minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Lourdes Barreto, na noite em que foi homenageada no Theatro da Paz: “À noite, pulei a janela do quarto para comprar cerveja e, na volta, uma freirinha me encontrou e me beijou na boca!” CRÉDITO: MÁRIO NORONHA_2023

questões feministas

Lourdes Barreto, uma puta senhora

A história da prostituta paraibana de 80 anos que acaba de lançar sua autobiografia

Angélica Santa Cruz | Edição 199, Abril 2023

A+ A- A

A cena teve algo de operístico. Usando um vestido de festa preto com blusa de renda dourada, cílios postiços e batom de um vermelho dramático, Lourdes Barreto foi acomodada na cadeira central da frisa de número 13, a mais nobre do majestoso Theatro da Paz, em Belém. Era o começo da noite de 23 de fevereiro, uma quinta-feira pós-Carnaval, e ela passaria as horas seguintes às voltas com uma tempestade amazônica de homenagens. Sentada ali, como uma grande dama, ouviu elogios rasgados de expoentes da atual administração da cidade. “Falar em Lourdes é falar da resistência em todos os campos da vida!”, discursou o prefeito Edmilson Rodrigues (Psol). “Poder homenagear a Lourdes é o coroa­mento de um processo em que a universidade se veste de povo”, afirmou Gilmar Pereira da Silva, vice-reitor da Universidade Federal do Pará. “Hoje nós temos a honra de ver, minha querida, a história se dobrar a você!”, vaticinou a deputada estadual Lívia Duarte, também do Psol. “Esse teatro construído sob uma égide colonizadora para pessoas brancas da elite econômica recebe uma mulher que representa uma multidão: é uma aldeia inteira!”, disse Lívia Noronha, titular da Coordenadoria da Mulher de Belém, órgão da prefeitura.

A certa altura, a homenageada foi levada para o palco e, rodeada por antigas colegas de trabalho, falou brevemente sobre sua trajetória. Passistas e músicos da Piratas da Batucada – escola de samba que dias antes fizera um desfile de Carnaval dedicado a ela – entraram fazendo evoluções. Ao som do samba-enredo, filhos, netos, genros e noras da homenageada jogaram rosas de papel para a plateia, que aplaudia de pé. Duas de suas bisnetas, menininhas usando vestidos vermelhos, rodopiaram dançando pelo palco. A consagração terminaria no saguão do teatro, lotado por uma fila que se dobrava em caracol para receber um exemplar de seu livro recém-lançado, chamado Puta Autobiografia, da editora Paka-Tatu. Ao fim da maratona, tornozelos inchados e exaurida pelo frenesi, ela avisou: “Cansei. Agora vou tomar uma dose de cachaça de jambu e, depois, dormir.”

Lourdes Barreto tem 80 anos e estava ali por um motivo que declara com desabrida singeleza, sem uma gota de eufemismo, acanhamento ou higienização. Ela é uma puta.

Do momento em que pulou da cama naquela quinta-feira até o início da noite de homenagens, ela repetiu por oito vezes pequenas variações da frase: “Há cinquenta anos, eu fugia da polícia aqui na frente desse teatro e pensava: ‘Um dia entro aí sem ser expulsa. Hoje vou lançar meu livro nele!’” A primeira vez em que deu essa declaração, estava espetando um garfo em um prato de frutas, durante o café da manhã do hotel em que ficou hospedada, a menos de 200 metros do Theatro da Paz. A segunda vez, trinta minutos depois, aconteceu quando dava uma entrevista por telefone para uma rádio. A terceira, quando escapuliu para levar uma quentinha para Laura, uma antiga colega de trabalho que, idosa e com as costas curvadas, estava deitada entre caixas de papelão, na mesma calçada do hotel. “Ela era a mulher mais linda da zona. Tinha tantas pedras preciosas que o apelido dela era Joias Laura, por causa de uma joalheria famosa aqui da cidade. Tem família, mas acho que prefere ficar na rua”, especulou. “É”, confirmou Laura. Na quarta vez, quando parou diante de uma casa de apostas para convidar outro conhecido para o evento. A quinta, em resposta ao dono de uma banca de revista que a chamou para avisar que lera nos jornais as matérias de página inteira sobre o lançamento de seu livro. Na sexta vez, ao porteiro do hotel que, emocionado, explicou que não poderia ir ao lançamento, mas sua mãe e irmã estariam lá. A sétima vez, enquanto era maquiada, no camarim cheio de luzes do teatro. E, enfim, a oitava vez, já sentada na frisa, diante das autoridades que foram cumprimentá-la.

No dia seguinte, ainda que cansada da noite de glórias, colocou um vestido estampado com pequenas flores, penteou os cabelos curtos para trás e quis mostrar as entranhas do bairro da Campina, lugar onde batalhou durante seis décadas. “Percorrendo essas ruas estreitas, você vai perceber claramente: Belém antiga é uma mulher, morena e sensual, que se desenvolveu junto com a prostituição”, explicou.

 

O bairro da Campina é o segundo mais antigo da cidade e uma espécie de extensão do primeiro, a Cidade Velha, que desemboca no Rio Guamá. Tem ruelas ocupadas por sobrados com fachadas azulejadas que datam dos séculos XVIII, XIX e XX – um conjunto arquitetônico precioso que, embora tombado desde 2012, está caindo aos pedaços. Como nos centros antigos de quase todas as cidades bra­si­leiras, há ruas movimentadas, com bastante comércio, e outras desertas, com sequências de casarões em ruínas. À primeira vista, o efeito geral desses trechos que desmoronam é o de uma beleza melancólica. Percorrido ao lado de Lourdes Barreto, a paisagem vai tomando contornos de um realismo fantástico, recheado de personagens como a filha de uma prostituta chamada Suely que se ca­sou com um véu tão imenso que se arrastava pelas ruas, enquanto a noiva caminhava para a igreja. Ou como as cafetinas astuciosas que comandavam ambientes cheios de penumbra, onde clientes escolhiam as mulheres oferecendo-lhes rosas vermelhas. Nas memórias de Lourdes, os trechos decadentes são ruas com cheiro de laquê, ocupadas por boates com nomes como Bataclan, Long Beach, Miami Beach. As dezenas de cabarés perfilados eram, em sua maioria, comandadas com mão de ferro por mulheres firmes, as madames. Algumas delas, espalhafatosas e indecorosas.

