Cem anos após seu nascimento e 57 anos depois da publicação de seu ensaio, a denúncia de Czeslaw Milosz dos círculos intelectuais servis continua mais verdadeira do que nunca FOTO: JUDYTA PAPP_JUDYTAPAPP.COM
Mentes cativas
A melhor maneira de avaliar a escravidão a uma ideologia está na incapacidade coletiva para imaginar alternativas. E Margaret Thatcher, assim como os comunistas no pós-guerra, dizia: “Não há alternativa”
Tony Judt | Edição 54, Março 2011
Anos atrás, visitei Krasnogruda, o solar de Czeslaw Milosz, perto da fronteira da Polônia com a Lituânia. Eu era convidado de Krzysztof Czyzewski, diretor da Fundação do território da fronteira, dedicada ao reconhecimento da memória dos conflitos ocorridos naquela região e à reconciliação das populações envolvidas. Estávamos no auge do inverno e havia campos cobertos de neve até onde a vista podia alcançar, apenas com o ocasional destaque de uma ou outra árvore e dos postes que assinalavam as fronteiras nacionais.
Meu anfitrião se deixou levar pelo lirismo ao falar das trocas culturais planejadas para a casa ancestral de Milosz. Eu estava absorto em meus próprios pensamentos: o ramo Avigail da família de meu pai havia vivido e morrido (alguns nas mãos dos nazistas) a uns 100 quilômetros ao norte dali, em Pilviškiai, na Lituânia. Nosso primo Meyer London, oriundo de uma aldeia próxima, havia emigrado de lá para Nova York em 1891, onde foi eleito, em 1914, como o segundo congressista socialista. Até ser expulso devido a uma pérfida aliança entre judeus ricos de Nova York, temerosos do seu socialismo, e sionistas americanos, horrorizados com sua desconfiança em relação ao projeto deles.
Para Milosz, Krasnogruda, “terra vermelha”, era seu “reino natal”. Mas para mim, ao contemplar aquela paisagem desoladamente branca, me vieram à mente as cidades de Jedwabne, Katyn e Babi Yar – ambas não muito distantes – para não falar de lembranças sombrias bem mais próximas. Meu anfitrião certamente sabia de tudo isso: de fato, ele era pessoalmente responsável pela controvertida publicação polonesa do relato de Jan Gross sobre o massacre de Jedwabne. Mas a presença do maior poeta polonês do século XX transcendia a tragédia que ronda a região.
Milosz nasceu, em 1911, no que era então a Lituânia russa. De fato, a exemplo de muitas figuras importantes da literatura polonesa, ele não era estritamente “polonês” em termos geográficos. Adam Zagajewski, um dos mais importantes poetas vivos do país, nasceu na Ucrânia; Jerzy Giedroyc – figura central na literatura do exílio no século XX – nasceu em Belarus, assim como Adam Mickiewicz, o ícone do renascimento literário polonês do século XIX. A Vilna lituana, em especial, era uma mescla cosmopolita de poloneses, lituanos, alemães, russos e judeus, entre outros (Isaiah Berlin nasceu perto dali, em Riga, assim como Judith Shklar, a filósofa política de Harvard).
Criado no período entre as duas guerras mundiais na república polonesa, Milosz sobreviveu à ocupação e já era poeta de certa estatura quando foi enviado para Paris na função de adido cultural da Nova República Popular. Mas em 1951 desertou para o Ocidente e dois anos depois publicou sua obra de maior repercussão, Mente Cativa. Esse livro, que jamais deixou de ser publicado, é de longe o relato mais penetrante e duradouro sobre a atração de intelectuais pelo stalinismo e, em termos mais gerais, sobre a atração que a autoridade e o autoritarismo exercem sobre a intelligentsia.
Mente Cativa é memorável por duas imagens. Uma é a “Pílula de Murti-Bing”. Milosz topou com a ideia num romance obscuro de Stanislaw Ignacy Witkiewicz, Insaciabilidade, de 1927. Nele, os habitantes da Europa Central, diante da perspectiva de uma invasão de hordas asiáticas não identificadas, estalam entre os dentes uma pequena pílula que alivia a dor e a ansiedade; estimulados por seu efeito, eles não só aceitam os novos governantes como ficam positivamente felizes de recebê-los.
