Makeda com a irmã Augusta; atribuído à rainha de Sabá, o nome da bebê significa “grandiosa” FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Mama África
Uma família negra e o desejo de batizar a filha com um nome etíope
Armando Antenore | Edição 119, Agosto 2016
Reza o senso comum que as avós devem presentear as netas com bonecas. Pouco depois de Makeda Foluke nascer, a cabeleireira Maria da Conceição de Paula seguiu a tradição e lhe comprou uma. “De que cor, mãe?”, perguntou a filha de 27 anos quando soube do presente. Só então a cabeleireira percebeu que cometera uma gafe. “Xi, é branca…”, respondeu, desconcertada. Carioca, Makeda tem apenas 4 meses, os olhos muito vivos, uma disposição notável para sorrir e a pele negra. Exatamente como a da professora Juh de Paula, que deu à luz numa casa de parto em Realengo, sob os cuidados de enfermeiras obstetras e da própria Conceição. Ela, a avó, também é negra. Mesmo assim, escolheu a boneca branca. Por quê?
Juh sabe o motivo e não se furta de expressá-lo: “Porque, no Brasil, ainda vigora a ideia de que os pretos precisam cuidar dos brancos. Funciona desse jeito há séculos e quase ninguém questiona. Várias lojas nem sequer oferecem bonecas negras.” A professora evita julgar Conceição pelo deslize: “Foi um gesto inconsciente. Eu compreendo.” Entretanto, ainda não se convenceu de que deixará Makeda ninar a boneca branca. “Farei o máximo para que minha filha se sinta bela e valorizada, para que se reconheça preta e não veja nada de inferior nisso.” Quando criança, Juh costumava botar uma toalha sobre a cabeça, à maneira de um véu. Gostava de fingir que possuía “cabelos bonitos” – ou melhor, longos e escorridos, como as loiras. “Se depender de mim, Makeda jamais vai nutrir fantasias desse tipo.”
A batalha da professora pelo respeito às origens da menina começou já em março, tão logo as duas saíram da casa de parto. Durante a gestação, Juh e o marido – Cizinho AfreeKa, estudante de economia e funcionário público negro, que acaba de completar 45 anos – decidiram batizar a primogênita do casal com um nome africano. Pensaram, de início, em Ashanti, termo que identifica um grupo étnico de Gana. Depois, optaram por Makeda Foluke, combinação que os agradou tanto pela sonoridade quanto pelo sentido. Makeda advém da Etiópia e quer dizer “grandiosa”. Não só é uma das denominações atribuídas à rainha de Sabá, figura mítica que aparece na Bíblia e no Corão, como serve de título para um sucesso da dupla francesa Les Nubians. A canção discorre justamente sobre a necessidade de os negros cultivarem a autoestima. Já Foluke, oriundo da Nigéria, significa “protegida por Deus”. Com o intuito de registrar a filha, AfreeKa procurou um cartório em São João de Meriti, município da Baixada Fluminense onde Juh se criou. O oficial, porém, rejeitou a designação africana. Baseando-se no artigo 55 da Lei 6.015/73, que desautoriza “prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores”, o burocrata negou a certidão.
Os pais enxergaram preconceito no veto e moveram um processo para revertê-lo. A ação tramitou por oitenta dias. O Ministério Público e a juíza da 2ª Vara de Família de São João de Meriti avalizaram a negativa do cartório e afirmaram que havia, sim, o risco de o nome Makeda gerar corruptelas pejorativas, como “uma queda” ou “má queda”. Levantou-se, inclusive, a hipótese de os gracejos descambarem para afirmações de cunho sexual, algo do tipo “ela é uma garota certinha, ma ke dá, dá (mas que dá, dá)”.
Contratado pelo casal, o advogado Hédio Silva Júnior apelou da sentença, lançando mão de argumentos que ora invocavam o bom senso, ora a lei. Explicou, por exemplo, que a palavra Makeda não é proparoxítona, mas uma paroxítona com sílaba tônica fechada (pronuncia-se Maquêda). Salientou, igualmente, que nomes como Ema e Gastão se prestam à zombaria e, no entanto, não sofrem nenhuma espécie de censura. Também ouviu os pais de uma xará da bebê, que garantiram nunca ter enfrentado qualquer “situação vexatória, constrangedora ou embaraçosa” em razão do prenome concedido à filha. O advogado ainda ponderou que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado deve resguardar o direito de os genitores transmitirem “suas crenças e culturas” para a prole. No último dia 9 de junho, o Conselho da Magistratura finalmente deu ganho de causa à família e a menina pôde virar a cidadã Makeda Foluke de Paula da Silva.
Mal tomaram conhecimento do caso, duas repórteres negras – uma do jornal Extra, outra do portal R7 – o divulgaram. A história alcançou certa repercussão e, como diria o músico Tom Zé, o “Tribunal do Feicebuqui” logo se instalou. Houve quem se valesse das redes sociais para criticar Juh e AfreeKa. É que, enquanto o casal brigava na Justiça, Makeda ficou sem documentação e impedida de usufruir do serviço público de saúde. “Quanta irresponsabilidade! Desistam desse capricho e encerrem rapidamente a questão!”, vociferavam os juízes virtuais. “Desistir? Como assim?”, indigna-se ainda hoje a professora. “Nós não estávamos lutando apenas por um nome.”
Juh, o marido e a bebê dividem uma casa térrea de cinco cômodos no bairro carioca de Campo Grande. Quando os visitei, escutavam música em alto volume: samba, rap, soul, funk. “Aqui só rola som de preto”, avisou AfreeKa, que nasceu na Cidade de Deus, comunidade pobre da Zona Oeste. Ele se chama Moacir Carlos da Silva, mas é tratado por Cizinho desde a infância. Com 17 anos, viu imagens de “uns gringos que usavam tranças nagô”. Gostou do penteado black e o adotou. Certo dia, atraído pelo visual do rapaz, um sujeito o parou na rua e o convidou para uma reunião sobre consciência negra. “A partir daí, nunca mais deixei de estudar e debater o assunto.” Não à toa, abdicou socialmente do nome oficial e se rebatizou Cizinho AfreeKa. “Sou Moacir Carlos da Silva apenas nos documentos.”
O neologismo AfreeKa resulta da fusão entre duas palavras inglesas: o substantivo Africa e o adjetivo free (livre). “Soube que ativistas dos Estados Unidos o utilizam e resolvi aderir. Mesmo porque me considero mais africano do que brasileiro.” A ligação com a terra de seus ancestrais evidencia-se também no modo como se veste. Não raro, traja batas e túnicas coloridas. A ideia de registrar a criança com um nome afro partiu dele. Era um desejo antigo, que não conseguiu realizar em julho de 2001, quando teve a primeira filha, Augusta, fruto de outro casamento.
À semelhança do marido, Juh – ou Jéssica Juliana de Paula da Silva – participa de grupos e discussões públicas que refletem sobre a negritude. Formada em educação física e pós-graduada em fisiologia do exercício, conheceu o parceiro durante o Griotagem, sarau organizado mensalmente pelo coletivo Denegrir. Ela e AfreeKa escrevem poemas. “Cizinho até fez uma canção de ninar para Makeda”, contou Juh. Pedi que a cantassem. “Não! Ninguém merece a minha voz…”, recusou-se o companheiro. A professora, que hoje não segue nenhuma religião, mas já integrou o coro de uma igreja evangélica, atendeu ao pedido, sorridente: “Makeda não cansa de mamá, mamãe/Makeda não cansa de mamãe, mamá/Makeda não cansa/É uma criança/É nossa esperança/De um mundo melhor, de um mundo melhor.”
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
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