Em 1921 a prostituição no bairro da Campina passou a ser tolerada dentro de um limite até hoje conhecido como Quadrilátero do Amor, como parte das práticas para controle de infecções sexual­mente transmissíveis que chegavam às zonas de meretrício pelo mundo afora. Os cabarés passaram a ser fiscalizados. Coube à Polícia Civil a missão de fichar todas as prostitutas da cidade. Elas receberam carteira de identificação e a ordem de se apresentar, uma vez por semana, para fazer exames na “seção das meretrizes” do recém-fundado Instituto de Profilaxia das Doenças Venéreas. Apesar das restrições, o ambiente era ponto de encontro de uma boemia formada por intelectuais, artistas, funcionários públicos, estrangeiros que desembarcavam no cais, trabalhadores braçais e homens influentes – todos unidos pela aversão a qualquer tipo de sobriedade. Era o finalzinho do período que ficaria conhecido na historiografia como a Belle Époque paraense. Irrigada pelo dinheiro que vinha sobretudo da economia da borracha, a cidade passou por uma repaginação urbana inspirada em cidades como Paris. Na marola dessa movimentação, vinham prostitutas do mundo inteiro. A quantidade de bordéis enfileirados nas ruas era tão grande que os donos das outras casas se viram obrigados a colar em suas fachadas pequenas placas com o aviso: “Família.” Algumas dessas sinalizações ainda estão por lá. Quando Lourdes Barreto chegou ao lugar, três décadas depois da implantação do Quadrilátero do Amor, a região ainda era muito mais alegre do que triste. Nas suas lembranças, o ambiente “era glamouroso, meio mágico”.

Dobrando as esquinas, ela apontou vertiginosamente para fachadas onde as madames tocavam negócios nichados e organizados: “Essa casa rosa era linda, de uma amiga minha. Marcou minha história, é onde passei muito tempo trabalhando. Essa aqui era de uma polonesa. Aquela ali era um cabaré famoso, só tinha mulheres nordestinas. Essa só tinha chinesas. O dono também era chinês, se matou. Aqui foi uma casa de uma cafetina cheia de mistérios, a Joana D’Arc. Esse outro prédio todinho era da Júlia Taperebá, uma puta poderosíssima, até hoje todo mundo que me entrevista pergunta como ela era. Ali era a confeitaria de um português, aonde as prostitutas chiques iam. Aqui era um cabaré, tinha um salão imenso. Naquela casa ali só iam clientes mulheres, deixadas na porta pelos maridos.” E prosseguiu: “Ali era uma casa de cômodos das mulheres que estavam um pouco baqueadas, não podiam trabalhar. Aqui era a casa das prostitutas mais velhas que criavam os filhos das mais novas. Essas casas bonitas que restaram, tudo era prostituição. Hoje muitas foram compradas pela Igreja Católica e derrubadas para virar estacionamentos.” E, observando uma moça que saiu às pressas de um sobrado e se preparava para entrar em um carro, informou: “Ainda tem cabarés por aqui. Nas ruas, parece que não tem ninguém. Mas as mulheres estão embutidas lá dentro, na batalha.”

Depois de fazer o tour, Lourdes Barreto decidiu almoçar peixe frito com açaí misturado com farinha e açúcar – seu prato preferido – em um conjunto de barracas às margens do Rio Guamá que funciona como uma extensão do famoso e colorido mercado Ver-o-Peso. Por três vezes, parou para tirar fotos com pessoas que a reconheceram. Em todas, fez a sua pose costumeira: mãos na cintura e um sorriso meio coquete, que lembra o gesto de uma criança. “Dona Lourdes! Não pude ir ao lançamento, mas deixe tirar uma foto pra mostrar pro pessoal lá em casa”, pediu um rapaz, com óculos espelhados. “Dona Lourdes, a senhora é uma inspiração. É um patrimônio dessa cidade!”, elogiou, antes de uma selfie, uma moça sorridente com tranças afro finalizadas com contas de madeira. Durante o almoço, ela mantinha um olho no prato e, por costume de seis décadas de ofício, outro na movimentação dos homens que passavam.

Filha de um gaúcho e de uma paraibana, Lourdes Barreto nasceu em Brejo de Areia, mas cresceu em Catolé do Rocha, ambos na Paraíba. A família criava gado para abastecer o entorno e vivia em boas condições. Ainda assim, ela não foi para a escola, como os irmãos. O pai costumava dizer que não seria alfabetizada para “não escrever para macho”. Fugiu de casa aos 15 anos, depois de sofrer abuso sexual de um tio. Começou a se prostituir em Fortaleza – até chegar a Belém, com passagem paga por uma ca­fetina. O primeiro programa, que já encontrou agendado, foi com o então governador. “Gostei da cidade imediatamente”, conta. Assim que chegou a Belém, foi para um bordel conhecido como Moza, onde só trabalhavam as mulheres completas (“as que faziam tudo: barba, chifre e bigode”, explica). Como ainda não tinha esse perfil profissional, rumou para outro lugar, um cabaré administrado por uma cafetina conhecida como Madame Bibi.

Ainda com 17 anos, começou a mostrar o temperamento que a faria percorrer o seu longo caminho até a noite no Thea­tro da Paz. “Desde o dia em que cheguei no cabaré, percebi que tinha que ser uma coisa diferente. A questão daquele regime ditador, como se você tivesse que ser submissa àquelas madames… Eu ficava pensando: ‘Gente, não é possível que só possa ser desse jeito…’ Eu já tinha uma consciên­cia que aprendi com a própria vivência com a minha família, a de que é preciso tomar uma atitude contra as coisas – como eu tomei a de fugir”, diz.

Todos os dias, às quatro da tarde, as madames faziam reuniões com as prostitutas em volta de mesas imensas, para exercer aquela dinâmica que as grandes corporações de hoje chamam de feedback. Ali, distribuíam instruções para o bom funcionamento do negócio. Ensinavam as jovens mulheres a ter postura (“até hoje só sento com as pernas cruzadas”, avisa), explicavam como fazer sexo oral (“as demonstrações eram sempre com uma banana”), mostravam as regras dos salões (“sempre sentadas em mesas separadas, porque o cliente poderia ficar encabulado para se aproximar”) e davam dicas de vestimentas (“usar uma cor diferente por dia e deixar as mais bonitas para os de mais movimento”).

Lourdes Barreto começou a aproveitar essas reuniões para reivindicar melhores condições de trabalho. Por exemplo: boa parte dos cabarés tinha salões luxuosos, cheios de cortinas vermelhas e mobílias bonitas – ambientes sempre à meia-luz. Mas os quartos onde as prostitutas recebiam os clientes e moravam, em troca do pagamento de uma diária, eram precários. Tinham banheiros muito simples, apenas com pia e torneira, o que as obrigava a tomar banho de cuia. Ela começou a pedir chuveiro. A geladeira era trancada com uma corrente, as mulheres não podiam pegar nem mesmo água ao longo do dia. Ela argumentou que isso era um absurdo, pois todas pagavam para estar ali. E, como atendiam os clientes até altas horas da madrugada, as prostitutas precisavam dormir até tarde, mas o café da manhã era servido até as 8 horas. Ela pediu que fosse estendido, pelo menos, até as dez da manhã. Madame Bibi ficou pistola com aquele aroma de revolta trabalhista. Mas resolveu manter a jovem em sua casa por razões mercadológicas. “Eu era um sucesso – e dava muito lucro! Aí me deixavam por lá.”