A segunda imagem é a de “Kitman”, emprestado do livro Religiões e Filósofos da Ásia Central, de Arthur de Gobineau, no qual o viajante francês relata o fenômeno persa das identidades eletivas. Aqueles que internalizaram a maneira de ser chamada Kitman podem viver com as contradições de dizerem uma coisa e acreditarem em outra, adaptando-se livremente a cada nova exigência de seus governantes, ao mesmo tempo que acreditam que preservam em algum lugar dentro de si mesmos a autonomia de um livre-pensador – ou, em todo caso, de um pensador que escolheu livremente subordinar-se a ideias e ditames de outros.
Kitman, nas palavras de Milosz, “traz conforto, estimulando sonhos do que poderia ser, e até a muralha do confinamento proporciona o consolo da fantasia”. Escrever para a gaveta da escrivaninha se torna um sinal de liberdade interior. Pelo menos o público de tal escritor o levaria a sério, se pudesse ler o que ele escrevia:
O temor da indiferença com que o sistema econômico do Ocidente trata seus artistas e estudiosos é uma ideia bem disseminada entre intelectuais do Leste. Eles dizem que é melhor lidar com um demônio inteligente do que com um idiota boa-praça.
Entre Kitman e a Pílula de Murti-Bing, Milosz disseca de forma brilhante o estado mental do companheiro de viagem, do idealista iludido e do cínico lacaio de ocasião. Seu ensaio é mais sutil do que O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, e menos implacavelmente lógico do que O Ópio dos Intelectuais, de Raymond Aron. Lecionei aquele que foi por muitos anos o meu curso predileto, um panorama sobre ensaios e romances da Europa Central e Oriental, que incluíam obras de Milan Kundera, Václav Havel, Ivo Andrić, Heda Kovály, Paul Goma e outros.
Mas comecei a perceber que, enquanto os romances de Kundera e Andrić ou as memórias de Kovály ou de Eugenia Ginzburg continuavam acessíveis aos estudantes americanos, a despeito de suas referências distantes, Mente Cativa muitas vezes esbarrava na incompreensão. Milosz pressupõe em seus leitores uma percepção intuitiva do estado mental do crente: o homem ou a mulher que aderiu com entusiasmo a um sistema que lhe nega a liberdade de expressão, e identificou tal sistema à História. Em 1951, Milosz podia supor de maneira razoável que esse fenômeno – associado ao comunismo, ao fascismo ou, a bem dizer, a qualquer outra forma de repressão política – seria algo familiar.
De fato, quando pela primeira vez dei aulas sobre o livro, na década de 70, eu passava a maior parte do tempo explicando a alunos aspirantes a radicais por que uma “mente cativa” não era uma coisa boa. Trinta anos depois, minha jovem plateia se mostra simplesmente perplexa: por que alguém venderia a alma a qualquer ideia, ainda mais uma ideia repressiva? No início do século XXI, poucos de meus alunos americanos tinham visto alguma vez um marxista. Um engajamento abnegado a uma fé secular era algo fora do alcance de sua imaginação. Quando comecei a lecionar, meu desafio era explicar por que as pessoas se desiludiam com o marxismo; hoje, a barreira insuperável reside em explicar a ilusão em si mesma.
Os estudantes contemporâneos não enxergam nenhum sentido no livro: todo aquele exercício parece uma futilidade. Repressão, sofrimento, ironia e até crença religiosa: isso eles conseguem apreender. Mas autoilusão ideológica? Os leitores póstumos de Milosz parecem, desse modo, os ocidentais e emigrados cuja incompreensão ele define muito bem: “Eles não sabem como se paga – os que estão no exterior não sabem. Ignoram o que se compra e a que preço.”
Talvez sim. Mas existe mais de um tipo de cativeiro. Recordem o transe do tipo Kitman dos intelectuais contagiados, há alguns anos, pelo ímpeto histérico de George W. Bush para a guerra. Poucos deles admitiriam ter alguma admiração pelo presidente, muito menos admitiriam compartilhar sua visão de mundo. Assim, de forma típica, eles se alinharam com o presidente, ao mesmo tempo em que, sem dúvida nenhuma, mantinham reservas em caráter particular. Mais tarde, quando ficou claro que haviam cometido um erro, puseram a culpa na incompetência do governo. Com ressalvas sutis, à maneira de Kitman, eles de fato afirmam orgulhosamente: “Nós tínhamos razão em estarmos errados” – um eco revelador, embora inconsciente, do que diziam os companheiros de viagem franceses: “É melhor estar errado com Sartre do que estar certo com Aron.”
