"Eu sou Francisco Real, que chamam de Curraleiro. Consenti a esses infelizes que me alçassem a mão porque estou procurando um homem. Dizem que nestas paragens há um, que chamam de Pregador, que tem fama de riscar a faca e de durão. Quero que ele me ensine o que é um homem de coragem."
Homem da esquina rosada
Rosendo Juárez, o Pegador, sabia dar as caras com muita panca no conventilho; homens e cachorros o respeitavam e as chinas também; a sorte o mimava, como quem diz. Nós o copiávamos até no jeito de cuspir
Jorge Luis Borges | Edição 67, Abril 2012
Logo pra mim, virem falar do finado Francisco Real. Eu o conheci, e isso que estes não eram os bairros dele, pois costumava andar pelo Norte, por aquelas bandas da lagoa de Guadalupe e da Bateria. Não tratei com ele mais de três vezes, e essas na mesma noite, mas é noite que não vou esquecer, pois nela veio a Lujanera, por querer, dormir no meu rancho, e Rosendo Juárez deixou, pra nunca mais voltar, o Arroio. Aos senhores, claro que falta a devida experiência pra reconhecer esse nome, mas Rosendo Juárez, o Pegador, era dos que cantavam mais grosso lá na Villa Santa Rita. Moço tido e havido por bamba com a faca, era um dos homens de dom Nicolás Paredes, que era um dos homens de Morel. Sabia dar as caras com muita panca no conventilho, num murzelo com enfeites de prata; homens e cachorros o respeitavam e as chinas também; ninguém ignorava que devia duas mortes; usava um chapelão alto, de aba fininha, sobre a cabeleira gordurosa; a sorte o mimava, como quem diz. Nós, os moços da Villa, o copiávamos até no jeito de cuspir. Uma noite, porém, ilustrou pra nós a verdadeira natureza de Rosendo.
Parece conto, mas a história daquela noite mais do que esquisita começou com um carro de praça insolente com rodas encarnadas, cheio até o tope de homens, que ia aos solavancos por aqueles becos de barro duro, entre os fornos de tijolos e os terrenos baldios, e dois de preto, dá-lhe violão e zoada, e o da boleia que dava uma guasca na cachorrada solta que atravessava na frente do tordilho, e um de poncho que ia quieto no meio; aquele era o Curraleiro de tanto nome, e o homem ia pra brigar e matar. A noite era uma bênção de tão fresca; dois deles iam sobre a capota arriada, como se a solidão fosse um corso. Aquele foi o primeiro sucedido de tantos que houve, mas só depois é que ficamos sabendo. Nós, os rapazes, estávamos desde cedo no salão da Julia, que era um galpão de chapas de zinco, entre o caminho de Gauna e o Maldonado. Era um local que o senhor podia divulgar de longe, pela roda de luz que mandava o lampião sem-vergonha, e pelo barulho também. A Julia, embora de cor humilde, era das mais conscientes e sérias, de modo que não faltava quem tocasse música nem boa beberagem e parceiras resistentes pro baile. Mas a Lujanera, que era a mulher de Rosendo, dava em todas com sobra. Morreu, senhor, e digo que há anos em que nem penso nela, mas era preciso vê-la em seus dias, com aqueles olhos. Vê-la não dava sono.
A cachaça, a milonga, o mulherio, um palavrão condescendente da boca de Rosendo, uma palmada dele num montão de gente e que eu procurava sentir como amizade: a questão é que eu estava feliz da vida. Pra mim tocou uma parceira das melhores pra acompanhar, que ia como que adivinhando minha intenção. O tango fazia o que queria com a gente e nos arrastava e nos perdia e voltava a nos ordenar e juntar. Naquela diversão estavam os homens, a mesma coisa que num sonho, quando de repente a música me pareceu aumentar, e era que já se embolava com ela a dos guitarristas do carro, cada vez mais perto. Depois, a brisa que a trouxe enveredou pra outro rumo, e voltei a prestar atenção no meu corpo e no da parceira e nas conversações do baile. Muito depois, chamaram à porta com autoridade, uma pancada e uma voz. Em seguida, um silêncio geral, uma peitada poderosa na porta e o homem estava dentro. O homem era parecido com a voz.
Pra nós não era ainda Francisco Real, mas um sujeito alto, fornido, trajado inteiramente de preto, com uma chalina[1] da cor de um baio jogada no ombro. A cara, lembro que era de índio, angulosa.
