. Todos se acomodam no sofá, ele distribui os pratos e copinhos de cowboy que sobraram de um aniversário passado. Aperta o play. O menino escala suas pernas e as esmaga, impedindo que você alcance a pizza. Seu marido pega um pedaço e o aproxima da sua boca.
Você dá uma mordida. Depois ele. Depois o filho dos dois.
Um cordão de carne viva os enlaça e os confunde num vérnix caseoso.
Nessas horas, às vezes, você é tomada pela culpa.
Você se arrepende de ter ligado para o escritório do seu marido para dizer que não queria sair sozinha com o menino, porque perto dos trilhos do trem você viu um homem muito suspeito. “Suspeito do quê?”, ele perguntou, depois do silêncio habitual. Você desligou na cara dele.
Nessas horas, às vezes você pensa que talvez exagere ao expressar sua permanente contrariedade, sua insatisfação, sua irritação: é tão mais fácil. Você não sabe, por outro lado, o que a impede de expressar de um modo racional e articulado por que escolheu esse lugar no sofá. Uma amiga te fez essa pergunta há alguns anos. “Preciso que você me explique o porquê”, ela disse olhando com a fome de quem anseia que o outro confirme suas próprias ideias sobre o bem. Você respondeu com presunção: “É uma experiência intransferível.”
Você dá mais uma mordida na pizza. Depois seu marido. Depois o menino.
Funções acopladas.
Você imagina como os três seriam vistos de frente, iluminados por essa luz branca e brilhante que flui do castelo da Disney. Há algo nessa foto que a agrada. Algo que a convida a relaxar os músculos e se deixar dominar pela tela, que agora ficou escura como uma grande janela aberta para a noite. Há algo que a amansa. Você sabe o que é, sabe exatamente o que é, mas nunca vai sair da sua boca.
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