A jovem prostituta acabou morando na casa de Madame Bibi por cinco anos. Saiu quando ficou grávida, e a cafetina a levou para fazer seu segundo aborto. Quando viu o médico, idoso e cego de um olho, desistiu. Colérica, a madame ameaçou parar de servir sua comida. Mas uma colega de cabaré chamada Alice assumiu as suas contas até o nascimento da criança. Em troca, Alice pediu apenas que, se fosse menina, recebesse o nome de Suely, em homenagem à sua irmã gêmea que morreu ainda bebê. Nasceu uma menina, batizada Leila Suely Araújo Barreto – a primo­gênita que também se tornaria peça importante no movimento organizado das prostitutas paraenses.

A verve contestatória de Lourdes Barreto foi encontrando direção e método depois que ela passou a frequentar encontros organizados pela Pastoral da Mulher Marginalizada, umas das pastorais sociais da Igreja Católica. As reuniões eram feitas no Salão da Igreja do Rosário da Campina, em torno de bolos de cenoura e de jerimum, e eram tocadas por mulheres católicas interessadas em fazer trabalhos voluntários. Ela aproveitava suas tardes de folga para ir aos encontros – e começou a arregimentar companheiras de bordel. “As católicas me adoraram, porque enchi o lugar de putas – e foi começando ali uma organização”, diz.

À época estudante de teologia, católica até a medula, a professora Deise Veloso se integrou aos trabalhos da pastoral quando tinha 34 anos e quatro filhos pequenos. Hoje tem 81 anos, é viúva e mantém os cabelos impecavelmente penteados. “Um dia desses li o livro Cinquenta Tons de Cinza. Achei muito interessante, mas para mim não teve muita novidade, porque a Lourdes chegava nas reuniões da igreja contando todas aquelas fantasias dos clientes delas”, diz. “Ela também contava muitas histórias em que as prostitutas atuavam como psicólogas dos homens, ouvindo o que eles estavam angustiados para dizer e dando conselhos conjugais. E, aos poucos, a gente foi entendendo aquela realidade.”

As católicas tomaram conhecimento dos detalhes de um mundo paralelo. “Fomos vendo que não dá para falar só de Deus com as pessoas, com tantos problemas sociais para resolver”, explica Deise Veloso. As prostitutas também saíram diferentes dos encontros. Aqueles eram tempos em que a palavra sororidade não existia nos dicionários das boas práticas de sobrevivência feminina. Um dos principais problemas da região era a violência entre as próprias mulheres, que brigavam com giletes e navalhas por seus clientes – Lourdes Barreto tem até hoje uma cicatriz no braço, herança do dia em que tentou apartar uma dessas brigas. “Com o tempo e essas reuniões, foi todo mundo entendendo que não dava para ser assim, a gente precisava era se unir”, conta.

Na pastoral, ela aprendeu o básico da leitura e escrita, como assinar o próprio nome. Foi se familiarizando com a rotina da militância, aprendendo a importância de se organizar, vendo como pensar estratégias para resolver problemas. Descobriu que era, de certa forma, feminista. “Ela às vezes chegava com cheiro de bebida e com as mãos inchadas, por causa do uso de drogas, mas não faltava. Imprevisível, meiga, sempre teve uma capacidade de articulação impressionante. A liderança dela foi crescendo. Foi descobrindo seu papel, acompanhando o pessoal da Secretaria Municipal de Saúde para falar de prevenção no bairro. E, quando alguma prostituta era presa, na maioria das vezes injustamente, trazia isso pra gente e todo mundo se mobilizava”, diz Veloso.

Juntas, as duas alas – prostitutas e católicas – forçaram mudanças na própria igreja local. Durante anos, os padres se recusavam a batizar filhos de prostitutas. Depois de algumas conversas, o bispo destacou alguns padres para uma manhã de batismo coletivo na igreja da Santíssima Trindade, também no bairro da Campina. “As senhoras católicas pagaram o aluguel de um ônibus. Eu enchi de putas com crianças – inclusive meus filhos, eu já tinha dois – e paramos na praça na frente da igreja. Saiu tudo de lá batizado, foi muito bonito”, lembra Lourdes Barreto. Certo dia, em um dos encontros da pastoral em Belém deu-se uma cena surpreendente. “Dom Vicente Joaquim Zico, que era arcebispo do Pará e um homem muito piedoso, apareceu, olhou para Lourdes e pediu perdão pela maneira como a Igreja havia tratado as prostitutas ao longo dos anos. Foi lindo demais”, lembra Deise Veloso.

Na noite de homenagens no Theatro da Paz, Veloso estava lá, alinhada em um vestido de renda azul. Encontrou Lourdes Barreto no camarim, ficou com ela na frisa e depois foi para o palco relembrar momentos desses primórdios da organização das prostitutas de Belém. Na hora da distribuição dos livros, sentou-se a seu lado na mesa. Lá pelas tantas, comentou. “Olha, nunca imaginei que, aos 81 anos, eu veria isso aqui. Como a vida surpreende…”

 

A boemia do bairro da Campina sofreu um golpe de morte em 1º de abril de 1970, auge da ditadura militar. Nesse Dia da Mentira, o então governador Alacid Nunes colocou em prática uma operação desenhada com vários órgãos do Estado para fechar cabarés e bares que não estavam com licenças regulares – oficialmente, o objetivo era coibir a exploração de menores, a prática do crime de lenocínio e as desordens. Foi um fuzuê. Bem relacionadas, algumas madames contrataram bons advogados e entraram na Justiça. Alegaram que suas casas pagavam todos os impostos e licenças, portanto, funcionavam dentro da lei. Um punhado delas conseguiu mandados de segurança para reabrir. Outras, resignadas, fecharam as portas e foram embora. Algumas prostitutas foram enviadas para a periferia, outras deixaram a cidade. Mas elas eram muitas – na época, falava-se em 2,5 mil – e o governo simplesmente não sabia o que fazer com todas. Na prática, as que permaneceram nos bordéis entraram em uma espécie de cárcere privado, só podiam sair escoltadas por policiais que faziam vigilância na região. Lourdes Barreto ficou do lado de fora – e pela primeira vez teve que batalhar nas ruas.