Ao se abrir, a folha da porta bateu em mim. Por pura afobação, caí em cima dele e lhe encaixei a esquerda na facha, enquanto que com a direita sacava a faca afiada que carregava na cava do colete, junto do sovaco esquerdo. Pouco ia durar meu atropelo. O homem, pra se firmar, esticou os braços e me pôs de lado, como quem se livra de um estorvo. Deixou-me encolhido atrás, ainda com a mão debaixo do paletó, na arma inútil. Seguiu como se não fosse nada, adiante. Seguiu sempre mais alto que qualquer um dos que ia apartando, sempre como sem ver. Os primeiros – só uma italianada curiosa – abriram-se como leque, apressados. A coisa não durou. No amontoado seguinte já estava o Inglês à sua espera, e, antes de sentir no ombro a mão do forasteiro, colocou-a pra dormir com uma pranchada que tinha pronta. Foi verem aquela pranchada, e já foram todos na fumaça dele. O estabelecimento tinha mais que muitas varas de fundo, e ele foi arrastado feito um cristo, quase de ponta a ponta, a empurrões, assovios e cuspidas. Primeiro lhe deram socos, depois, ao verem que nem aparava os golpes, simples bofetões com a mão aberta ou com a franja inofensiva das chalinas, como rindo dele. Também, como que o reservando pro Rosendo, que não tinha se mexido da parede do fundo, onde estava encostado, calado. Fumava com pressa seu cigarro, como se já entendesse o que vimos claro depois. O Curraleiro foi empurrado até ele, firme e ensanguentado, com aquela rajada de gentuça chiando atrás. Vaiado, maltratado, cuspido, só abriu a boca quando se encarou com Rosendo. Então olhou pra ele, limpou o rosto com o antebraço e disse estas coisas:
– Eu sou Francisco Real, um homem do Norte. Sou Francisco Real, que chamam de Curraleiro. Consenti a esses infelizes que me alçassem a mão porque o que estou procurando é um homem. Andam por aí uns loroteiros dizendo que nestas paragens há um, que chamam de Pegador, que tem fama de riscar a faca e de durão. Quero encontrá-lo pra que me ensine, a mim que sou nicles, o que é um homem de coragem de se ver.
Disse essas coisas e não tirou os olhos de cima dele. Agora lhe brilhava uma baita faca na mão direita, que na certa ele tinha trazido na manga. Ao redor os que empurraram foram se abrindo, e todos olhávamos para os dois, num silêncio grande. Até a fuça do mulato cego que tocava violino acatava esse rumo.
Nisso, ouço que se deslocavam atrás, e vejo junto da moldura da porta seis ou sete homens, que seriam a turma do Curraleiro. O mais velho, um homem com ar do interior, curtido, de bigode grisalho, adiantou-se para ficar como encadeado por tanto mulherio e tanta luz, e descobriu-se com respeito. Os outros vigiavam, prontos para entrar cortando se o jogo não fosse limpo.
Enquanto isso, o que acontecia com Rosendo, que não expulsava a pontapés aquele garganta? Continuava calado, sem erguer os olhos. O cigarro não sei se cuspiu ou deixou cair da cara. Afinal pôde dar com algumas palavras, mas tão devagar que para os da outra ponta do salão não chegou até nós o que disse. Francisco Real tornou a desafiá-lo, e ele a se negar. Então, o mais jovem dos estranhos assoviou. A Lujanera olhou pra ele com ódio, abriu passagem com a cabeleira nas costas, entre os do carro e as chinas, e foi no rumo do seu homem, meteu-lhe a mão no peito, sacou sua faca desembainhada e deu-a a ele com estas palavras:
– Rosendo, acho que você está precisando dela.
Na altura do teto havia uma espécie de janela comprida que dava pro riacho. Rosendo recebeu a faca com as duas mãos e botou os olhos nela como se não a reconhecesse. De repente se inclinou pra trás, e a faca voou direto e foi se perder lá fora, no Maldonado. Senti como um frio.
– Não te meto a faca só de nojo de te carnear — disse o outro, e levantou a mão pra castigá-lo. Então a Lujanera se agarrou nele, passou-lhe os braços pelo pescoço e, olhando pra ele com aqueles olhos, disse-lhe com raiva:
– Deixa esse aí que nos fez acreditar que era um homem.
