"As flores, a boa gente da aldeia e suas pequenas casas, e a igreja, e Combray e seus arredores, tudo saiu da minha xícara de chá." ILUSTRAÇÃO: RETRATO MARCEL PROUST POR TULLIO PERICOLI_WWW.MARGARETHE-ILLUSTRATION.COM
Madalenas idas e vividas
Assim que a colher de chá misturada com migalhas do bolo tocou meu palato, estremeci. Um prazer delicioso me invadira. Ele me tornou as vicissitudes da vida indiferentes; seus desastres, inofensivos; sua brevidade, ilusória, enchendo-me de uma essência preciosa. Essa essência não estava em mim, ela era eu. Cessei de me sentir medíocre, contingente, mortal
Marcel Proust | Edição 76, Janeiro 2013
Mamãe sentou-se junto de minha cama; pegara François le Champi, cuja capa avermelhada e o título incompreensível lhe davam, aos meus olhos, uma personalidade distinta e uma atração misteriosa. Eu nunca lera ainda romances de verdade. Ouvira dizer que George Sand era o típico romancista. Isso já me dispunha a imaginar algo de indefinível e delicioso em François le Champi. Os procedimentos de narração destinados a excitar a curiosidade ou o enternecimento, certas maneiras de dizer que despertam a inquietude e a melancolia, e que um leitor um pouco instruído reconhece como comuns a muitos romances, pareciam simplesmente – a mim que considerava um livro novo não como uma coisa semelhante a muitas outras, mas como uma pessoa única, cuja razão de existir estivesse apenas em si mesma – uma emanação perturbadora da essência peculiar a François le Champi. Sob esses acontecimentos tão corriqueiros, essas coisas tão comuns, essas palavras tão correntes, eu sentia como que uma entonação, uma acentuação estranha. A ação começou; ela me pareceu tanto mais obscura porque, quando lia naquele tempo, eu devaneava com frequência, durante páginas inteiras, com coisas bastante diferentes. E às lacunas que essa distração deixava no relato se somava o fato, quando era mamãe quem me lia em voz alta, que ela pulava todas as cenas de amor. Assim, todas as mudanças bizarras que se produzem nas atitudes da mulher do moleiro e do menino, e que só encontram explicação nos progressos de um amor nascente, me pareciam impregnadas de um profundo mistério cuja fonte eu imaginava estar nesse nome desconhecido e tão doce de “Champi”, que dava ao menino que o usava, sem que eu soubesse por que, sua cor viva, purpúrea e encantadora. Se minha mãe era uma leitora infiel, ela era também, nas obras onde achava a inflexão de um sentimento verdadeiro, uma leitora admirável pelo respeito e simplicidade da interpretação, pela beleza e suavidade do som. Mesmo na vida, quando eram seres e não obras de arte que excitavam a sua ternura ou a sua admiração, era tocante ver com que deferência ela afastava da voz, de seus gestos, de suas palavras, a faísca de alegria que pudesse fazer mal àquela mãe que outrora perdera um filho, a referência a festa e a aniversário que pudesse levar um velho a pensar na sua idade avançada, o assunto doméstico que pudesse ter aborrecido um jovem estudioso. Da mesma maneira, quando ela lia a prosa de George Sand, que respira sempre essa bondade, essa distinção moral que minha mãe havia aprendido com minha avó a ter como superiores a tudo na vida, e que só bem mais tarde eu lhe deveria ensinar a não tê-las também como superiores a tudo que há nos livros, atenta em banir da sua voz toda pequenez, toda afetação que tivesse podido impedir o avanço daquela onda poderosa, ela dava toda ternura natural, toda imensa doçura que elas pediam, àquelas frases que pareciam escritas para sua voz e que por assim dizer cabiam por inteiro no registro da sua sensibilidade. Para dizê-las no tom necessário, ela reencontrava o acento cordial que lhes preexiste e as ditou, mas que as palavras não indicam; graças a ele, ela amortecia de passagem toda crueza nos tempos dos verbos, dava ao imperfeito e ao pretérito perfeito a doçura que há na bondade, a melancolia que há na ternura, encaminhava a frase que terminava rumo à que ia começar, ora acelerando, ora retardando a marcha das sílabas para fazê-las entrar, embora suas quantidades fossem diversas, num ritmo uniforme, insuflando nessa prosa tão comum uma espécie de vida sentimental e contínua.