Foi um período tétrico. Ela alugou uma casa em um bairro distante, contratou uma outra prostituta, mais velha, para cuidar de seus filhos e passou a trabalhar nas ruas do Centro. Sempre se esgueirando da polícia, procurava clientes nas praças e esquinas. Rondava o comércio da região, esperando ser chamada pelos gerentes minutos antes do fechamento das lojas, onde entrava correndo, por frestas deixadas nas portas de correr. Quando acontecia de ser pilhada fazendo trottoir, era levada para as delegacias e submetida a punições brutais. Uma delas: para não acumular mulheres no xadrez, os delegados ligavam uns para os outros e perguntavam: “Tem puta aí?” Juntavam pequenos grupos e as obrigavam a lavar corpos no Instituto Médico Legal. “Até hoje não suporto olhar para gente morta”, diz. Muitas prostitutas eram torturadas e estupradas nos ambientes policiais. Foi nesse período em que, perseguida pela cavalaria nas ruas, Lourdes Barreto sonhava em entrar no Theatro da Paz.

Mas foi também um período de organização. Com mulheres da pastoral, ela articulou mutirões para arrecadar comida e roupas para as prostitutas que ficaram sem trabalho. A mais despachada liderança das mulheres católicas, Dulce Accioli, secretária administrativa da Prelazia do Marajó e fundadora do Movimento de Promoção da Mulher (morta em 1995 e também lembrada na noite do teatro), cavava reuniões com o governador para denunciar as condições das mulheres – engrossando o coro de parlamentares e juristas que já apontavam irregularidades na operação que fechara a área de meretrício. Até que, em 1972, a zona foi reaberta. “Mas aí já tinha mudado tudo. Muitas casas não voltaram a funcionar, começou a especulação imobiliária e, como ainda era ditadura, continuaram fazendo horrores com as prostitutas. Acabaram com nossa zona”, conta. “Mas eu continuei trabalhando por aqui também, porque adorava o lugar. E, apesar de tudo, sempre gostei de ser puta.”

 

Em 1975, um grupo de cerca de cem prostitutas francesas ocupou a Igreja de Saint-Nizier, em Lyon. Meses antes, já vinham organizando pequenas ondas de protesto pelo fim da repressão policial. Quando começaram a fazer muito barulho, receberam multas fiscais, calculadas com base em estimativas do número de clientes que cada uma atendia. Sem ter como pagar as dívidas, algumas foram condenadas à prisão. No dia 2 de junho, o caldo entornou. Elas fizeram uma passeata e entraram na igreja, com autorização do pároco. As fotografias do episódio, em preto e branco, mostram as mulheres marchando de mãos dadas, uma delas usando casaco com estampa de oncinha e com o rosto à mostra, outras cobertas com faixas e óculos escuros. Os protestos, que também se espalharam por outras cidades, acabaram uma semana depois com a polícia entrando na igreja e prendendo as participantes. O episódio fez história. Rendeu livros, teses acadêmicas, documentários – e o 2 de junho passou a ser o Dia Internacional da Prostituta. Foi o começo de uma onda mundial de organização da categoria.

A prostituição, no entanto, é um tema desafiador, daqueles que resistem a qualquer simplificação. Cindiu até mesmo o movimento feminista, fraturado em duas bandas. De um lado, ficaram as abolicionistas, militantes convencidas de que a atividade serve aos interesses patriarcais porque transforma o corpo da mulher em objeto e as submete a várias formas de violência. De outro, puseram-se as que defendem que é uma profissão como outra qualquer, que integra o direito de escolha das mulheres. Essa segunda linha, chamada pró-sexo, refuta o lugar de vítima para as prostitutas. E ganhou um punhado de representantes, quase sempre atrevidas e irreverentes, pelo mundo afora.

Uma delas foi Margo St. James, uma norte-americana com história fenomenal. Artista que trabalhava como garçonete em São Francisco, em plena efervescência da contracultura, foi presa em 1962 por policiais que, diante do entra e sai de gente chapada na casa dela, concluíram que ela só poderia ser prostituta. Acabou condenada por um juiz que achou a mesma coisa. Indignada, ela matriculou-se na faculdade de direito para atuar no próprio caso. Mesmo sem terminar a graduação, conseguiu reverter a condenação, mas o estrago estava feito. Com essa pecha no currículo, não conseguiu mais encontrar emprego. Achou, então, uma solução: virou de fato prostituta.

Fundou um grupo chamado Coyote (sigla de Call Off Your Old Tired Ethics, ou Cancele Sua Velha Ética Ultrapassada) e se transformou em uma proeminente militante pela descriminalização da prostituição e pela quebra do estigma que ronda a atividade. Era brilhante, estilosa e altamente midiática. Durante anos, promoveu o Hooker’s Ball, um evento de arrecadação de fundos que atraía astros do cinema, políticos e, vejam só, policiais. Em um desses bailes, em 1978, St. James entrou montada em um elefante, diante de 20 mil convidados. O Coyote conseguiu derrubar a obrigatoriedade de que as prostitutas fizessem testes de infecções sexualmente transmissíveis e, em caso positivo, entrassem em quarentena – por considerar que a imposição dos exames, própria dos movimentos higienistas, é discriminatória. Também criou uma clínica de saúde com assistência gratuita para a categoria e ajudou a popularizar o termo “trabalho sexual”, criado no final dos anos 1970 por Carol Leigh, outra artista e militante igualmente irreverente. St. James morreu em janeiro de 2021, aos 83 anos, de Alzheimer. Um extenso obituário publicado no New York Times lembrou que ela, oradora carismática, costumava iniciar suas palestras dizendo: “É muito bom ver aqui tantos rostos familiares.”

St. James trabalhou em rede com outras grandes referências nessa militância pró-sexo. Com a feminista Gail Pheterson, organizou em 1985 o Primeiro Congresso Mundial de Prostitutas, em Amsterdã. Pheterson é autora da obra The Prostitution Prism (O prisma da prostituição), incontornável na literatura antivitimização das prostitutas. No livro, a ativista distribui voadoras. Uma delas: “O que acaba sendo considerado inaceitável não é o fato de se gratificar materialmente uma mulher em troca da satisfação do desejo de um homem, mas sim que essa gratificação seja pedida de forma explícita.”

A escritora e cineasta Virginie Despentes, uma francesa que também tem uma língua de navalha, passou três décadas distribuindo argumentos contundentes pró-sexo, boa parte deles condensados no livro Teoria King Kong, em que descreve sua decisão de ser prostituta durante dois anos – e narra as diversas formas de contentamento que vieram dela. Na obra, elenca frases de puro feminismo iconoclasta, como: “Quando se afirma que a prostituição é uma violência feita às mulheres, pretende-se que esqueçamos que a verdadeira violência imposta às mulheres é o casamento.” Ou: “As mulheres que fazem esse trabalho são imediatamente estigmatizadas, pertencem a uma categoria única: a das vítimas.[…]  Não tememos que elas não sobrevivam, muito pelo contrário: temos medo de que elas venham nos dizer que seu trabalho não é tão aterrorizante quanto parece. E não somente porque todo trabalho é degradante, difícil e exigente. Mas também porque muitos homens nunca são tão amáveis como quando estão com uma puta.”

