A encantadora índia carajá da fotografia traz à mente os caminhos abertos pela pintura de Leonardo da Vinci, em que figura e fundo, cultura e natureza, se confundem FOTO: ALICE BRILL_1948_ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES
A índia e o avião
A herança de Leonardo da Vinci numa imagem de Alice Brill
Rodrigo Naves | Edição 110, Novembro 2015
Quanto a mim, foi amor à primeira vista: sobre uma folha de papel fotográfico, a imagem de uma jovem indígena carajá com o filho no colo, tendo atrás de si um avião, que ela toca de leve com a mão direita e parte do ombro.[1]
Há algumas décadas, mal se diferenciariam da fotografia a pessoa ou o objeto retratado. Com o fim da inocência (a consciência da mediação do aparelho fotográfico), deixou de existir a possibilidade desse amor fulminante como um raio, como talvez ainda hoje seja possível diante da foto da pessoa amada.
Não há como reconquistar o paraíso dos amores plenos e unívocos. Já comemos o fruto da árvore da ciência do bem e do mal. Uma foto do canadense Jeff Wall – em que as imagens são construídas como uma cena teatral – nos proporciona um prazer reflexivo e experimentamos uma relativa liberdade e alegria com a problematização da espontaneidade da fotografia e sua retórica sobre a revelação do mundo. Como se aí não houvesse um recorte da realidade por um instrumento técnico, cuja imagem pode ser manuseada de muitas maneiras, da revelação aos cortes, das ampliações ao uso de lentes e filtros. Não sei quanto essa operação se sustentaria por si só, sem o pano de fundo das fotos “tradicionais”.
O encanto despertado pela jovem carajá da Ilha do Bananal evidentemente também depende das decisões da fotógrafa Alice Brill. No entanto, Brill intervém na realidade de maneira tão sutil que mal a notamos. Porque é da beleza não se fazer notar de maneira ostensiva, o que, no Renascimento, levou o escritor e homem público Baldassare Castiglione (1478–1529), no livro O Cortesão, a propor um neologismo (a palavra sprezzatura) para lidar com situações envolvendo elegância, graça, beleza e boas maneiras. Em português, uma possível tradução de sprezzatura seria “desenvoltura”.
Notem o refinamento que essa esfera da vida renascentista solicitava, para poder ser captada em sua sutileza:
E tendo pensado já várias vezes de onde nasça essa graça […] encontro uma regra universalíssima, a qual me parece valer mais que qualquer outra em relação a todas as coisas humanas que se digam ou que se façam — e que é fugir o mais que se possa, como um aspérrimo e perigoso obstáculo, da afetação; e, para usar talvez uma nova palavra, aplicar em tudo a sprezzatura, que esconda a arte e demonstre, naquilo que se diz e se faz, algo feito sem esforço e quase sem pensar. Disso penso que deriva em boa medida a graça: para que das coisas raras e bem-feitas não se saiba da dificuldade, e onde a facilidade gera grandíssima maravilha; e, pelo contrário, o esforço, e, como se diz, o puxar pelos cabelos, produz suma desgraça, e faz estimar pouco qualquer coisa, por maior que ela seja. Mas se pode dizer que a verdadeira arte não parece ser arte.
Essa formulação, feita na passagem dos séculos XV e XVI, de alguma maneira valeria para quase toda a fotografia moderna, o que diz muito dos descompassos entre as artes visuais veteranas e a fotografia, embora Alice Brill – forçada a deixar a Alemanha em 1934, aos 14 anos, devido à perseguição nazista aos judeus – visse na pintura sua inclinação natural. Brill também se dedicou ao estudo de artistas como Mário Zanini e o Grupo Santa Helena, além de ter publicado ensaios e artigos sobre as artes visuais.
Apenas em 1946, quando ganha uma bolsa de estudos para os Estados Unidos, Brill começa a se interessar pela fotografia, por acreditar que, com uma formação mais técnica, teria melhores chances de trabalho na volta ao Brasil. Bem ou mal, foi de fato com a fotografia que realizou uma obra relevante, com momentos de grande força estética. O pouco que conheço de sua pintura não tem a mesma grandeza.
