Se a vida é uma onda, ainda estou muito longe da praia, tenho fôlego de sobra pra viver FOTO: ADRIANA LINS
Meu reino por um banho quente
Não ando em bando. Gosto de estar sozinho, sou recatado. Carnaval não é comigo. Minha festa é no palco
Ney Matogrosso | Edição 20, Maio 2008
Outro dia procurei Bela Vista no Google Earth e não encontrei. A cidade onde eu nasci não está no mapa. Achei o rio Apa, que divide a cidade, mas Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, não tem. Eu saí de lá bem pequeno. Meu pai era oficial da Aeronáutica e vivíamos nos mudando de cidade. Minha lembrança mais remota sou eu montado em cima de um jabuti. Eu tinha uns 3 anos e ficava passeando em cima dele, que era imenso. O jabuti foi meu primeiro velocípede.
Quando era criança, eu dizia que ia ser cantor. Depois deixei isso de lado. Os meninos mexiam comigo, porque eu falava muito fininho. Eu achava que isso era um defeito, e me esqueci que queria ser cantor.
Tinha 15 anos quando fui à fazenda do meu avô. Como nunca tinha participado de caçada, fui a uma com um grupo. No mato, um bando de macacos passou perto de nós. Os homens viraram bichos, atiraram nos macacos para treinar pontaria, só por gosto. Vi uma fêmea agitando os braços, como se dissesse “não façam isso!” e eles atiravam sem parar. Mataram as mães, os filhotes caíram no chão, e eles atiravam nos filhotes. Entendi do que o homem é capaz. Se tivesse que escolher entre o bem-estar do planeta e o da humanidade, eu ficaria com o planeta.
Sempre soube que eu era artista, mas não sabia o que ia ser. Vivia em conflito porque meu pai era militar e não queria saber de filho artista. Fiz teatro escondido no colégio.
Passei dois anos na Aeronáutica. Disciplina eu já tinha, porque meu pai me obrigava a ser disciplinado em tudo, e hoje agradeço por ele ter me criado assim. No quartel, fui obrigado a viver num mundo masculino. Impus os meus limites, mas os colegas queriam extrapolar, passar a mão na bunda. Tive que sair na porrada três vezes, coisa que eu nunca tinha feito antes.
Eu tinha horror a homossexuais, era um fantasma que me assombrava. O dormitório do quartel ficava fora do prédio principal. Numa noite quente, sem conseguir dormir por causa do calor, saí para uma varanda. Ali, vi dois remadores do quartel, homens másculos, abraçados. Um estava sentado na mureta e o outro, em pé, encaixados num abraço que ia muito além de sexo. Tinha um amor ali. Era como se eles estivessem dentro de uma bolha, desligados do mundo. Vislumbrei o que eu temia. Pensava que um homem tinha que virar mulherzinha para namorar outro homem, e esse era o meu pavor. Quando vi dois homens fortes completamente entregues um ao outro, tive um choque. Me comovi com a verdade daquele amor, mas fiquei profundamente incomodado. Talvez ali eu tenha admitido a possibilidade de um outro caminho. Quando me lembrava dessa cena, pensava: nunca vou fazer só por fazer; vou fazer com quem eu encontre a possibilidade daquele amor.
Trabalhei com recreação de crianças terminais que sofriam de câncer. Foi o único trabalho careta de que gostei na vida. Eu era o brinquedo delas, cantava para elas. Elas montavam em mim, fazíamos teatro, pintura, desenho. Num dia, uma criança estava brincando comigo e, no dia seguinte, ela não estava mais. Eu tive a noção do irreversível, da passagem do tempo, da finitude. Ali conheci a morte de perto. Muito depois, meu grande amor morreu nos meus braços. Eu lhe dizia: “Por favor, vai. Não se esforce mais.”
Quando não tinha onde cair morto, aprendi de tudo. Sei costurar e cozinhar. Uma vez, fiz uma calça para mim. Peguei um jeans bem velho, descosturei ele todo e usei como molde. Comprei um pano, cortei e costurei à mão. Me orgulho de saber me virar. Se estourasse uma bomba e destruísse tudo, a única coisa construída pelo homem de que eu sentiria falta é um banho quente.
Não gosto de televisão, de microondas, de celular, nem de internet. Um dia desses, meu telefone estava em cima de uma televisão, e quando tocou, a televisão saiu do ar. Pensei: se faz isso com a televisão, o que fará com o meu cérebro?
O silêncio me alimenta a criatividade. Eu fico aberto e as idéias chegam. Não ando em bando. Gosto de estar sozinho, sou recatado. Carnaval não é comigo. Minha festa é no palco.
Tomei o Daime durante um ano e meio. Me serviu como um canal de autoconhecimento. Esse ano e meio me valeu mais do que dez anos de terapia.
Se a vida é uma onda, ainda estou longe da praia, tenho muito fôlego para viver. Um dia eu vi um velhinho aqui na esquina de casa. Ele tinha uns 80 anos e estava só de sunga e tênis. Era todo enrugadinho, mas tinha um tônus muscular incrível. Eu estava em casa largado no sofá, reclamando de dor no corpo, mas a partir desse dia resolvi me mexer. Comecei a fazer musculação e alongamento, e nunca mais parei.
Já me pediram muito para ser porta-estandarte de movimentos gays, mas sempre me recusei. Sou um defensor das liberdades, mas entendo que esse movimento é muito levado pela febre do consumo. É justamente disso que se trata: de dinheiro. É uma indústria que tem um ótimo consumidor. Essa onda gay não é um avanço humano, é um avanço de mercado. E não quero ser estandarte de nada. Eu quero é ter liberdade.
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