Mal traçadas
Canadá planeja extinguir os carteiros
Claudia Antunes | Edição 90, Março 2014
Antigamente, os correios traziam cartões-postais, cartas de amor, convites de casamento, envelopes lacrados com segredos de Estado, convocações urgentes, telegramas dando conta de nascimentos e mortes, além de contas a pagar. Hoje, os correios trazem folhetos de propaganda, mercadorias compradas pela internet, cartões de crédito para substituir os que foram perdidos ou clonados, além de contas a pagar (mesmo as já incluídas no débito automático).
No mundo inteiro, os serviços de correio tentam se adaptar à disseminação do e-mail, do Facebook, do SMS e do Skype, que golpearam quase até a morte os hábitos tradicionais de correspondência, mas em nenhum lugar se chegou tão longe quanto no Canadá. Em dezembro, o Canada Post anunciou nada menos que a extinção do carteiro tal como o conhecemos. A meta é acabar com o andarilho uniformizado que, faça chuva ou faça sol, distribui envelopes de porta em porta e às vezes até conhece os rostos por trás dos nomes dos destinatários. Os adultos de amanhã se lembrarão dele tanto quanto os de hoje se recordam dos leiteiros, profetizou o blog de assuntos metropolitanos do jornal Toronto Star, conformado à marcha inelutável da modernidade tecnológica.
Dentro de cinco anos não haverá mais entregas em domicílio no país, segundo informou a empresa da Coroa – o Canadá, integrante da Comunidade Britânica e conservadoríssimo nesse quesito, assim se refere a suas estatais. Os “agentes de entrega” circularão apenas de carro, deixando a correspondência em “supercaixas de correio” a serem instaladas nos bairros. Nelas, cada família terá o próprio armário, trancado a chave e com espaço para envelopes e pacotes. A empresa promete criar mais postos para a coleta de encomendas que não couberem no escaninho individual.
Com a reforma, o Canada Post, às voltas com prejuízos consecutivos e a insolvência de seu fundo de pensão, pretende cortar 8 mil dos seus 68 mil empregados. O presidente da empresa, Deepak Chopra (não confundir com o guru da autoajuda, seu homônimo), afirmou que concentrará investimentos na entrega de encomendas, única atividade do setor que cresce aceleradamente. “Se a correspondência está mudando em forma e tamanho, vocês não acham que a caixa de correio deve mudar também?”, perguntou, argumentando que os pacotes estarão mais seguros do que hoje, deixados nas portas das casas ou no saguão dos edifícios quando o destinatário não pode recebê-los. Indagado sobre os idosos que precisarão se expor ao frio para recolher o correio, Chopra lançou mão da insuspeitada ironia canadense: “Os mais velhos vivem dizendo: ‘Eu quero ser saudável, eu quero ter uma vida ativa.’”
O número de cartas postadas vem caindo globalmente entre 4% e 5% ao ano. A queda foi mais brusca entre 2008 e 2009, no auge da crise financeira, quando muitas empresas cortaram despesas com mala direta (o nome eufemístico do spam impresso). O fenômeno acentua mudanças no modelo de negócios dos correios. Tradicionalmente, o serviço se estabeleceu como monopólio estatal (e que empresa privada entregaria cartas em Nunavut, quase no Polo Norte?); era considerado questão de segurança nacional, além de fonte segura de arrecadação. Gradualmente, a remessa de pacotes foi aberta à concorrência. Países como Alemanha, Holanda e Reino Unido privatizaram os correios no todo ou em parte – o governo britânico entregou os envelopes à iniciativa privada, mas manteve a joia da coroa postal: os serviços bancários.
O venerável United States Postal Service também está deficitário há tempos. Na pátria da livre-iniciativa, entretanto, uma campanha pela privatização do USPS enfrenta enorme resistência. A estatal é o terceiro maior empregador dos Estados Unidos, com mais de 500 mil funcionários, 20% deles veteranos de guerra. Um quadro de empregados quatro vezes maior do que o da nossa Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, com cerca de 126 mil contratados, metade deles carteiros, cujo patrono, Paulo Bregaro, remonta ao Grito do Ipiranga. Conta-se que o conselheiro José Bonifácio ordenou a Bregaro que arrebentasse quantos cavalos fossem necessários para entregar a dom Pedro I a carta em que as Cortes portuguesas exigiam sua volta a Lisboa. Diante do ultimato, o imperador declarou a Independência.
No Brasil ainda existe certa estabilidade no número anual de cartas – incluindo, decerto, a correspondência comercial e bancária –, mas 46% do faturamento dos Correios já vêm de atividades em que não existe monopólio estatal. Elas incluem a entrega de encomendas do comércio eletrônico, que crescem cerca de 30% ao ano. Sem a pretensão de concorrer com a internet, a empresa tenta compor com ela. Está criando uma série de “serviços postais eletrônicos” – que, a despeito do nome, continuam apostando na credibilidade da palavra impressa. Eles incluem desde o telegrama que é postado digitalmente, mas impresso no lugar de destino, a convênios com tribunais de Justiça para impressão, envelopamento e entrega de intimações enviadas por e-mail.
No Canadá, nem todos reagiram ao anúncio dos correios com a resignação do blog do Toronto Star. Além da rejeição óbvia dos funcionários da empresa, que estão com a cabeça a prêmio, a oposição diz que as medidas vão prejudicar seu eleitorado, mais urbano, uma vez que os seguidores do Partido Conservador do premiê Stephen Harper tendem a morar em áreas rurais ou subúrbios de classe média em que as caixas de correio já ficam fora das casas (cerca de metade dos domicílios canadenses, que recebem a correspondência na porta ou na portaria de edifícios, será afetada pela mudança).
A imprensa local aponta outros obstáculos à implantação do plano, como a falta de espaço nas cidades para instalar as tais supercaixas, e o roubo e a vandalização daquelas que já existem em lugares públicos. Também houve chiadeira porque a divulgação do corte no serviço veio acompanhada de um aumento de 35% no preço dos selos. Segundo uma pesquisa da empresa de opinião pública Angus Reid, 58% dos canadenses se opõem à extinção da entrega domiciliar.
E que a verdade seja dita. Como em meados do século passado, quando a voz de Isaurinha Garcia tremulava de expectativa pelas “verdades tristonhas” e “mentiras risonhas” que uma carta poderia trazer, ainda há quem se emocione com a mera possibilidade de receber em mãos uma palavra manuscrita. Um jornalista do diário canadense The Globe and Mail admitiu que nunca viu seu carteiro, mas enxergou na iminente extinção do entregador andarilho a antecipação do fim da era de Gutenberg. “Sou apegado ao registro no papel”, confessou. Não é possível descartar, então, que o anúncio de Chopra acabe devolvido ao remetente.
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