"Qualidade sem resultados não tem sentido; resultados sem qualidade não têm graça", dizia Cruyff FOTO: EAMONN MCCABE_GETY IMAGES
A maldição da Holanda
Estilo encampado por Cruyff acabou com o futebol bonito
Marcos Caetano | Edição 115, Abril 2016
Assim como a imprensa internacional ainda não se decidiu sobre a grafia correta do sobrenome do craque e filósofo do futebol Johan Cruyff – muitos insistem em chamá-lo de Cruijff –, atrevo-me a dizer que também há controvérsia sobre o valor de seu legado. Não estou questionando, que fique claro, o caráter do holandês: por tudo o que li e acompanhei, o sujeito era mesmo supimpa. Só que um dia eu teria que trazer à luz minha teoria, tão antiga quanto polêmica, de que o “carrossel holandês”, muito mais do que uma revolução tática que a imprensa esportiva se acostumou a cultuar, representou a morte do futebol bonito. Publicar essa teoria é o mais próximo que um cronista pode chegar da reprovação unânime – e o desaparecimento de Cruyff me parece ser a ocasião perfeita para o ato suicida. Aqui, portanto, começo a ingerir os barbitúricos.
Os afortunados que ainda não passaram dos 40 anos não acreditarão, mas eu juro que houve uma época em que poucas coisas eram menos relevantes para o futebol do que as estatísticas. Na minha infância, na minha adolescência, jamais ouvi um comentarista gastar saliva com percentual de posse de bola, número de desarmes, quantidade de chutes a gol ou de passes errados. O volume de passes errados e chutes sem direção que a sacrossanta Seleção Brasileira de 1970 deu na final contra a Itália foi algo absurdo. Entretanto, como eu e todos os que amavam o futebol naquela época sabiam, lances como uma estilingada de Rivelino para a cabeçada fulminante de Pelé, um chutaço de Gérson de fora da área, uma metida de bola de 40 metros de Gérson para Pelé escorar para Jairzinho ou uma sequência desconcertante de dribles e passes que termina com Pelé rolando para o Capita estufar as redes ainda poderiam – apesar de todos os chutes tortos e passes errados – sacramentar uma goleada de 4 a 1.
O futebol que eu aprendi a amar não era solidário nem socialista. Grandes craques ainda caminhavam sobre os gramados – e, para alguns deles, como Domingos e Ademir da Guia, esse caminhar não era apenas figura de linguagem. Eles podiam decidir uma partida a qualquer instante, o que as tornava sempre imprevisíveis. Entre os anos 50 e 70, nem mesmo equipes como o Santos de Pelé conseguiam passar seis meses sem perder, como o atual Barcelona. E se o Santos vencia muito mais do que perdia, não era por causa desse personagem sem rosto chamado “sistema tático” ou “tiki-taka”. Ganhava porque tinha os maiores craques. Ponto. Tanto é assim que mesmo eu, que sou do ramo, não consigo lembrar os nomes dos técnicos do time da Vila na era Pelé. O futebol da minha juventude era como o cinema de hoje, em que os atores são indiscutivelmente mais importantes do que diretores e produtores.
Antes do tal futebol solidário da Holanda, nunca vimos atletas limitadíssimos – embora com saúde de vaca premiada – disputando copas do mundo com status de craque. A proposta da Holanda era a da pura eficiência, uma espécie de protagonismo coletivo, esse contrassenso em termos. Todos atacavam, todos defendiam, todos corriam como loucos, e aquilo apenas me dava a certeza de que jamais Pelé teria sido Pelé, em toda a sua imensidão, se tivesse que atuar na Laranja Mecânica ou no Barça de Cruyff. Tanto o modelo holandês é limitador do talento, que eu duvido alguém citar um mísero gol de antologia marcado por Cruyff. O mais célebre de seus gols, admitamos, foi aquele na cobrança de pênalti com tabelinha, que Messi imitou muitos anos depois. Eu prefiro a genialidade de um pênalti com paradinha, um gol de bicicleta, chute do meio de campo, a folha-seca. Porque a dura verdade é que, como jogador, Cruyff foi uma espécie de Verón com direção hidráulica e rodas de liga leve. Exceto por sua contribuição tática, que eu procuro criticar aqui, ele não foi nem de perto um cracaço como Pelé, Maradona, Didi, Di Stéfano, Garrincha ou até mesmo Messi.
Um dos maiores problemas da ditadura do jogo coletivo da Holanda, que Cruyff mais tarde levou ao Barcelona, é a necessidade de vários passadores no mesmo time para que o jogo fique realmente bonito de ver. Como apenas dois ou três times no mundo têm dinheiro para contratar gente como Messi, Xavi, Iniesta e Neymar – e, para piorar, os melhores preferem jogar no próprio Barça –, na prática o que vemos são pouquíssimos clubes que jogam lindamente como os catalães, e milhares de outros tentando copiar o Barcelona e não passando de pastiches constrangedores. Por causa disso, nossos jogadores não arriscam mais passes longos, e desaprenderam a cobrar faltas. Sou capaz de jurar que essa mania que o Barça tem de cobrar todas as faltas indiretamente fez com que nunca mais tivéssemos um Zenon e um Dicá por estas bandas, apenas para citar dois grandes cobradores que jogavam nos modestos Guarani e Ponte Preta, nos anos 70.
O que a Holanda fez – e esse é o resumo da minha argumentação – foi reduzir significativamente o brilho individual, a imprevisibilidade e a supremacia do talento numa partida de futebol.
Há quem ache lindo o tiki-taka, mas eu prefiro a nossa Seleção de 70, ou mesmo a de 82, com menos aplicação tática, mas cheia de magos capazes de nos encantar a cada lance. Os deuses do futebol parecem concordar comigo e, por isso, lançaram uma maldição: até a consumação dos tempos, a Holanda jamais será campeã do mundo. Nem que o individualista e fominha Gerd Müller tenha que vencer outras mil finais contra o solidário Cruyff. Nem que o chute de Rensenbrink tenha que beijar eternamente a trave do Monumental de Nuñez, no último minuto de jogo. Nem que seja necessário o surgimento de um rival ainda mais eficiente no futebol de toquinhos, como a Espanha de Iniesta – forjada pela linhagem inaugurada pelo próprio Cruyff no Barcelona. O fato é que a Laranja Mecânica jamais será campeã do mundo. Isso é o que ela me deve por ter destruído o futebol que meu pai me ensinou a amar.
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