Um carro do cortejo pró-Bolsonaro enguiçou, o cachorro latiu, um dos bolsonaristas sacou uma pistola e atirou no animal ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_2018
Marley e nós
Direitos caninos para caninos direitos
Roberto Kaz | Edição 146, Novembro 2018
Muniz Ferreira é uma cidade de 7 mil habitantes no Recôncavo Baiano que, de tão pequena, tem só duas ruas comerciais. Nelas ficam uma loja de telefonia chamada Mundo das Variedades, uma loja de ração chamada Ellen Variedades, uma de bijuteria – a Ana Biju e Variedades – e uma de roupas, a Charmosa Moda e Variedades (não confundir com a Variedade Modas, localizada poucos metros adiante). A arquitetura urbana é quase toda de casas térreas, exceto pela presença de uma igreja, de um único edifício de três andares e da sede da prefeitura, cuja fachada exibe uma faixa em que se lê: “Parabéns, Wellington, a sua simplicidade te faz um grande homem!” Wellington é o próprio prefeito – Wellington Vieira, do PSD. O lema municipal, estampado nas lixeiras públicas, dá conta de que Muniz Ferreira é “a cidade do bem viver”.
A calmaria do lugarejo foi cortada a tiros no dia 30 de setembro, um domingo, quando uma carreata com apoiadores do então presidenciável Jair Bolsonaro saiu de Nazaré das Farinhas, um município vizinho. O cortejo em verde e amarelo pegou uma rodovia estadual, a BA-046, cruzou o Centro de Muniz Ferreira e decidiu fazer o retorno na pequena rua onde mora Adelina Barreto Maltês da Silva, de 58 anos. Deu-se, então, a seguinte cena, segundo seu relato: um carro enguiçou e precisou ser empurrado; o cachorro de Silva, chamado Marley, latiu para os homens que empurravam o carro; um dos homens sacou uma pistola e atirou numa pata dianteira do animal; Silva gritou para que ele parasse; o homem deu mais dois tiros no cão, que se arrastou, sangrando, até morrer nos fundos de uma casa; o cortejo foi embora. “Todo dia vou dormir pensando no Marley”, disse a dona do vira-lata. “Uma noite, sonhei que ele estava vivo. Acordei chorando.”
Adelina da Silva é uma senhora miúda, de pele morena, que ganha um salário mínimo para trabalhar numa escola municipal de Muniz Ferreira. “Comecei dezesseis anos atrás como auxiliar de creche”, contou. “Hoje cuido da biblioteca.” É viúva e mãe de dois filhos. Gustavo, de 24 anos, cursa direito em Salvador, a 90 quilômetros dali. Matheus, de 19, só estudou até o 2º ano do ensino médio e oscila entre o desemprego e o trabalho esporádico, plantando banana e mandioca nas fazendas da região. Mãe e caçula moram numa casa de dois quartos, pequena e bem cuidada. A sala tem um sofá para duas pessoas e uma estante, que abriga a televisão, o aparelho de som, uma imagem de Cristo e outra de Nossa Senhora Aparecida.
Marley juntou-se à família há um ano e meio, assim que desmamou da mãe, a vira-lata Bandida (o pai, Rex, era um pit bull). Foi presente de uma tia para Matheus, a quem coube escolher o nome, inspirado no filme Marley e Eu. O bicho cresceu solto, entre as crianças e os cachorros da vizinhança. “Ele andava o bairro todo sozinho”, relembrou Silva. “Pra você ver como era manso, teve uma vez que se perdeu na estrada e foi trazido de volta por uma pessoa que ele nem conhecia.” Tinha o pelo curto, o porte médio e a coloração escura, salvo pelas manchas brancas no peitoral e nas patas, como se usasse meias. Estava com as vacinas em dia.
O cachorro dormia dentro de casa, no chão da sala ou da cozinha, mas passava a manhã em frente à cama de Matheus, esperando que ele acordasse (só fazia as necessidades da porta para fora). O rapaz, que é muito calado, mantinha quatro fotos do animal de estimação em seu perfil no Instagram. “Amo meu cachorro!”, escreveu numa delas. Em outra, colocou uma rima: “Eu por você, e você por mim. Se Deus quiser, vai ser sempre assim.” A última, publicada no dia 12 de junho, era uma selfie em que Marley aparecia deitado com a cabeça no colo do jovem: “Dia dos Namorados e nós estamos como? Super de boa, não temos a preocupação de dar presentes a ninguém.”
Matheus não se encontrava em casa no momento em que Marley foi morto, mas uma prima dele, Mariana Santos Barreto, sim. Ela mora na mesma rua e disse que passou vinte minutos à procura do cachorro, até achar o rastro de sangue que conduzia aos fundos de uma casa. “Como o ser humano pode ser tão cruel?”, escreveu, em seu perfil no Instagram, horas depois. “Levaram um pedaço da nossa família, só quem conhece sabe o amor que tínhamos por esse cão. Eu quero justiça, meu coração sangra de raiva e de tristeza.” Marley foi enterrado num terreno baldio, a cerca de 100 metros de onde morava.
Na segunda-feira seguinte à morte do cachorro, Adelina da Silva se dirigiu ao complexo policial de Muniz Ferreira para prestar queixa. Havia anotado o nome parcial do autor dos disparos (Leo), que se apresentara como policial militar, o modelo do carro em que estava (um Celta) e o final da placa (0005). No mesmo dia, os organizadores da carreata publicaram uma nota de desagravo no WhatsApp: “O Movimento Direita Nazaré vem, por meio desta, esclarecer que o fato que culminou na morte de um cachorro da raça pit bull foi antes de tudo um fato típico de autodefesa e autopreservação do autor. Não informaremos o nome do mesmo, mas podemos dizer que é policial militar, inclusive de ótima reputação e pessoa que prima pelo respeito à vida, inclusive dos animais.” O PM prestou depoimento e não quis dar entrevista.
Em meados de outubro, fui ao complexo policial de Muniz Ferreira para ver o boletim de ocorrência. A visita havia sido marcada dois dias antes, por telefone, com a delegada Zelma Almeida Lima. “Cadê seu crachá? Você é filiado a algum partido? Tá aqui por quê?”, perguntou, aos berros, assim que cheguei. Ela não me deixou fotografar o B.O. nem anotar nenhuma palavra dele. Por ser um documento público, qualquer cidadão brasileiro pode vê-lo ou reproduzi-lo. A arbitrariedade de Lima foi denunciada à Corregedoria da Polícia Civil da Bahia.
A delegada aceitou apenas repetir a versão do acusado: “Ele bateu o pé duas vezes no chão para afastar o animal. Na terceira, com receio de ser mordido, deu o tiro.” A policial aproveitou para expressar sua opinião a respeito do caso: “A família alega que o cachorro era dócil, como toda família sempre diz.”
Adelina da Silva não descarta que a morte de Marley esteja ligada ao clima bélico em que o país mergulhou no período eleitoral. “Minha família vota no Haddad, como quase toda a cidade”, explicou. “Então o pessoal da carreata buzinava, e a gente gritava de volta: ‘É 13! É 13!’ O cara deve ter sentido raiva e, como não podia atirar na gente, mirou no Marley.”
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