Faxina em um reator depois do acidente de Chernobil, em 1986 (os fachos esbranquiçados na base da foto decorrem da radiação que emana de baixo): a curiosidade humana abomina o vácuo CREDITO: IGOR KOSTIN (APN-RIA NOVOSTY)_1986_CORTESIA DE RUSS PRESS PHOTO
A ignorância na política
E a política da ignorância
Peter Burke | Edição 168, Setembro 2020
Tradução de Sergio Flaksman
Nos últimos anos, uma das tendências mais surpreendentes das ciências sociais pode ser descrita como “a descoberta da ignorância”. À primeira vista, a escolha desse objeto de estudo parece algo bizarra, pois há mais de trinta anos nos dizem que vivemos numa “sociedade do conhecimento”. Está cada vez mais claro, entretanto, que hoje vivemos também numa “sociedade da ignorância”, em que de fato sabemos pouco sobre as doenças, o meio ambiente e o funcionamento dos negócios e da política.
Essa desconfortável tomada de consciência nos coloca um desafio. Como estudar a falta de conhecimento? Uma das respostas tem sido examinar as práticas correntes de ocultação de informações ou circulação de fake news (que antes chamávamos simplesmente de “mentiras”), descrevendo essas atividades como exemplos da “construção”, “produção” ou “fabricação” da ignorância, quando, por exemplo, encobrem calamidades ou defendem que determinada droga não tem efeitos colaterais perigosos. Seria mais preciso falar de “manutenção” do que de “produção” da ignorância, mas a linguagem dramática usada atualmente tem a vantagem de chamar a atenção do público.
Outra resposta a esse novo desafio seria estudar a “história social” da ignorância, perguntando quem ignora o quê em dado lugar e em dada época, quais são as causas dessa ignorância e, acima de tudo, que consequências ela produz. Na verdade, talvez seja melhor falar de “ignorâncias”, assim no plural, uma vez que são tão variadas quanto os muitos saberes que existiram ou ainda existem. A humanidade nunca soube tantas coisas como hoje, mas cada indivíduo tem conhecimento apenas de uma parte ínfima desse saber. Quanto mais se tem a saber, mais se pode ignorar.
Apresento a seguir alguns exemplos da ignorância política – inclusive o que se pode chamar de “política da ignorância”, ou seja, a prática política de empresas e governos que visa manter o público na ignorância de alguma coisa que seria de seu interesse saber. Começo pela ignorância dos que governam e, em seguida, discuto sobre a ignorância dos governados.
Qualquer governante ou, em termos mais gerais, qualquer pessoa encarregada da tomada de decisões, de presidentes de país a presidentes de empresas, precisa decidir em condições de incerteza, pois não tem como antever o futuro. Padecem de uma ignorância inevitável, mas podem reduzir a incerteza procurando se informar sobre os problemas a serem enfrentados. A pandemia pôs à prova, em escala mundial, a capacidade de governantes e empresários para tomarem decisões baseadas em boa informação, em vez de atuarem de forma ignorante. E não há dúvida de que muitos foram reprovados no teste. Eles padecem da chamada “ignorância intencional”, em outras palavras, da opção por não querer saber.
Autoridades que tomam decisões importantes sem conhecimento suficiente não são um fenômeno novo. Na Europa renascentista, alguns reis que não escolheram exercer o poder, mas simplesmente o herdaram, não tinham muito interesse em acumular informações sobre seus reinos. Preferiam ir à caça. De fato, quando diplomatas estrangeiros queriam discutir alguma questão importante com o monarca, muitas vezes precisavam procurá-lo na floresta. Pode-se dizer que os governantes tomavam as decisões políticas nos intervalos entre as caçadas.
Mesmo os governantes mais conscienciosos tinham dificuldades para obter as informações de que precisavam. E concentrar a atenção numa única fonte de informação lhes deixava pouco tempo para dar conta de outras. O imperador Carlos V, do Sacro Império Romano Germânico, passou a maior parte da vida viajando pelos seus diversos domínios europeus, porque acreditava que deveria ver com os próprios olhos como viviam seus súditos. A desvantagem desse estilo de vida é que deixava pouco tempo ao imperador para ler os documentos de Estado, entre eles as cartas que recebia de seus domínios no Novo Mundo relatando como estavam as coisas por lá. Seu filho, o rei Filipe II da Espanha, um dos monarcas mais conscienciosos de sua época, optou pela solução oposta. Passava longas horas à mesa de trabalho, lendo e comentando os milhares de documentos que recebia. A desvantagem dessa atenção para com os detalhes era que o rei ficava limitado ao Escorial, isolado da sociedade que governava.