Meus remorsos estavam acalmados, deixava-me levar pela doçura daquela noite em que tinha mamãe perto de mim. Sabia que uma noite dessas não poderia se repetir; que o meu maior desejo no mundo, ter minha mãe no quarto durante as tristes horas noturnas, estava demasiado oposto às necessidades da vida e ao sentimento de todos para que a realização que ocorrera naquela noite pudesse ser mais que uma coisa falaciosa e excepcional. Amanhã minhas angústias recomeçariam e mamãe não ficaria ali comigo. Mas quando minhas angústias estavam acalmadas eu não as compreendia mais; e além do mais a noite de amanhã estava ainda muito longe; eu me dizia que teria tempo de refletir, se bem que esse tempo não pudesse me trazer nenhum poder, pois se tratava de coisas que independiam da minha vontade e que apenas o intervalo que as separava de mim as fazia parecer mais evitáveis.
Assim é que durante um longo tempo, quando acordado à noite me lembrava de Combray, nunca revi mais que essa espécie de fragmento luminoso, recortado em meio a trevas indistintas, semelhante aos que a queima de fogos de artifício ou alguma projeção elétrica iluminam ou seccionam num edifício no qual as outras partes permanecem mergulhadas dentro da noite: na base bem larga havia o pequeno salão, a sala de jantar, o início da alameda obscura por onde chegaria monsieur Swann, o autor inconsciente de minhas tristezas, o vestíbulo de onde me encaminhava para o primeiro degrau da escada, tão atroz de subir que constituía o tronco bem estreito daquela pirâmide irregular; e, no topo, havia meu quarto de dormir com o pequeno corredor de porta envidraçada para a entrada de mamãe; numa palavra, sempre visto à mesma hora, isolado de tudo que poderia existir ao seu redor, se destacando sozinho da escuridão, havia tão somente o cenário estritamente necessário (como os que se veem indicados no início de velhas peças para representações provincianas) ao drama de me despir; como se Combray tivesse consistido apenas de dois andares ligados por uma escada estreita, e como se fossem sempre sete horas da noite. Para falar a verdade, eu poderia ter respondido a quem me perguntasse que Combray compreendia ainda outras coisas e existia noutras horas. Mas como o que então recordasse me seria fornecido pela memória voluntária, a memória da inteligência, e como as informações que ela dá sobre o passado não conservam nada dele, eu nunca teria tido interesse nesse resto de Combray. Tudo aquilo estava na realidade morto para mim.
Morto para sempre? Era possível.
Há muito de acaso em tudo isso, e um segundo acaso, o da nossa morte, com frequência não nos permite esperar um longo tempo os favores do primeiro.
Acho bastante razoável a crença céltica de que as almas daqueles que perdemos estão cativas nalgum ser inferior, dentro de um bicho, de um vegetal, de uma coisa inanimada, perdidas de fato para nós até o dia, que para muitos não chega nunca, no qual acontece de passarmos perto da árvore, entrar na posse do objeto que é sua prisão. Então elas estremecem, nos chamam, e logo que as reconhecemos o encanto se quebra. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver conosco.
É assim com nosso passado. Procurar evocá-lo é penar em vão, todos os esforços de nossa inteligência são inúteis. Ele está escondido fora do domínio e do alcance dela, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) do qual sequer suspeitamos. Depende só do acaso que encontremos esse objeto antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.
Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo o que não era o teatro e o drama de me deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, ao voltar para casa, como minha mãe visse que eu tinha frio, contra o meu hábito ofereceu-me um pouco de chá. A princípio recusei e, não sei por que, voltei atrás. Ela mandou buscar um desses bolinhos curtos e fofos chamados Pequenas Madalenas, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de são Tiago. E então, maquinalmente, abatido pelo dia sombrio e a perspectiva de um triste amanhã, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas, no mesmo instante em que a colherada misturada com migalhas do bolo tocou meu palato, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Um prazer delicioso me invadira, isolado, sem a noção da sua causa. Ele imediatamente me tornou as vicissitudes da vida indiferentes; seus desastres, inofensivos; sua brevidade, ilusória, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou melhor, essa essência não estava em mim, ela era eu. Cessei de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa poderosa alegria? Sentia que ela estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas o ultrapassava infinitamente, não devia ser da mesma natureza. De onde vinha ela? O que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole no qual nada encontro a mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela a despertou, mas não a conhece, e só pode repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero ao menos lhe pedir de novo e reencontrar intacto logo em seguida, à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Pouso a xícara e me volto para meu espírito. Cabe a ele encontrar a verdade. Mas como? É grave a incerteza todas as vezes que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando aquele que procura é ao mesmo tempo a região obscura onde deve procurar e onde toda a sua bagagem não lhe servirá para nada. Procurar? não apenas: criar. Ele está diante de alguma coisa que ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz.
