1. PINTURA A FOGO_1962_©YVES KLEIN, ADAGP, PARIS 2. PINTURA A FOGO_1961_©YVES KLEIN, ADAGP, PARIS
Minha pátria está morta
Vivo em minha mátria, a palavra
Rose Ausländer | Edição 37, Outubro 2009
Rose Ausländer nasceu em 1901, em Czernowitz, capital da Bucovina, então integrante do Império Austro-Húngaro, falecendo, aos 88 anos, em Düsseldorf, na Alemanha. Sua história foi marcada pela experiência do gueto e do holocausto, por sucessivos exílios e pela perda definitiva da pátria – Czernowitz e a parte norte da Bucovina foram incorporadas à União Soviética em 1946.
No fim da guerra, retornou à Nova York, onde já vivera na década de 1920. Um ano depois, recebeu a notícia da morte de sua mãe. Ao retornar à poesia, após um longo período de trauma, escreve apenas em inglês. Só volta a escrever em alemão dez anos depois estimulada por Marianne Moore.
Com este retorno ao idioma alemão ocorre uma virada estilística. O modo tradicional de composição – com versos rimados e metrificados até então – dá lugar a poemas nos quais se percebe a influência de poetas como Marianne Moore, E. E. Cummings, William Carlos Williams e Wallace Stevens. Decisivo para a virada foi também o poeta Paul Celan, que ela conhecera em Czernowitz. É no domínio desse idioma renovado que Rose Ausländer tentará achar o caminho para a pátria e a mãe perdidas (moro em minha mátria / a palavra). Em alguns poemas, ela sempre está, a exemplo de seus antepassados, a caminho, sem qualquer garantia de que não chegará tarde demais, como em “Passado o Carnaval”. Em outros, ela se identifica ora com personagens bíblicos alijados da pátria (como em “Réptil”), ora com aqueles que precisam salvar a vida com “palavras argutas” (“Pelos quatro ventos”). Outros poemas sugerem (como “Novo dia nova noite”) a evasão para o mundo da infância, um mundo cuja lógica tem, em toda sua obra, uma afinidade essencial com a lógica da própria poesia.
SIMONE BRANTES
TERRA MÁTRIA
Minha pátria está morta
eles a sepultaram
no fogo
Vivo em minha mátria
a palavra.
PASSADO O CARNAVAL
Passado o Carnaval vinham os dias magros
com pão ázimo e erva amarga
me vinha a fome da polpa de figo
me vinha a sede das laranjas
Com uma caravana eu seguia
pelo deserto à cata de tâmaras
A areia cravava-me no pescoço
o dorso do camelo
era meu país
As horas eram fornalhas ao redor da fronte
as constelações do Cruzeiro e de Escorpião
Pela manhã a Fata Morgana
florescia vermelha no horizonte
sem aproximar-se jamais
Por uma só vez um oásis nos acolheu
a água cheirava a fogo lua e papoula
figos e tâmaras já estavam secos demais
AR
Sobre quantas asas
repousa o ar.
Pairar é penoso
o alto
não tem chão.
Miragem
um sonho na areia.
Nós plantamos palavras
no campo do ar
vamos
de palavra em palavra.
Em quantas asas
repousamos
seguindo adiante.
NOVO DIA NOVA NOITE
Chega
um novo dia
uma nova noite
Viajamos em navios
feitos de sonhos
para o dia
para a noite
Gritamos
olá querida lua
bom dia querido sol
boa noite querida noite
Presenteai-me com
vossos contos
de fada verdadeiros
Presenteai-me
com um novo dia
com uma nova noite.
AMOR IV
Duas nuvens
se abraçam
logo irão
nos abraçar
Na floresta
um berço cresce
chamariz e resposta
As duas pombas
no átrio do templo
celebram bodas
O anel
encontrou um dedo
que não o deixa mais
Sob o baldaquim
o véu tem a
figura
de um melro
ele canta nos
lábios da noiva
As rosas colocam
seus punhais para dormir.
AINDA ESTÁS AQUI
Atira tua angústia
no ar
Num átimo
teu tempo passa
num átimo
o céu cresce
sob o gramado
caem teus sonhos
nenhures
Ainda
recende o cravo
canta o tordo
ainda tens o direito de amar
ofertar palavras
ainda estás aqui
Sê o que és
Oferece o que tens
PELOS QUATRO VENTOS
Um dia fui
Sherazade
salvei minha vida
com palavras argutas
Hoje
não dirijo minhas palavras
a nenhum califa
eu as confio ao
meu espelho
ele as irradia
pelos quatro ventos.
CÍRCULOS
Outra vez um ano feito anel
surge na árvore
que se mantém quieta
e sem disso ter idéia
faz um círculo
com a terra
Também as criaturas
não percebem que circulam
e que os anos as cercam
em denso respirar
como a árvore.
RÉPTIL
O tempo um réptil
me devorou
Não digerida eu fico
em seu corpo comprido
meio morta meio viva
Isso eu sonhei
quando dividi o cárcere
com José
Os dias magros jazem em
meu estômago
José está morto
Seu trigo armazenado
derrama-se
no Mar Morto
OS FORASTEIROS
Trens trazem os forasteiros
que desembarcam
e olham atordoados
Nos seus olhos nadam
angustiados peixes
Eles portam narizes estranhos
tristes lábios
Ninguém veio apanhá-los.
Eles esperam pelo crepúsculo
que não faz qualquer diferença
então têm permissão
para visitar seus parentes
na Via-Láctea
nos vales da lua
Um toca gaita –
melodias incomuns.
Uma outra escala
mora no instrumento
uma inaudível seqüência
de solidões.
LÍNGUA MÁTRIA
Eu fui em mim
tornando-me
de instante em instante
feita em pedaços
no caminho da palavra
Língua mátria
reúna minhas partes
mosaico humano