Ainda hoje podemos ouvir ecos veementes da tentativa de reacender a Guerra Fria por meio de uma cruzada contra o “islamofascismo”. Mas o verdadeiro cativeiro mental de nosso tempo se encontra em outra parte. Nossa fé contemporânea no “mercado” segue rigorosamente os passos de seu duplo do século XIX, a crença inquestionável na necessidade, no progresso e na História. Assim como o desafortunado chanceler trabalhista britânico entre 1929 e 1931, Philip Snowden, lavou as mãos diante da Depressão e declarou que não fazia sentido se opor às leis inelutáveis do capitalismo, da mesma forma os líderes europeus de hoje batem em retirada rumo à austeridade orçamentária a fim de apaziguar “os mercados”.
No entanto, “o mercado” – a exemplo do “materialismo dialético” – é apenas uma abstração: a um só tempo ultrarracional (seu argumento abarca tudo) e o cume do irracional (não é algo passível de questionamento). Ele tem seus crentes verdadeiros – pensadores medíocres, em comparação com os pais fundadores, mas não obstante influentes; seus companheiros de viagem – que podem, em particular, pôr em dúvida os postulados do dogma, mas não veem alternativa senão apregoá-lo; e suas vítimas, muitas das quais, nos Estados Unidos em especial, engoliram sua pílula com submissão e proclamam as virtudes de uma doutrina cujos benefícios jamais verão.
Porém, acima de tudo, a melhor maneira de avaliar a escravidão a que uma ideologia submete um povo está na incapacidade coletiva para imaginar alternativas. Sabemos perfeitamente que a fé inabalável em mercados desregulados mata: a aplicação inflexível daquilo que, até recentemente, era o “Consenso de Washington” em países vulneráveis, em desenvolvimento – com sua ênfase numa política fiscal restritiva, privatização, tarifas alfandegárias baixas e desregulamentação –, destruiu a forma de vida e de sustento de milhões de pessoas. Ao mesmo tempo, os rigorosos “termos comerciais” sob os quais produtos farmacêuticos vitais são oferecidos reduziram drasticamente a expectativa de vida em muitos lugares. Mas, na expressão imortal de Margaret Thatcher, “não existe alternativa”.
Exatamente nesses termos que o comunismo era apresentado a seus beneficiários depois da Segunda Guerra Mundial; e uma vez que a História não oferecia nenhuma aparente alternativa a um futuro comunista, muitos dos admiradores de Stálin no exterior foram impelidos para o cativeiro intelectual. Mas quando Milosz publicou Mente Cativa, os intelectuais do Ocidente ainda debatiam a respeito de modelos sociais genuinamente concorrentes – fosse o social-democrata, o mercado social ou variantes do capitalismo liberal com mercado regulamentado. Hoje, a despeito do isolado protesto keynesiano oriundo do baixo clero, reina um consenso.
Para Milosz, “o homem do Leste não pode levar os americanos a sério porque nunca passaram por experiências que ensinam aos homens como seus julgamentos e seus hábitos de pensamento são relativos”. Isso é correto, sem sombra de dúvida, e explica o contínuo ceticismo da Europa Oriental em face da inocência ocidental. Mas não existe nada de inocente na servidão voluntária dos comentaristas ocidentais (e orientais) diante da nova pan-ortodoxia. Muitos deles, à maneira de Kitman, sabem muito bem disso, mas preferem não erguer a cabeça acima do parapeito. Pelo menos nesse sentido eles têm algo verdadeiramente em comum com os intelectuais da era comunista. Cem anos após seu nascimento, 57 anos após a publicação de seu ensaio seminal, a denúncia de Milosz dos círculos intelectuais servis é mais verdadeira do que nunca: “A principal característica desse intelectual é seu medo de pensar por si mesmo.”
* Tradução de Rubens Figueiredo
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