E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado desconhecido, que não me apresentava nenhuma prova lógica da sua felicidade, e sim a evidência da sua realidade, ante a qual as outras desapareciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao momento em que tomei a primeira colher de chá. Reencontro o mesmo estado, sem um esclarecimento novo. Peço a meu espírito um esforço a mais, que me traga outra vez a sensação que escapa. E para que nada quebre o impulso com que ele vai tentar recuperá-la, afasto todo obstáculo, toda ideia alheia, protejo meus ouvidos e minha atenção dos ruídos do quarto ao lado. Mas ao sentir que meu espírito se cansa sem conseguir, eu o forço no sentido contrário: a aceitar a distração que lhe negava, a pensar noutra coisa, a se refazer antes de uma tentativa suprema. E uma segunda vez cavo um vazio diante dele, reponho na sua frente o sabor ainda recente daquela primeira colherada, e sinto estremecer em mim alguma coisa que se desloca, gostaria de subir, alguma coisa que teria se soltado a uma grande profundidade; não sei o que é, mas ela sobe lentamente; sinto a resistência e escuto o rumor das distâncias atravessadas.
Por certo o que palpita assim no fundo de mim deve ser a imagem, a lembrança visual que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a mim. Mas ela se debate demasiado longe, de modo demasiado confuso; mal percebo o reflexo neutro onde se confunde o inalcançável turbilhão de cores misturadas; mas não posso distinguir a forma, pedir-lhe, como ao único intérprete possível, que me traduza o testemunho de seu contemporâneo, do seu inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me ensine de qual circunstância particular, de qual época do passado se trata.
Chegará à superfície da minha consciência clara essa lembrança, o instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, emocionar, levantar no mais fundo de mim? Não sei. Agora não sinto mais nada, ela parou, recaiu talvez; quem sabe se não reemergirá nunca mais da sua noite? Dez vezes preciso recomeçar, me debruçar rumo a ela. E todas as vezes a covardia, que nos desvia de toda tarefa difícil e de toda obra importante, me aconselhou a deixar isso de lado, a beber meu chá pensando simplesmente nos meus aborrecimentos de hoje e nos meus desejos de amanhã, que se deixam ruminar sem custo.
E de repente a lembrança me surgiu. Aquele gosto era o do pedacinho de madalena que nas manhãs de domingo em Combray (pois nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando ia lhe dar bom-dia no quarto, minha tia Léonie me oferecia depois de molhá-lo na sua infusão de chá ou de tília. A visão da pequena madalena não me recordou nada antes de tê-la experimentado, talvez porque, tendo-a percebido com frequência depois, sem comê-la, nas prateleiras de confeiteiros, a imagem dela deixou aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque dessas lembranças, durante tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se degradara; as formas – e também a da pequena concha de confeitaria, tão gordurosamente sensual no seu pregueado severo e devoto – tinham sido abolidas ou, adormecidas, haviam perdido a força de expansão que lhes teria permitido alcançar a consciência. Mas quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, solitários, mais frágeis mas mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o odor e o sabor restam ainda por muito tempo, como almas, a recordar, a aguardar, a esperar, sobre a ruína de todo o resto, a carregar sem vergar, sobre a sua gotinha quase impalpável, o edifício imenso da lembrança.
E assim que reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado no chá que minha tia me dava (ainda que não soubesse e devesse deixar para bem mais tarde descobrir por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinza de frente para a rua, onde estava o quarto dela, surgiu como um cenário de teatro e se aplicou ao pequeno pavilhão dando no jardim, construído atrás para os meus pais (esse pedaço truncado que era o único que eu revira até então); e com a casa, a cidade, desde a manhã até a noite e por todos os tempos, a praça aonde me mandavam antes do almoço, as ruas onde ia comprar coisas, os caminhos que pegávamos se o tempo estivesse bom. E como nesse jogo no qual os japoneses se divertem, pondo numa bacia de porcelana cheia d’água pedacinhos de papel até então indistintos que, ao serem mergulhados, logo se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, e assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque de monsieur Swann, e as ninfeias do rio Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas casas, e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo aquilo que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha xícara de chá.
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