Visual punk rock, durante anos companheira do filósofo transgênero Paul B. Preciado, Despentes está desde sempre entre as autoras mais vendidas da França. Nos últimos anos conseguiu também furar o cerco da crítica. Ganhou prêmios importantes, foi comparada a Honoré de Balzac e acabou convidada para integrar o júri do Goncourt, o prêmio literário mais prestigioso da França.

Sempre integrada às esquinas e aos canteiros de garimpos, Lourdes Barreto passou longe desse debate cabeçudo. Mas, de alguma maneira, talvez por gotículas do Zeitgeist que pingaram sobre a região amazônica, virou desde jovem uma legítima integrante da turma que se opõe à vitimização das prostitutas. Uma tendência que desenvolveu nos bares da vida, levou para as reuniões da pastoral – e aprimorou depois de conhecer a colega de trabalho Gabriela Leite.

 

Gabriela foi batizada como Otília, mas escolheu seu nome de batalha em homenagem ao livro Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado. Depois de cursar dois anos de ciências sociais na Universidade de São Paulo, desenvolveu uma crítica azeda ao mundo acadêmico (“eles precisam transar mais”, costumava dizer). Largou os estudos para batalhar nos hotéis da Boca do Lixo, no Centro de São Paulo e, depois, se estabeleceu no Rio de Janeiro, onde militou pela preservação da memória da Vila Mimosa, área histórica de meretrício. Morreu em 2013, aos 62 anos, de câncer. “O que mais sinto é ela não estar aqui agora”, disse Lourdes Barreto, a caminho de sua noite de homenagens.

As duas se conheceram na batalha, mas estreitaram laços nos encontros da Pastoral da Mulher Marginalizada que aconteciam em vários pontos do Brasil. Embora fosse leitora voraz, Gabriela Leite não se ligava nas grandes discussões feministas sobre sua área de atuação. Bocejou, por exemplo, quando apare­ceu o debate sobre a nomenclatura correta para as prostitutas – uma polêmica que perdura até hoje, porque alguns defendem que é melhor usar termos com conotação mais formal, como “profissional do sexo”. Achava que fazia parte de seu ativismo varrer o estigma e injetar poder e alegria em palavras como “puta” e “meretriz”. Mas, assim como Lourdes Barreto, também repudiava a ideia da puta caída, que precisava ser redimida.

O encontro das duas deu match. Mirrada, articulada, sempre falando com voz baixa e fininha, amante da poesia e talhada para a cultura marginal, Gabriela Leite era uma prostituta urbana do Sudeste, uma mulher do asfalto. Lourdes Barreto era exuberante e tinha um discurso mais popular. Era a prostituta dos garimpos do Norte – conheceu todos e foi uma das primeiras a chegar a Serra Pelada –, das bibocas de beira de estrada, dos presídios e, claro, das ruelas do Centro de Belém. Ambas causavam nos encontros nacionais da pastoral, realizados em vários pontos do país, muitas vezes em conventos. Depois das horas de debates sobre temas como Teologia da Libertação e necessidade de organização do proletariado, escapuliam à noite para beber, fumar maconha e, às vezes, fazer programa. Emburacavam no bar mais próximo e ficavam por ali, como se não houvesse um amanhã cheio de outras rodadas de debates. Lourdes Barreto explica: “Puta não tem costume de guardar dinheiro. Então a gente precisava sempre ganhar o do dia, para não ficar sem nada. Aonde eu ia, dava um jeito de fazer meus programas.”

As amigas reapareciam nas reuniões no dia seguinte sonolentas e com ressacas homéricas – o que não as impedia de contestar a percepção corrente entre os católicos, mesmo os progressistas, de que eram pessoas perdidas que precisavam se encontrar. Viravam as reuniões pelo avesso. Em uma delas, em Jundiaí, Gabriela Leite levantou a mão e perguntou: “Estamos falando só da sexualidade das prostitutas, mas não vamos discutir a sexualidade das freirinhas? E sexualidade não é só transar, são várias outras coisas.” Algumas religiosas fi­caram vermelhas, outras adoraram – e a indagação destampou cenas almodovarianas. “Uma vez, em Belo Horizonte, falamos de novo da sexualidade das religiosas. À noite, pulei a janela do meu quarto para comprar cerveja e, na volta, uma freirinha me encontrou em um lugar meio deserto e me beijou na boca!”, conta Lourdes Barreto. “Sexualidade humana é tudo! Ela influencia na forma da gente se expressar!”, exulta.

Em todos os encontros, elas passaram a lançar suas adagas. “Por que vocês estão nos chamando de meninas? Somos mulheres, somos putas.” Ou: “Escolhi essa profissão e gosto do que faço, não preciso ser resgatada.” Argumentavam que na pastoral persistia um viés moral que colocava a prostituta como paradigma da mulher explorada, quando, a rigor, todo trabalhador é um explorado. Garantiam que trabalhar na zona tinha seus perigos, riscos e dificuldades como em qualquer outro trabalho no Brasil, mas com a sedução extra da magia da noite. E esclareciam o que Lourdes Barreto repete até hoje: não faziam apologia da prostituição, só achavam que ela deveria ser vista como outra profissão qualquer.

Até que as duas, Lourdes e Gabriela, que sempre ficavam hospedadas no mesmo quarto, conversando por horas, tomaram uma decisão: “Vamos fazer o nosso próprio encontro, feito por prostitutas para prostitutas.” Gabriela Leite escreveu um projeto que propunha organizá-las em um movimento e entregou no Instituto de Estudos da Religião (Iser). O pastor e teólogo presbiteriano Zwinglio Mota Dias, que morreu em 2021, conseguiu 7 mil dólares para financiar um evento da categoria. Em 1987, as duas agitaram colegas de trabalho e, com esses recursos, levantaram o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, no Rio, com o título: Fala, Mulher da Vida. O evento discutiu o combate à violência policial e o reconhecimento da prostituição como trabalho. Foi um sucesso. O encerramento foi feito com um show no Circo Voador, prestigiado por artistas como Elza Soares, Martinho da Vila e Lucélia Santos. Ao final, para alegria de Gabriela Leite, foi lida uma carta enviada pelo escritor Jorge Amado.