Uma história popular que circula em vários lugares do mundo revela a consciência do problema do isolamento. Ela fala de um governante que resolveu se disfarçar e caminhar à noite pelas ruas da capital, pois era o único modo de saber de fato o que as pessoas comuns pensavam dele. De que outra maneira poderia inteirar-se disso? Inútil interrogar os ministros, pois o mais provável era que só respondessem o que o monarca queria ouvir. Podia recorrer a informantes que ouvissem às escondidas as conversas em tavernas e outros locais públicos, relatando depois no palácio o que alegassem ter escutado – mas as suas informações não seriam confiáveis, pois eram pessoas pagas para produzi-las regularmente, tivessem ou não descoberto alguma conversa sediciosa. De qualquer modo, nem mesmo espionar e escutar as conversas das ruas proporcionaria ao monarca a oportunidade de saber tudo que desejava e precisava saber. Um problema especialmente agudo para Filipe II, tendo em vista a vastidão de seus domínios, era o ritmo lento das comunicações. Ele sabia ainda menos do que ocorria no México ou no Peru do que na Espanha, pois os relatórios de seus vice-reis nas Américas podiam levar até um ano para chegar às suas mãos. O problema da comunicação a longa distância só foi solucionado no século XIX, graças à invenção do telégrafo e do telefone.
Saltemos rapidamente para o século XXI. Ainda encontramos governantes – mais presidentes e primeiros-ministros do que reis – pouco interessados em tomar conhecimento dos problemas enfrentados por seu povo, ou mesmo pelo resto do mundo. São ignorantes e, o que é pior, ignoram a própria ignorância. Estão tão isolados no Salão Oval ou no Palácio do Planalto quanto Filipe II no Escorial, e são supervisionados de perto nas ocasiões em que encontram “o povo”. Seja como for, alguns deles preferem ignorar conhecimentos que não lhes convêm. É verdade que há muito mais gente trabalhando para os governos do que no passado, e que o governo é informado por um imenso volume de estatísticas, para não falar da vigilância exercida sobre muitas atividades de seus cidadãos.
Entretanto, como acontece tantas vezes, a solução de um problema anterior acabou produzindo um problema novo, que, no caso, é a “ignorância organizacional”. Na intenção de coletar tantas informações sobre os cidadãos, os governos se transformaram em entidades imensas. Como ocorre em outras grandes organizações, as falhas de comunicação, seja entre departamentos especializados, seja entre níveis diferentes da hierarquia administrativa, fazem com que os ocupantes dos postos mais altos mantenham-se na ignorância de boa parte do que deveriam saber para bem governar – exatamente como ocorria no século XVI, embora por motivos diferentes.
Na verdade, quanto mais informação um governo reúne, mais difícil se torna para qualquer indivíduo se inteirar de mais que uma fração ínfima do todo. Muito já foi escrito sobre o que se perde na tradução entre uma língua e outra. De maneira similar, numa organização grande e complexa, muitas informações cruciais para quem toma as decisões podem se perder durante a “transmissão” e nunca chegar ao topo. Até mesmo os diferentes organismos especializados dos governos ficaram grandes demais, pelo menos nas maiores nações, e têm dificuldade para enfrentar esse problema. Por exemplo: avisos de que poderia haver um atentado às Torres Gêmeas foram captados pelos serviços secretos meses antes do ataque propriamente dito, em 11 de setembro, mas não foram transmitidos às pessoas certas, pois submergiram no imenso volume de informações de maior ou menor importância, que, como de costume, nunca parava de chegar. Como declarou Condoleezza Rice, então conselheira de Segurança Nacional dos Estados Unidos, depois da tragédia, havia “falatório demais” no sistema.
Um dos grandes problemas dos governos no século XXI é o excesso de informação. Quando ela chega, ou não há tempo suficiente para ser analisada antes da tomada de decisão ou logo é suplantada por uma nova leva de dados. Esmiuçar os big data pode ser uma tarefa fadada ao fracasso, pelo menos no campo da política. Os cientistas, por outro lado, podem geralmente se dar ao luxo de ter mais tempo para esperar os resultados.