Francisco Real ficou atrapalhado por um momento, mas em seguida a abraçou como pra sempre, gritando aos músicos que metessem tango e milonga e aos outros da diversão, que era pra gente dançar. A milonga correu solta como um incêndio de ponta a ponta. Real dançava com muita gravidade, mas sem deixar folga entre eles, como se já a possuísse. Chegaram à porta e gritou:
– Abram cancha, senhores, que eu já vou com ela dormida!
Disse, e saíram de rosto colado, como no marulhar do tango, como se o tango os deitasse a perder.
Devo ter ficado vermelho de vergonha. Dei algumas voltinhas com alguma mulher e logo a larguei. Inventei que era pelo calor e pelo aperto e fui beirando a parede até sair. Linda noite, pra quem? Na esquina do beco estava o carro de praça, com o par de violões tesos no assento, feito cristãos. Comecei a ficar chateado com tamanha falta de cuidado, como se nem pra catar bugigangas a gente prestasse. Fiquei com raiva de sentir que a gente era coisíssima nenhuma. Um piparote no cravo atrás de minha orelha e joguei-o num charquinho; fiquei um tempo olhando pra ele, como pra não pensar em mais nada. Eu teria gostado de estar no dia seguinte, queria cair fora daquela noite. Nisso, me deram uma cotovelada que foi quase um alívio. Era Rosendo, que se mandava do bairro, sozinho.
– Você sempre servindo de estorvo, seu traste – me resmungou ao passar, não sei se pra se desafogar ou se distraído. Foi pro lado mais escuro, o do Maldonado; não tornei a vê-lo.
Fiquei olhando aquelas coisas da vida inteira – céu até dizer chega, o riacho porfiando solitário lá embaixo, um cavalo dormido, o beco de terra, os tijolos – e pensei que eu era apenas outro matinho daquelas beiras, criado entre flores do brejo e ossadas. Quem ia sair daquele lixo a não ser nós, gritalhões mas fracos pro castigo, boca e tropelia e nada mais? Senti depois que não, que, quanto mais aporrinhado o bairro, maior a obrigação de ser bravo. Lixo? A milonga – dá-lhe doideira, dá-lhe bochinche nas casas –, e trazia odor a madressilvas o vento. Linda até o cerne a noite. Havia estrelas de dar tontura só de olhar, umas sobre as outras. Eu fazia força pra sentir que pra mim o assunto nada representava, mas a covardia de Rosendo e a coragem insuportável do forasteiro não queriam me largar. Até uma mulher para aquela noite, o homem alto tinha podido arrumar. Para aquela e para muitas, pensei, e talvez pra todas, porque a Lujanera era coisa séria. Sabe Deus pra que lado foram. Muito longe não haviam de estar. Até mesmo, talvez, já andassem aprontando os dois, em qualquer valeta.
Quando consegui voltar, o baileco seguia em frente como se nada tivesse acontecido.
Bancando um menininho, enfiei-me no meio de um monte de gente e vi que alguns dos nossos tinham se mandado e que os do Norte tangueavam junto com os demais. Cotoveladas e encontrões não havia, mas receio e decência. A música parecia sonolenta, as mulheres que tangueavam com os do Norte não diziam esta boca é minha.
Eu esperava alguma coisa, mas não o que aconteceu.
Ouvimos lá fora uma mulher que chorava e depois a voz que já conhecíamos, mas serena, quase serena demais, como se já não fosse de alguém, dizendo-lhe:
– Entre, minha filha – e logo outro choro. Em seguida a voz como se começasse a se desesperar.
– Abra, estou lhe dizendo, abra, bastarda perdida, abra, cadela! – Nisso a porta trêmula se abriu e entrou a Lujanera, sozinha. Entrou mandada, como se alguém a viesse tocando.
– Alguma alma está mandando nela – disse o Inglês.
