Recém desembarcados na elite do futebol e à espera de um mascote, os marrecos já se aprontam para os grandes embates FOTO: divulgação
Marrecos de elite
Em menos de dois anos, o Cardoso Moreira saiu do charco do amadorismo para a Primeira Divisão carioca. Que venham Flamengo e companhia
Cassiano Elek Machado | Edição 15, Dezembro 2007
Mesmo com apenas 12 206 almas, Cardoso Moreira tem seus segredos. Um deles, que mesmo muitos cardosenses ainda não conhecem, é que nos dias mais quentes escorrem gotas de mel da mão direita do Cristo Redentor, que vigia a cidade do topo do antigo Morro dos Cabritos. Uma colônia de abelhas se aproveitou de uma rachadura na palma destra do Jesus de gesso e instalou por ali sua residência. Um segredo mais misterioso é tramado sob as barbas da estátua. Precisamente na direção para a qual aponta a tal mão direita lambuzada de mel, fica a sede do Cardoso Moreira Futebol Clube.
Com uma folha de pagamento que soma 22 mil reais ao mês, para todo o escrete de 26 jogadores, um estádio para mil pessoas, apenas um funcionário contratado (o roupeiro Marinelso dos Santos) e um histórico de dois anos de atividade profissional, a equipe conquistou no mês passado o direito de ascender à elite do futebol do Rio. No próximo 19 de janeiro, o time vermelho, preto e branco fará o jogo de abertura do Campeonato Carioca de 2008, em duelo com o Fluminense, no Maracanã. No mesmo estádio, onde caberia sete vezes a população de Cardoso Moreira, a equipe enfrentará, menos de uma semana depois, um time chamado Flamengo.
O grande momento do desporto cardosense não vem sendo tratado com fanfarra pela cidade, localizada a 340 quilômetros ao norte da capital. Não adianta procurar a camisa do clube na Tudo e Algo Mais Presentes, nem na mercearia chamada Mercearia. Os sinais de festança são discretos. Na sala que serve de presidência, diretoria e sala de troféus do clube, sob uma máquina de escrever verde metálica, estão seis pacotes de balões com as três cores do time. E, numa das faixas penduradas no alambrado do Estádio Antonio Ferreira de Medeiros, próxima ao anúncio da pousada Shangri-La, lê-se um “Parabéns CMFC, estamos na Primeira Divisão”.
Alguns jogadores estranham. “Quando joguei no Toledo e empurramos o time da cidade para a Primeira Divisão do Campeonato Paranaense fomos recebidos até com trio elétrico”, relembra o baiano Rincón, médio-volante do Cardoso. Sentado ao seu lado, na entrada das duas casas geminadas que a equipe alugou para hospedar os jogadores, o meia-atacante reserva da equipe, Netinho, dá sua explicação. Filho de uma cardosense e morador da cidade há quatro anos, ele balança a cabeça e sentencia: “Sabe o que é? Ninguém daqui acreditou até agora, o povo não sabe o que isso significa”.
Existem motivos para tal ceticismo. Criada em 1935, quando Cardoso Moreira era apenas um distrito de Campos dos Goytacazes, a equipe da cidade sempre viveu no regime do amadorismo. Em 1994, quando a prefeitura do recém-emancipado município era ocupada por um antigo craque do Cardoso Moreira Futebol Clube, o ex-meia Renato Jacinto, que dizem ter sido o melhor cobrador de escanteios da história do clube, o time recebeu apoio oficial e arriscou a sorte na Terceira Divisão carioca. E levou o título. No ano seguinte, com o ex-craque já fora da prefeitura, o clube perdeu os recursos do erário e deixou de atuar. O time ficou fora até dos campeonatos amadores. As portas do Ferreirão, como é apelidado o estádio do clube, só voltaram a se abrir em 2006, com o retorno de Jacinto à prefeitura.
Na retomada ao terceiro escalão do futebol carioca, os tricolores foram novamente campeões. Mas a grande façanha ainda estava por vir. Nunca um estreante na Segunda Divisão carioca havia se classificado de cara para a elite. E foi o que aconteceu com o Cardoso. Não há bicheiro ou mafioso russo por trás da conquista. Alexandre Cozendey, o presidente do clube, garante que o maior salário do plantel foi de 1 500 reais. Cinco jogadores ganhavam essa quantia. Entre eles, o mais conhecido do time, o lateral-direito Neném, que no ano passado jogou pelo Botafogo e já usou os uniformes de clubes como o Palmeiras e o Goiás. Aos 32 anos, o jogador, que antes de ser Neném era Dorismar, diz no futebolês mais castiço que “chamou para si a responsabilidade de orientar o grupo”. Capitão do time, ele divide os holofotes com outros poucos comparsas mais experientes: o meia Pelica (ex-Americano, de Campos), o zagueirão Fabão (futebol goiano e sul-matogrossense) e o goleiro Macula (que já atuou até no Vietnã).
Até o final de novembro, nem o técnico Mário Marques nem qualquer um dos 26 jogadores haviam assinado contrato para continuar no Cardoso Moreira em 2008. Entre as certezas, está a presença de Ralf Nogueira dos Santos onde quer que o clube esteja. Líder da Garra Cardosense, torcida organizada, o motorista de caminhão (e tocador de bumbo) só perdeu dois jogos do time no biênio 2006-2007. “Agora é que não perco nenhum. Já roemos o osso, agora não vou perder o filé”, diz.
O Cardoso é, talvez, o único clube do Brasil a franquear na internet o acesso a todas as suas contas. No site www.cmfc.xpg.com.br pode-se acompanhar a aplicação de cada centavo (lanche Oásis: 4,40 reais; papelaria Risque & Rabisque: 3 reais etc.). Ele também é único em matéria de uniformes. Ao longo de sua história, o time já usou mais de uma dúzia de modelos de camisetas. Na atual configuração, branca, com dois ondulados vermelhos (alusão aos rios Muriaé e Paraíba do Sul), a diretoria esqueceu que o estatuto do time previa também o uso da cor preta. O negro voltará na próxima camisa, que brilhará na Rede Globo ao menos uma vez, no embate com o Vasco, em São Januário, no dia 16 de março.
Nesse dia, Cardoso Moreira espera apagar de vez da memória coletiva a única característica que havia levado até hoje o nome da cidade às massas. Não foi devido à sua lingüiça de porco, à grandiosa companhia de rodeios Tony Nascimento ou à sua fábrica de vassouras que a cidade apareceu no Jornal Nacional. Cardoso Moreira era conhecida por suas enchentes. As de 1979, 1986, 2005 e uma no início deste ano tornaram-se famosas – e nenhuma, no entanto, se equiparou à de 1997, quando 80% da cidade, toda ela cercada de montanhinhas, ficaram debaixo d’água.
Foi por isso que as cidades vizinhas começaram a chamar os cardosenses de “marrecos”. O presidente Cozendey não se faz de rogado. Decidiu que, como o clube não tinha mascote, adotaria o apelido de “marreco”. Como não existe animal da espécie na cidade, ele pretende adquirir um. E aí, que venham Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo.
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