Animadas com o sucesso do encontro, ambas se movimentaram para criar a Rede Brasileira de Prostitutas, também em 1987. Lourdes Barreto mobilizou o Norte-Nordeste. Gabriela Leite ficou com o Sul-Sudeste. Foi a primeira entidade representativa de prostitutas do mundo a nascer englobando um país inteiro. Em seus primeiros encontros, apareciam ônibus com prostitutas de todos os pontos do Brasil – que quase sempre penavam para arrumar hospedagem. Os hotéis não queriam acomodar aquela fauna colorida, barulhenta e sempre disposta a trabalhar.

Como aconteceu com os movimentos sociais que explodiram na década de 1980, esses aglomerados tiveram que se institucionalizar rapidamente, para poder receber recursos. Depois de criar a Rede Brasileira, Gabriela Leite abriu, no Rio, a ONG Davida (hoje coletivo PutaDavida), de onde saíram ideias como a impagável Daspu. A grife, criada para satirizar a luxuosa Daslu – na época no auge dos enroscos com a Polícia Fede­ral –, angariou simpatias com seus desfiles lascivos, que mostravam camisas estampadas com frases como: “A Profissão é a Prostituição mais Antiga do Mundo.” Em Belém, Lourdes Barreto e outras ativistas criaram o Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac). No início, tiveram que registrar o coletivo como Grupo de Mulheres da Área Central, porque o funcionário do cartório de Belém se recusava a incluir a palavra “prostituta” no nome. Depois, apareceram pelo país afora outras entidades, como a Articulação Norte-Nordeste de Profissionais do Sexo e a Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (Cuts), ambas ainda em atividade.

Uma vez organizadas, Lourdes Barreto, Gabriela Leite e várias outras ativistas do país conseguiram alguns feitos importantes. A convite do Ministério do Trabalho e do Ministério da Saúde, participaram dos grupos que estudaram a inclusão do trabalho sexual na lista da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), como atividade restrita aos maiores de 18 anos.

A primeira reunião desses grupos de trabalho aconteceu no Rio de Janeiro, durante um fim de semana em um hotel em Copacabana. O movimento de prostitutas compareceu com dez representantes de todo o Brasil. Em uma salinha, as técnicas do Ministério do Trabalho colocaram fichas na parede para entender quais eram as competências da ocupação, a partir da experiência das pessoas que trabalham nela. Ali entravam itens como qualidades profissionais, boas condutas no ambiente de trabalho, os horários, os locais etc. A antropóloga Soraya Silveira Simões, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Observatório da Prostituição/LeMetro, estava lá. “Foi impressionante. Você via o Brasil se descortinar através dos olhos das prostitutas, aquele universo cheio de complexidades e características regionais. Elas contavam, por exemplo, como usavam o dinheiro que conseguiam – e as muitas que trabalham em garimpo diziam que compravam pepitas de ouro. Enfim, vinha aquela diversidade toda”, conta. Em 2002, a ocupação de profissionais do sexo foi reconhecida. Em 2010, ganharam o direito de se registrar no INSS como autônomos e, assim, ter direito à aposentadoria. “Mas nesses grupos de trabalho da CBO, ficou muito claro também como as prostitutas brasileiras realmente incorporaram o discurso da prevenção – algo muito forte até hoje”, completa a antropóloga.

 

Em 1989, fazia apenas seis anos que o vírus HIV havia sido identificado. Os índices de contágio eram muito preocupantes, mas ainda não estavam nas escalas grandiosas que alcançariam depois. O Ministério da Saúde se movimentava para instituir o Projeto Previna, um programa nacional de prevenção que usaria a metodologia por pares – um sistema que convida um membro-chave dos grupos de maior vulnerabilidade para informar outros membros, criando um efeito multiplicador. Foram escolhidos quatro grupos-alvo: prostitutas, presidiários, homens que fazem sexo com outros homens e usuários de drogas.

O psicólogo e advogado Roberto Chateaubriand Domingues integrava a diretoria do Grupo de Apoio e Prevenção à Aids de Minas Gerais. Por isso, foi chamado para participar de um evento em Brasília que reuniria colaboradores do programa. Conheceu Gabriela Leite num intervalo do encontro. Logo em seguida, topou com Lourdes Barreto, no Segundo Encontro da Rede Brasileira de Prostitutas, no Rio de Janeiro. Ficou maravilhado. “Eu tinha 25 anos, era um rapazinho de classe média de Belo Horizonte, uma cidade conservadora. Não bebia, não saía à noite. Aí dei de cara com aquelas duas líderes da luta pelos direitos civis, muito boêmias, que exalavam uma liberdade que eu nunca tinha visto. E o principal: a gente tinha a mesma percepção de que a prevenção da Aids no país não deveria partir de um discurso proibicionista e repressor, porque naquela época ela era claramente usada como um dispositivo de controle da sociedade”, conta. “Ao conviver com essas mulheres, percebi que ali estava a chave para a pre­venção. Começamos a discutir esse trabalho em outras bases que não as bio­médicas. Entrou em jogo a liberdade de expressão da sexualidade”, completa.

Mas, como define Soraya Simões, a dupla Lourdes-Gabriela “era rock‘n’roll”. Na primeira reunião do grupo de trabalho voltado às prostitutas, já provocaram uma crise. O Ministério da Saúde queria fazer para elas uma cartilha fria, limpinha, explicando apenas como se dava o contágio. Domingues lembra: “Elas responderam que, se não fosse para discutir também direitos civis, estariam fora. Naquela época, os homossexuais eram associados aos vetores da Aids, então as prostitutas ainda não prestavam atenção no HIV. As duas explicaram que não se garante proteção adequada para uma população estigmatizada sem uma luta contra o próprio estigma. Então o único jeito de chegar nas prostitutas era esse mesmo: trabalhar o estigma.”

As líderes do movimento de prostitutas ganharam a queda de braço – e ajudaram a dar o tom do que seria uma campanha de prevenção elogiada mundo afora. A primeira cartilha já veio com um título papo reto: Fala, Mulher da Vida. O trabalho começou a ser costurado em rede. Ao mesmo tempo em que teciam a malha para formar a Rede Brasileira de Prostitutas, a dupla LourdesGabriela introduzia entre as colegas o conceito de prevenção e, de quebra, dos direitos civis. Elas falavam de violência policial, violência de gênero e direito ao reconhecimento do trabalho. “Não dá para contar a história da Aids no Brasil sem essas mulheres. Com a causa comum da prevenção, no meio de uma pandemia, o movimento das prostitutas obteve uma capilaridade no Brasil que talvez não conseguisse tão rapidamente. Em troca, disseminou noções duradouras de prevenção entre prostitutas, que estão aí até hoje”, diz Domingues.