Aparentemente, não poderia haver maior contraste que colocar, lado a lado, um objeto técnico tão sofisticado na época (o avião) e uma mulher em princípio alheia ao progresso civilizado. No entanto, o olhar ameno da fotógrafa – tanto nos registros feitos profissionalmente para famílias abastadas quanto nos trabalhos mais autônomos, mesmo aqueles realizados no manicômio do Juquery – sempre se deterá nas situações mais líricas da vida, por vezes raiando o simples pitoresco.
E, assim, o contraste entre a aeronave e uma mulher de hábitos mais próximos da natureza (a nudez, a maneira de segurar o filho no colo, a franja cortada rusticamente, as marcas de terra no corpo) é suavizado pela levíssima transição proporcionada pela gradação dos cinzas e pela visão que consegue encontrar elementos comuns entre seres tão diversos. A fuselagem meio cônica do avião (com sua geometria fragilizada pelos inúmeros arrebites, que se mostram quase decorativamente) e a circularidade da roda encontram na jovem e seu filho uma contrapartida que afasta e aproxima natureza e civilização. A sinuosidade dos corpos (no todo e nas partes) da jovem e da criança, o leve cordão que envolve a cintura da mãe, a pintura corporal do menino, a maciez dos cabelos – tudo converge para uma percepção que aproxime pessoas e objetos aparentemente opostos.
Numa passagem admirável sobre a Mona Lisa, o historiador de origem húngara Charles de Tolnay escreveu: “Da Gioconda emana apenas um enigma: a alma está presente, mas inacessível. Esta poesia do mistério é acentuada pela unidade íntima da figura com a paisagem do fundo.” O famoso sorriso do retrato de Lisa del Giocondo não teria, por assim dizer, uma dimensão psicológica, como correntemente se procura interpretá-lo. Seria a própria natureza que manifestaria, por intermédio desse regozijo, a satisfação perante a harmonia entre os humanos e a natureza propriamente dita, que apenas por um vício de linguagem chamaríamos “fundo”, já que a “figura” (a jovem Lisa) não se impõe a ela nem lhe serve de medida. Na Santana, também do Louvre, essa harmonia é ainda superior à da Mona Lisa. E muitos estudiosos sugerem que a mesma mulher serviu de modelo para as duas pinturas de Leonardo da Vinci.
De certa forma, algo semelhante se passa com a jovem carajá. A mão direita que toca o avião revela quase uma carícia feita na superfície de metal e tem praticamente a mesma doçura da mão que segura o filho. Ela olha para a câmera e sorri, mas é sua mão e uma parte de seu ombro (e não seu sorriso) que sugerem um armistício com a civilização. É desse pacto que fala o sorriso.
É impressionante como o encanto dessa moça carajá felizmente se afasta dos padrões contemporâneos de beleza, com sua ostentação de vigor e saúde. Afinal, para que servem as plásticas, as próteses, o bronzeamento artificial, os corpos malhados, se não para sugerir uma natureza com que se perdeu o contato?
A jovem carajá, ao contrário, não poderia estar fisicamente mais exposta, mas sua expressão facial mostra um recato que, longe de ser vergonha pela nudez diante da fotógrafa branca, é a alegria de se saber protegida do olhar alheio, por ser ela parte de um todo maior (a natureza) que a lente não pode capturar, e que a protege como um véu invisível.
Não é nesse jogo também que reside o encanto das artes visuais, ao menos até o final da década de 50? Exteriorizam-se totalmente, embora a plenitude de seu sentido dependa de uma dimensão de recato, pois seu caráter sensível as protege de uma entrega total à racionalidade. A “civilização” vem perdendo progressivamente esse aspecto pudico, o que a aproxima em muito da obscenidade. Quando Nietzsche escreveu “temos a arte para não morrer de verdade”, ele sabia do que estava falando.
No entanto, a fotografia feita por Alice Brill só se tornou possível no bojo de um processo de caráter oposto ao da defesa da natureza e do equilíbrio ecológico. Em 1948, Brill – que tinha grande interesse pelas questões preservacionistas – participa de uma viagem de um grupo de parlamentares com a finalidade de inspecionar as obras da Fundação Brasil Central. Essa instituição era a cabeça de ponte do projeto getulista de desbravamento de regiões do Brasil Central, iniciado em 1939 e que ficou conhecido como Marcha para o Oeste. Nas palavras do então ditador do país,
a civilização brasileira, mercê dos fatores geográficos, estendeu-se no sentido da longitude, ocupando o vasto litoral, onde se localizaram os centros principais de atividade, riqueza e vida.
