ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Horticultor três estrelas
O homem que escuta os legumes
Isabel Junqueira | Edição 102, Março 2015
No segundo semestre de 2014, em seu restaurante no hotel Le Balzac, em Paris, Pierre Gagnaire – chef com a cotação máxima de três estrelas no severo guia Michelin – serviu por algumas semanas um menu a 250 euros por pessoa. No cabeçalho do cardápio, o lírico título Les Légumes de Monsieur Yamashita precedia a sequência de pratos. Eram nabos, cenouras, tomates e outros vegetais cultivados por Asafumi Yamashita, em Chapet, vilarejo a 30 quilômetros da capital francesa.
Os excepcionais legumes do horticultor, exaltados na imprensa, também frequentam o seleto grupo dos restaurantes Tour d’Argent, L’Astrance, Le Cinq, Itinéraires e Ze Kitchen Galerie. A despeito de tamanha reverência e exclusividade, os clientes estão cientes de que é monsieur Yamashita quem manda. “Eu decido o que vender, para quem eu quiser, na quantidade que estimo necessária e pelo preço que me der na telha”, resumiu o japonês esbelto e bronzeado, de 61 anos. Um quilo de seu espinafre sai a 20 euros (cerca de 64 reais); a mesma quantidade de tomates-cereja, a 25 euros. O melão, única fruta de seu repertório, chega a quase três dígitos (a produção anual é de escassas dez unidades).
Os fregueses nunca sabem exatamente o que vão receber às terças e sextas-feiras, dias em que Yamashita faz as entregas pessoalmente. Seus preços e seu modus operandi não parecem incomodar a clientela. “Sou tão encantado pelo que ele me traz toda semana que o valor da fatura me parece irrisório. São legumes de alta-costura!”, disse na tevê francesa Eric Briffard, que até pouco tempo comandava os fogões do restaurante do hotel Georges V.
Não é fácil passar pelo crivo de Yamashita. Ele compara a experiência de vender seus vegetais à de levar uma filha ao altar. Eric Frechon, cozinheiro do Epicure, estabelecimento premiadíssimo do hotel Bristol, o procurou para propor parceria, mas foi reprovado no teste. “Ele só queria substituir as verduras de outro horticultor pelas minhas. Isso não me interessa. Gosto de chefs que valorizam meus legumes”, explicou. E ai daqueles que nunca estão presentes nos dias de entrega, quando Yamashita faz um relatório completo da colheita semanal. Yannick Alléno, uma das estrelas da gastronomia francesa, cometeu esse pecado várias vezes. Foi devidamente cortado da lista dos clientes.
Como se dá ao luxo de escolher os compradores, Yamashita tem escapado dos, com o perdão da palavra, pepinos que vêm desgraçando os colegas de profissão. Nos últimos meses, houve protestos que culminaram em toneladas de legumes e verduras sendo despejadas em diferentes prefeituras francesas. Um grupo chegou a incendiar um centro do fisco na Bretanha. Reclamavam dos altos impostos, do aumento da margem de lucro dos supermercados, da competição feroz com países vizinhos e do embargo da Rússia a produtos alimentícios da União Europeia. Muitos chegaram a abandonar seus cultivos. Produtores de cereais – que já ocupavam metade das terras aráveis do Hexágono – aproveitaram para comprar os terrenos a preço de banana.
Recentemente, Yamashita foi convidado a debater o problema numa pequena rádio de Yvelines, nos arredores de Paris. Foi uma decepção para a apresentadora Aurélie Chupin, que comparava a tensão entre cerealistas e horticultores ao embate entre Golias e Davi. “Eu nunca tive nenhum problema com cerealistas”, disse o japonês. Ele também declarou que tampouco conseguia entender a razão da fúria de sua classe. “Jamais precisei pedir ajuda ao governo. Sou um horticultor feliz.”
No quintal de sua casa, um espaço de 2 500 metros quadrados, Asafumi Yamashita mistura verduras, ervas e flores, dispostas num mosaico – “Assim fica mais alegre”. Dispensando a tecnologia hoje empregada pela maioria dos horticultores, faz tudo sozinho com as próprias mãos, ajoelhado na terra. Só se afasta da horta por mais de 24 horas durante o ápice do inverno, ocasião em que viaja ao Japão para comprar suas sementes.
É assim desde 1995, quando entrou no métier, aos 43 anos. Na época, depois de ter se estabelecido na França como cultivador de bonsais, Yamashita foi obrigado a recomeçar do zero: na calada de várias noites, ladrões surrupiaram uma centena de seus preciosos vasos, encerrando o negócio de venda e aluguel das miniaturas decorativas.
Ele começou a plantar legumes de seu país natal a pedido do chef de um dos restaurantes japoneses para os quais fornecia os bonsais. Não tinha nenhum savoir-faire, e as condições do terreno onde vive em Chapet tampouco colaboravam para a empreitada. Argilosa, cheia de pedregulhos e em pleno declive, a propriedade fica na parte mais baixa da cidade, ou seja, acaba por acumular a água das chuvas. Só depois de dez anos, ao longo dos quais forneceu unicamente a estabelecimentos nipônicos, sentiu confiança para oferecer um buquê de nabos a Christian Le Squer – na época chef do Ledoyen – e de cara arrebatar seu primeiro cliente três estrelas. Foi a primeira e a última vez que tomou a iniciativa de procurar as grandes cozinhas de Paris. Os pedidos choveram.
O segredo de Yamashita para obter legumes perfeitos e suculentos pode parecer enigmático. “Um pepino que nasce torto sofreu estresse durante a brotação”, por exemplo, é um de seus diagnósticos. Como um coach ou um psicólogo, ele procura entender o que cada um dos vegetais precisa para atingir todo seu potencial – é por isso que, para ele, quantidade é antônimo de qualidade. O horticultor vê com constrangimento a mania de alguns colegas de adubar demasiadamente a terra. “Como se isso fosse enriquecê-la! Não adianta encher uma pessoa de presentes sem entender realmente quem ela é”, comparou.
Ele revira os olhinhos quando lhe perguntam se conversa com suas cenouras e tomates. O editor do livro que vai lançar neste ano sugeriu como título da obra O Homem que Conversava com os Legumes, mas Yamashita o interrompeu antes de terminar a frase. “Tem que ser O Homem que Escutava os Legumes.”