Equipes do Previna viajaram o Brasil de Norte a Sul, localizando lideranças locais e trabalhando com elas. A mecânica era sempre a mesma. A dupla Lourdes-Gabriela ia na frente. Entravam na zona, paravam para beber em algum bar e deixavam a conversa fluir. Depois, com o papo mais adiantado, vinham as reuniões mais formais, onde se distribuíam cartilhas e se ensinava a usar e retirar preservativos. “O melhor jeito de colocar é segurando o aro da camisinha com os dentes. Os homens amam – e aí todos querem usar”, ensina até hoje Lourdes Barreto, sempre que aparece uma oportunidade. Nessa segunda fase, as prostitutas adoravam ser recebidas em prédios de órgãos da administração municipal, lugares onde nunca haviam entrado antes.

Claro, o movimento de prostitutas comprou outras brigas. Em 2004, durante o governo de George W. Bush, o Congresso norte-americano aprovou um dispositivo legal que impunha normas mais restritas para o financiamento de programas de prevenção da Aids em países em desenvolvimento. Para receber 48 milhões de dólares, o Brasil teria que concordar em não financiar associações de prostitutas. O Ministério da Saúde ouviu as líderes do movimento, que na época tinham assento ou interlocução em instâncias como o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Comissão Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Elas reagiram indignadas. Lembraram a importância da rede de prevenção que haviam ajudado a criar pelo país afora – e de continuar produzindo material educativo sobre o trabalho sexual, uma comunicação que seria interrompida por causa de uma cláusula de um doador estrangeiro. O governo brasileiro acabou seguindo a orientação. Recusou a verba – e o trabalho de prevenção com as prostitutas continuou.

Depois do sucesso do Previna, o governo começou a regionalizar os programas de prevenção. Veio o Esquina na Noite, já no início de 2000. Domingues virou assessor técnico do projeto e passou a fazer viagens por todo o Brasil, muitas delas com Lourdes Barreto. Dormiram no mesmo quarto de hotel, passaram por boates fechadas onde as mulheres viviam quase confinadas, identificaram municípios em que havia entroncamentos rodoviários ou grandes obras – locais que atraem prostituição –, foram a bordéis de beira de estrada, entraram em garimpos. “Em todos os lugares, ela era sempre a mesma. Bebia muito, falava palavrão – e criava ligação instantânea com todo mundo”, diz ele.

Essas oficinas de prevenção feitas em bibocas pelo país afora deram às prostitutas uma chave para aquilo que a dupla Lourdes-Gabriela queria: driblar o estigma. Historicamente freguesas de delegacias de costumes e vistas como vetores de infecções sexualmente transmissíveis, elas tiveram uma chance de rever sua identidade. “Começaram a se ver como aquelas que tinham um lugar privilegiado na sociedade para acessar homens refratários a informações sobre o HIV, porque continuavam achando que Aids era ‘coisa de veado’. Era muito comum os clientes chegarem para elas falando: ‘Vamos transar sem camisinha, eu só transo com minha esposa.’ E as prostitutas respondiam: ‘Ah, mas eu transo com muita gente, é importante você se prevenir pra gente cuidar de você e da sua esposa’”, lembra Domingues. “Houve uma inversão: em vez de ser um perigo, elas passaram a ser educadoras.”

Às vezes, até demais. Ao saber que muitas colegas começaram a se identificar como “profissional de saúde” em vez de prostitutas – negação que, achavam elas, só reforçava o estigma –, a dupla Lourdes-Gabriela caiu na perplexidade. “Mas a gente é puta!”, dizia Lourdes Barreto. “O grande barato de Lourdes e Gabriela é que elas não foram picadas pela mosca azul. Era a coisa mais bonita do mundo de ver: com todas as condições que elas teriam de sair desse lugar, sempre se disseram putas”, diz Domingues.

 

Lourdes Barreto virou uma expressiva militante pelos direitos civis. Participou de eventos na Austrália, Holanda, Panamá, Chile, Bolívia, Peru, Venezuela*. Em 2018, foi nomeada representante de notório conhecimento das questões de gênero do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, instância consultiva vinculada ao Ministério da Justiça. Em 2000, chegou a se candidatar a vereadora em Belém, com o arrasador slogan “Vote na mãe, porque no filho não deu certo”, mas não foi eleita. É chamada com frequência para dar palestras em entidades feministas ou ambientes acadêmicos. Nessas ocasiões, solta frases como “sou uma vagina aberta para o mundo” – a definição tem várias leituras: refere-se a uma mulher disposta a dar à luz pessoas ou causas, a ter prazer ou a romper preconceitos, dado que o primeiro lacre imposto é a virgindade. Também costuma abrir as conversas dizendo às mulheres presentes: “Somos todas putas.” Às vezes, filosofa: “Eu nunca vendi meu corpo porque não sou estelionatária. Todos os dias, chegava em casa com ele inteiro. Eu vendia fantasias.” E, a quem pergunta se ainda está na ativa, diz: “Me aposentei, como qualquer trabalhador. Trabalhei deitada a vida inteira, agora descanso deitada.”

Em paralelo, ela lida com o outro lado da moeda. Nunca deixou de topar com preconceitos e dificuldades. Em suas viagens pelo Brasil, era comum que ninguém quisesse ajudá-la a levar as malas. E, depois de cada homenagem que recebe, entra imediatamente no modo festa acabada, músicos a pé: volta para sua casa na periferia de Belém, onde tem saneamento precário e problemas recorrentes com enchentes.

Mas, no cômputo geral, ela virou uma entidade.

 

“A certa altura, cheguei a ficar chateada: ‘Poxa, mamãe está caindo nessa institucionalização, está se acomodando’. Ela respondia: ‘Quem vai ouvir uma puta sem uma instituição?’”, conta Leila Barreto. Hoje técnica do Ministério da Saúde, em Brasília, a primogênita cresceu sabendo que a mãe era prostituta – em casa, ela nunca escondeu de onde trazia seu dinheiro. Descreve a mãe como caxias e com tanto fascínio pelo poder da educação que se desdobrava para garantir que os filhos fossem à escola. Apesar de passar as noites fora e de viajar muito, quando voltava estava sempre de pé para fazer o almoço das crianças. Por acreditar que elas não deveriam ser obrigadas a comer o que não gostavam, preparava o prato preferido de cada uma. A prostituição não era um tema debatido à mesa. “Fui percebendo o estigma quando ouvia comentários de fora, como uma senhora que uma vez me disse: ‘Nossa, sua letra é tão bonita para uma filha de prostituta…’”

Desde bebê, Leila acompanhou a mãe nas reuniões de militância. Quando o Gempac se estruturou, foi entrando naturalmente na entidade e acabou assumindo a coordenação de toda a parte burocrática. Integrou as equipes que iam a campo tocar vários projetos, como o Filão do Tapajós, em que pegou voadeiras e enfrentou dias de viagens em rios cheios de pedras até se embrenhar em garimpos, para disseminar a importância da prevenção.