Mais do que uma simples imagem, é uma realidade urgente e necessária galgar a montanha, transpor os planaltos e expandir-nos no sentido das latitudes. Retomando a trilha dos pioneiros que plantaram no coração do Continente, em vigorosa e épica arrancada, os marcos das fronteiras territoriais, precisamos de novo suprimir obstáculos, encurtar distâncias, abrir caminhos e estender fronteiras econômicas, consolidando, definitivamente, os alicerces da Nação. O verdadeiro sentido de brasilidade é a Marcha para o Oeste. No século XVIII, de lá jorrou o caudal de ouro que transbordou na Europa e fez da América o continente das cobiças e tentativas aventurosas. E lá teremos de ir buscar: dos vales férteis e vastos, o produto das culturas variadas e fartas; das entranhas da terra, o metal, com que forjar os instrumentos da nossa defesa e do nosso progresso industrial.[2]
Não tenho conhecimento suficiente da história da devastação da natureza brasileira. Certamente ela não começa em 1938. A Marcha para o Oeste, porém, se constitui numa consciente política de Estado, diferentemente das muitas iniciativas movidas pela necessidade e pela cobiça. Aumentou-se a área cultivável do país, mas a que custo? Era esse o caminho adequado? Onde, aí sim, a razão poderia desempenhar um papel importante, sobressai o triunfalismo nacionalista típico das ditaduras.
Alice Brill se comporta com discrição, tino e um bocado de ironia diante do cenário protocolar armado para a visita dos deputados. Afinal, era uma mulher que havia escapado de ser morta por Hitler. Em outras fotos da mostra, deputados posam com indígenas como caçadores que põem o pé sobre animais abatidos, expõem as maravilhas da civilização como os conquistadores faziam com espelhos e outras quinquilharias. O ponto alto da festa é a foto do então deputado Café Filho, futuro presidente fugaz do país, que, em plena aldeia, de terno de linho branco, aponta um revólver para um alvo qualquer, por puro exibicionismo, qual um patético Caramuru moderno.
Bernard Berenson (1865–1959), um dos maiores, e também mais controversos, conhecedores da nova arte italiana, lituano naturalizado norte-americano, escreveu em um de seus livros mais divulgados, Os Pintores Italianos do Renascimento: “A tarefa do artista do Renascimento era revelar, a uma geração que acreditava no poder do homem para subjugar e possuir o mundo, os tipos físicos mais aptos à tarefa.”
Em nossos dias, essa afirmação soa quase grotesca. Não acredito que seja possível dizer em sã consciência que pintores, escultores e arquitetos renascentistas tenham realizado ao pé da letra isso que Berenson viu em suas obras. Mas, com maior ou menor intensidade, é possível vislumbrar traços dessa afirmação em obras de Giotto, na arquitetura de Brunelleschi, nas primeiras esculturas de Donatello e em parte da pintura de Masaccio. Isso para não falar em Paolo Uccello e muito da pintura de Michelangelo.
Quando Lionello Venturi (1885–1961), um dos grandes historiadores da arte da Itália e principal responsável pela formação de Giulio Carlo Argan, escreve “Básico para o estilo de Leonardo era seu sfumato, aquela fusão entre forma e cor-luz que tornou possível banhar a imagem numa atmosfera ‘vaporosa’ e dar corpo a uma concepção de mundo na qual o homem não era, como no século XV, um protagonista, mas um elemento do universo, como a terra e o céu”, de uma maneira bem mais branda concorda com Berenson e acentua a diferença de Leonardo com várias questões básicas da forma renascentista.
E o que a encantadora carajá fotografada por Alice Brill (que evidentemente não teve a dimensão de Leonardo da Vinci) tem a ver com tudo isso? Modestamente, ela nos acena para os mesmos caminhos abertos pela Mona Lisa, Santana e quase toda a obra de Leonardo, e que, obtusamente, não quisemos seguir. E deu no que deu.
[1] A imagem integra a exposição Alice Brill, Impressões ao Rés do Chão, organizada por Giovanna Bragaglia, no Instituto Moreira Salles de São Paulo. O presidente do IMS, João Moreira Salles, é fundador da piauí.
[2] Saudação aos brasileiros, pronunciada no Palácio Guanabara e irradiada para todo o país, à meia-noite de 31 de dezembro de 1937.
Leia Mais