Governantes autoritários ainda enfrentam os mesmos problemas dos monarcas do Antigo Regime, sobretudo a relutância dos subordinados em relatar ao chefe de Estado aquilo que acham que ele não quer saber. É difícil imaginar alguém falando verdades incômodas a Hitler ou Stálin. Já os regimes democráticos enfrentam problemas de outra ordem. Um presidente ou primeiro-ministro geralmente fica poucos anos no poder e, com isso, tem pouco tempo para adquirir o conhecimento necessário para fazer um bom governo. Decisões em áreas como a educação, a saúde, a indústria ou a política externa requerem uma quantidade considerável de conhecimento especializado, mas os ministros à frente desses aparatos do Estado raras vezes se prepararam suficientemente para a função. De todo modo, também eles só ficam nos cargos por pouco tempo, deixando seus ministérios justamente quando começam (ou mesmo antes de começar) a adquirir o conhecimento necessário para o exercício eficaz de suas funções. Embora os funcionários mais graduados de cada ministério, às vezes com décadas de experiência, geralmente detenham as informações necessárias, alguns ministros parecem achar que não precisam do conselho de ninguém.
Como apontam estudos recentes, algum grau de ignorância tem certo valor “estratégico”, podendo apresentar desvantagens e vantagens. Em termos mais precisos, muitas vezes a ignorância de uns pode ser vantajosa para outros. A ignorância dos governantes, ou do governo em geral, proporciona a seus súditos um grau de liberdade maior que o previsto em lei, confirmando a famosa distinção entre país legal e país real. Inversamente, muitos regimes só sobrevivem porque os cidadãos ignoram o que acontece dentro do governo – quem está pagando ou recebendo propinas, por exemplo, ou quem está passando informações secretas para certas empresas ou para governos de outras nações. O processo de ocultar as informações do público é muitas vezes descrito como “ignorância estratégica”, ou como a “política da ignorância”.
O que se pode dizer da ignorância da política por parte dos cidadãos comuns, dos governados? Mais uma vez, seria proveitoso estabelecer a distinção entre dois tipos de regime, o autoritário e o democrático, embora muitos deles se situem no espaço intermediário entre esses dois extremos. Há muito tempo se diz que a ignorância popular sustenta o despotismo. No século XVII, eruditos do Ocidente citavam a história do Império Otomano em apoio a esse argumento. Trezentos anos depois, o jornalista polonês Ryszard Kapuściński, tratando do Irã durante o governo do xá Reza Pahlevi, escreveu que “a existência de uma ditadura depende da ignorância da massa; por isso os ditadores se esforçam tanto para cultivar essa ignorância”. Esse é o motivo pelo qual os regimes autoritários proíbem as menções a certos fatos e censuram livros, jornais e outros meios de comunicação, ao mesmo tempo que apresentam a versão oficial sobre outros eventos, “produzindo” assim ignorância. Na União Soviética era proibido mencionar a existência dos gulags e calamidades eram encobertas, como ocorreu (em vão) com o acidente nuclear de Chernobil, em 1986. Ironicamente, o encobrimento de Chernobil ocorreu na época em que Mikhail Gorbachev promovia sua política oficial de “transparência” (glasnost), anunciada poucos meses antes do desastre.
O problema dos governos que tentam manter seus cidadãos na ignorância de questões importantes é que a curiosidade, como a natureza, “abomina o vácuo”. Assim, o vácuo é muitas vezes preenchido por boatos e teorias da conspiração. A ignorância sobre as causas de pandemias, por exemplo, muitas vezes levou – e ainda leva – a atribuir a culpa pela propagação da doença a determinado grupo, sejam os judeus, em 1348, seja o governo chinês, em 2020. Sabe-se que boatos não inspiram muita confiança, mas na União Soviética dos tempos de Stálin as pessoas comuns confiavam mais nos rumores que nas páginas do Pravda, o jornal oficial do regime. Para combater a difusão de notícias não oficiais, as autoridades baniram os catálogos de telefone e reduziram o número de cafés, imaginando que qualquer conversa entre os cidadãos trataria inevitavelmente dos temas que o governo preferia que ignorassem.