– Um morto, amigo – disse o Curraleiro. A cara era tal qual de bêbado. Entrou e, no claro que todos lhe abrimos, deu alguns passos cambaleantes – alto, sem ver – e foi ao chão de uma vez, como um poste. Um dos que vieram com ele o deitou de costas e acomodou o ponchinho feito seu travesseiro. Esses auxílios o deixaram sujo de sangue. Vimos então que tinha um ferimento forte no peito; o sangue encharcava-o e enegrecia um lenço vermelho vivo que antes eu não havia notado, porque a chalina o tapava. Como primeiro socorro, uma das mulheres trouxe cachaça e uns trapos queimados. O homem não estava pra explicações. A Lujanera olhava pra ele que nem perdida, com os braços pendentes. Todos estavam se perguntando com a cara, e ela conseguiu falar. Disse que, assim que saiu com o Curraleiro, foram a um campinho, e que nisso pinta um desconhecido que o chama desesperado pra briga e lhe enfia uma punhalada; ela jura que não sabe quem haveria de ser e que não era Rosendo. Quem ia acreditar nela?
O homem a nossos pés estava morrendo. Pensei que não havia tremido o pulso de quem o acertou. O homem, porém, era duro. Quando bateu a hora, a Julia tinha estado cevando uns mates e o mate deu a volta completa e voltou à minha mão, antes que ele falecesse. “Tapem meu rosto”, disse devagar, quando não pôde mais. Só lhe restava o orgulho e não ia consentir que ficassem xeretando as caretas de sua agonia. Alguém pôs em cima dele um chapelão preto que era de copa por demais de alta. Morreu debaixo do chapelão, sem queixa. Quando o peito deitado parou de subir e descer, animaram-se a descobri-lo. Tinha aquele ar cansado dos defuntos; era um dos homens de mais coragem que houve naquele então, da Bateria até o Sul; quando o soube morto e sem fala, perdi o ódio dele.
– Para morrer basta estar vivo – disse uma do grupo, e outra, pensativa, também:
– Tanta soberba o homem, e agora só serve para juntar moscas.
Então os do Norte foram dizendo entre si uma coisa devagar, e dois ao mesmo tempo ficaram repetindo forte depois:
– A mulher o matou.
Um lhe gritou na cara se era ela, e todos a cercaram. Eu me esqueci que era preciso ter tino e me meti entre eles que nem a luz. Afobado, quase apelo pra faca. Senti que muitos me olhavam, pra não dizer todos. Disse quase com malícia:
– Prestem atenção nas mãos dessa mulher. Que pulso ou coração vai ter pra cravar uma punhalada?
Acrescentei, meio sem vontade, a bravata:
– Quem ia sonhar que o finado, que, conforme tem gente dizendo, era durão no bairro dele, fosse abotoar de forma tão bruta e num lugar tão completamente morto como este, onde nada acontece, se não vem alguém de fora para distrair a gente e fica pra cuspida depois?
O couro não ficou pedindo pancada a ninguém.
Nisso, ia crescendo na solidão um barulho de cavaleiros. Era a polícia. Uns mais, outros menos, todos tinham alguma razão pra não querer nada com ela, tanto que decidiram que o melhor era transladar o corpo do morto ao riacho. Os senhores devem estar lembrados daquela janela comprida por onde passou brilhando o punhal. Por lá passou depois o homem de preto. Foi erguido por muitos e de tudo quanto tinha em centavo e miudezas foi aligeirado por aquelas mãos e alguém lhe torou um dedo pra afanar um anel. Aproveitadores, senhor, que assim animavam um pobre defunto indefeso, depois que o acertou outro mais homem. Um empurrão e as águas correntosas e sofridas deram fim nele. Pra não boiar, não sei se lhe arrancaram as vísceras, porque preferi não olhar. O de bigode cinza não tirava os olhos de mim. A Lujanera aproveitou o aperto pra sair.
Quando os da lei vieram dar sua campana, o baile estava meio animado. O cego do violino sabia tirar umas habaneras das que não se ouvem mais. Lá fora estava querendo clarear. Uns postes de algarobo sobre um morro pareciam soltos, porque os fios fininhos não se deixavam avistar tão cedo.
Voltei quieto pro meu rancho, que ficava a umas três quadras. Ardia na janela uma luzinha, que se apagou logo em seguida. Deveras que me apressei em chegar, quando me dei conta. Então, Borges, tornei a puxar a faca curta e afiada que eu sabia carregar aqui, no colete, junto do sovaco esquerdo, e dei outra revisada nela devagar; estava como nova, inocente, e não restava nem um pingo de sangue. J
[1]Espécie de echarpe de lã que os homens usam sobre os ombros.
Tradução de Davi Arrigucci Jr.
Leia Mais