Hoje, o Gempac passa pelo problema típico de muitos movimentos sociais que começaram voluntariamente e se institucionalizaram. Sem resistir ao peso dos custos e da burocracia para manter uma estrutura de pé, foi se enfraquecendo. Além disso, tem dificuldades de formar novas lideranças. As jovens prostitutas engajadas estão agora em outros modelos de militância, o dos coletivos com muita atuação digital. A sede do grupo, um casarão de esquina no bairro da Campina, está com a fachada descascada e parte do teto ruiu durante uma tempestade. As portas já não ficam escancaradas para quem passa, como aconteceu durante décadas.

Lourdes Barreto não chega a ser alta, mas é fisicamente imponente, com ombros largos e postura com peito aberto. Quando quer elogiar uma amiga, o que faz sempre, diz “mana, tu é foda”. Quando quer ralhar, o que também faz com frequência, usa a mesma frase. É apaixonada por Belém, com exceção dos meses de janeiro e fevereiro, porque chove muito e a cidade pode ficar desabastecida de açaí, hoje seu maior vício. Não suporta sair sem brincos, porque se sente como se lhe faltasse um órgão do corpo. Usa no pescoço um colar dourado com um relicário em forma de coração, onde coloca a foto de uma de suas bisnetas, de 6 anos. Costuma dizer que a família é seu maior patrimônio. Muitas vezes – nas ruas, nos restaurantes, no comércio – é cumprimentada com carinho por homens que dizem frases como: “Oi, meu grande amor! Como você está?” Depois, com toda a naturalidade, comenta: “Esse foi meu macho, era um menino lindo.”

Teve quatro filhos e, embora saiba quem é o pai de cada um, pontuou que iria criá-los sozinha mesmo quando recebeu ofertas evasivas de apoio. Formou uma família grande, onde hoje há pessoas com pós-graduação, policiais militares, comerciantes, funcionários públicos e até apontadores de jogo do bicho. Um de seus filhos está preso, porque é usuário de drogas e foi pego com uma pedra de crack. Quando foi solto, usando tornozeleira eletrônica, resolveu sair à noite e foi preso de novo. Ao ver o filho no presídio, ingressou num movimento para que presos por crimes leves, como ele, não ficassem junto com autores de crimes barra-pesada – e conseguiu. Anda feliz porque o filho começou a trabalhar na cadeia.

Em suas conversas, mistura histórias amorosas de família, memórias dos movimentos de mulheres e reuniões em Brasília para discutir a criação do SUS, lembranças picantes da zona, reclamações sobre dores que começam a aparecer em todas as partes do corpo, relatos de gracinhas das bisnetas. Tem um jeito de falar das coisas que puxa um fio da meada, emenda em outro e depois volta para o início, às vezes se repetindo e adicionando detalhes. Essa maneira de se expressar foi respeitada no livro Puta Autobiografia. “Em vez de ter capítulos, ele é organizado em ‘ondas’”, explica Elaine Bortolanza, psicóloga, pesquisadora e produtora cultural que, junto com Leila Barreto, fez a curadoria da obra e a produção do evento no Thea­tro da Paz. O pacote foi financiado com recursos de duas emendas parlamentares e inclui a organização do acervo do Gempac, a cargo de professores da Universidade Federal do Pará.

Bortolanza era uma grande amiga de Gabriela Leite e, com o tempo, a relação se estendeu para Lourdes Barreto. Durante dez anos, coordenadou a Daspu. A grife que apresentou o Brasil a um movimento de prostitutas irreverente e solar se transformou também em movimento cultural do Coletivo PutaDavida. Participou de eventos no Sesc e de peças de teatro, entre elas a ópera-tango María de Buenos Aires, de Astor Piazzolla, encenada pelo cineasta Kiko Goifman no Theatro Municipal de São Paulo. No elenco, havia prostitutas. “Hoje Elaine é uma das minhas filhas”, diz Lourdes Barreto. “Mana, minha família só tem gente foda.”

 

Dois dias depois do evento no Theatro da Paz, Leila Barreto andava de mãos dadas com a mãe pelo Museu da Imagem e do Som do Pará, agora instalado em um palacete recém-restaurado. Enquanto Lourdes se debruçava para ver os detalhes de uma imensa maquete da cidade e tentava localizar suas antigas áreas de batalha, a filha comentou: “Aquele evento no teatro foi também um momento de cura para nossa família.”

Com o tempo, Leila, a filha mais velha, desenvolveu uma antena potente para captar as diferentes camadas de um es­tigma. Faz reflexões como: “Eu sou um palavrão, sou uma filha da puta. Mas onde estão todos os outros? Calados pelo preconceito com uma profissão que deveria ser tratada como outra qualquer.” Identifica, de longe, o cacoete geral de tentar higienizar de alguma maneira a identidade da mãe. “As pessoas sempre precisam dizer: ‘A Lourdes é puta, mas é uma militante importante.’ Ou então: ‘Lourdes é puta, mas tem filhos que estudaram, tem netos e bisnetos.’ “É uma armadilha muito comum porque é uma maneira de higienizar a sexualidade. Às vezes, até admitem que uma prostituta possa trabalhar porque precisa sustentar a família e, coitada, não achou outro meio de fazer isso. Mas se ela trabalhar, ganhar dinheiro e ainda sentir prazer com isso, aí não pode, aí não é aceitável.”

A octogenária Lourdes Barreto, no entanto, é incolonizável.

Quando percebeu que estava ficando reconhecida mais pela causa do que pela ocupação, aproveitou a presença de um tatuador em um congresso sobre Aids, na Paraíba, e entrou na fila. Quando chegou sua vez, pediu para marcar em seu braço esquerdo, em letras grandes, o que costuma ser o maior xingamento concebível para uma mulher: “Eu sou puta.”

Alguns familiares e amigos a princípio acharam que aí também já era exagero. Leila adorou, justamente pelo que a frase, estampada na pele, tem de afronta e de afirmação de uma identidade. Anos depois, Lourdes Barreto achou pouco e tatuou embaixo uma segunda frase: “Vagina tem poder.” Agora, planeja fazer outra. “Vou tatuar: Cu tem poder. Não posso deixar meus amigos homossexuais de fora!”

Quando foi entregar o vestido de festa que alugou para a mãe usar na noite do Theatro da Paz, Leila ouviu da dona da loja: “Quero dar de presente para dona Lourdes. Depois dela, nenhuma mulher vai estar à altura de usá-lo.”

Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_199 com o título “Dama da noite”.

*  Corrigido em relação à reportagem impressa publicada na piauí_199. Versão anterior deste texto diz que Lourdes Barreto participou de evento na Arábia Saudita. De fato, ela fez apenas uma breve passagem por Abu Dhabi, nos Emirados Árabes.