Nos regimes autoritários, os governos se preocupam com o fato de as pessoas saberem demais. Nos regimes democráticos, o que os preocupa é justamente o contrário, que os cidadãos saibam de menos. Claro que, como os autores de várias denúncias já demonstraram, os governos democráticos também tentam impedir que seus cidadãos tomem conhecimento de algumas de suas operações, mas a preocupação com a “ignorância dos eleitores” está presente em toda a história da democracia.
Vejamos o exemplo da Grã-Bretanha. Na primeira metade do século XIX, só uma pequena minoria da população tinha direito a voto, e mesmo o famoso pensador John Stuart Mill, filiado ao Partido Liberal, disse ter “medo da ignorância” daquilo que ele definia como “a massa”. Quando o direito a voto foi ampliado em 1867 (embora os trabalhadores do campo e as mulheres continuassem barrados nas eleições), um importante político do mesmo partido manifestou seu medo de que os novos eleitores viessem a constituir “uma classe muito ignorante”. Walter Bagehot, autor do clássico ensaio A Constituição Inglesa, lançado no mesmo ano de 1867, concordava, afirmando que a supremacia das “classes inferiores […] no estado em que hoje se encontram equivale à supremacia da ignorância sobre a instrução, e da quantidade de pessoas sobre o [seu grau de] conhecimento”. Outro político da época observou, em tom irônico, que com a ampliação do direito ao voto “devíamos educar nossos patrões”. Não há de ser coincidência que, apenas três anos mais tarde, em 1870, tenha sido aprovado um decreto tornando compulsória a frequência à escola.
Hoje, o problema da “ignorância do eleitor” voltou à baila, especialmente nos Estados Unidos. Pesquisas sobre conhecimento político identificaram uma faixa de pessoas (descritas, em inglês, como know nothings, ou as “sabem nada”) que responderam errado ou não responderam a dois terços ou mais das perguntas da enquete. Esse grupo abarca mais ou menos um terço do eleitorado. Falta aos “sabem nada” aquilo que é às vezes definido como a “competência para a cidadania”. E houve quem defendesse que lhes fosse negado o direito ao voto, já que todo cidadão tem o direito de não ser submetido ao risco de ser prejudicado em decorrência de decisões tomadas por gente incompetente, ou de maneira incompetente.
O que fazer? Uma solução tradicional para o problema, particularmente na América do Sul, foi transformar a condição de alfabetizado em qualificação para votar, presumindo-se que os eleitores precisavam ser capazes de ler os jornais para se informar sobre a política (ainda que o verdadeiro motivo fosse impedir a participação dos pobres nas eleições). Hoje, os testes de cidadania adotados para imigrantes em vários países cobram um mínimo de conhecimento político. Por exemplo, o teste britânico, intitulado A Vida no Reino Unido, pede que os candidatos à cidadania local – além de responderem a uma série de questões sobre esportes e entretenimento – digam quantos são os membros que integram o Parlamento. Infelizmente, essas possíveis “soluções” para a questão da ignorância dos eleitores criam mais problemas do que os resolvem. Será que o mero conhecimento factual serve para atestar a competência de um eleitor? O que dizer da aceitação acrítica das distorções da imprensa? E das fake news? E da atração irracional que alguns eleitores sentem por indivíduos carismáticos autonomeados salvadores da pátria? De toda maneira, se só for admitido o voto de cidadãos de comprovada competência política, quem representaria os interesses do restante da população?
Para a ignorância do eleitorado, o único remédio que me ocorre – pois falar de uma “cura” já seria um excesso de otimismo – está na educação. Discussões regulares sobre a vida política poderiam inspirar os alunos a buscar informações e, mais importante ainda, estimulá-los a desenvolver um pensamento crítico sobre os problemas que o mundo enfrenta hoje. As fake news não são um problema novo, mas hoje chegam a muito mais gente e com grande rapidez, aumentando assim a chamada “fabricação” da ignorância. Na situação atual, torna-se cada vez mais necessário ensinar à nova geração de cidadãos e eleitores como avaliar a credibilidade das mensagens que recebem, seja da imprensa escrita ou da televisão, seja das redes sociais. Eles precisam sempre perguntar-se quem lhes envia essas mensagens e com qual motivação. Transformar em parte essencial do currículo escolar o exercício da suspeita sistemática (ou, mais exatamente, do discernimento) ajudaria a fortalecer a democracia neste momento em que ela se encontra ameaçada em tantas partes do mundo.
O artigo é um trecho de seu próximo livro, Uma História Social da
Ignorância
Leia Mais