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Miriam
Miriam, a mulher com um problema na garganta
Rubem Fonseca | Edição 1, Outubro 2006
O banco onde eu trabalhava fazia anualmente um exame médico para verificar o estado de saúde dos seus empregados mais graduados. Era um exame completo, sangue, urina, fezes, radiografias, exame de vista, ginecológico – no caso das mulheres, como eu -, otorrinolaringológico etc.
Quando o otorrino me examinava, eu lhe disse que sentia como se tivesse um corpo estranho na garganta.
“Sinto quando engulo alguma coisa”, expliquei. “Eu até ia lhe fazer uma consulta, mas ando tão ocupada que acabava sempre transferindo de um dia para o outro.”
Eu já conhecia o médico, doutor Lipton. Ele me examinara em outras ocasiões. Era tido como profissional competente.
Depois de examinar cuidadosamente a minha garganta usando um espelhinho na ponta de uma haste, ele disse, “a senhora não tem nada na garganta, dona Miriam”.
“Mas eu sinto, doutor Lipton, sempre que engulo alguma coisa, até saliva.”
Engoli saliva e senti a presença do corpo estranho. Não era dor, era como se algo me fizesse perceber que eu tinha garganta. A gente nunca sente que tem coração, fígado, pâncreas e outros órgãos que funcionam dentro da gente, sabemos que eles existem mas não tomamos conhecimento deles a não ser que ocorra alguma anormalidade. O mesmo acontece com a garganta. Eu estava sentindo que tinha garganta.
“Pode ser psicológico, dona Miriam. Às vezes uma pessoa estressada e nervosa tem sintomas que são puramente psicológicos. A senhora mesma acaba de dizer que tem andado muito ocupada, sem tempo de ir fazer uma consulta médica.”
“Eu disse que andava muito ocupada, não disse que andava nervosa.”
“O seu trabalho no setor de empréstimos pessoais deve ser muito estressante. Negar empréstimos a pessoas que precisam deve ser algo que mexe com os nervos de quem nega. Eu ficaria muito nervoso.”
“Mas eu não fico, recuso os empréstimos sempre que há risco de a pessoa não pagar.”
“Mas isso deve deixar a senhora nervosa. Inconscientemente.”
“O senhor quer saber mais do que eu? Eu não estou nervosa. Eu sei o que estou sentindo. Um corpo estranho na garganta. Puxa vida!”
“A senhora não precisa se aborrecer. Isso vai deixá-la ainda mais nervosa.”
“Eu não estou nervosa, eu sei o que estou sentindo, um corpo estranho na garganta, que merda.”
Eu disse essa frase aos gritos.
O doutor Lipton tirou os óculos, limpou-os num papel especial que apanhou sobre a mesa e disse, delicadamente, “está vendo como a senhora está nervosa?”
Suspirei. “Desculpe, doutor Lipton”, engoli, engoli, “mas eu estou sentindo um corpo estranho na garganta”, engoli, engoli, “tenho certeza de que não é produto fictício de uma mente estressada. Eu faço esse trabalho há vários anos, como o senhor sabe.”
“Hum…”, ele disse.
Ficamos em silêncio, eu engolindo saliva e sentindo a presença do corpo estranho.
“Vamos fazer o seguinte”, disse o doutor Lipton escrevendo no seu bloco de receitas, ” a senhora vai procurar este especialista, diga que fui eu que a recomendei, e fale a ele dos sintomas que está sentindo.”
Peguei a receita, agradeci e voltei para a agência.
Claro que recusei quase todos os pedidos de empréstimos, pessoa física quando pede dinheiro emprestado ao banco está mesmo em má situação, quase sempre não vai poder pagar e o meu trabalho é, nesses casos, negar a concessão de empréstimos. Não me emociono mais com o choro das mulheres e de alguns homens, nem me comovo com exortações como “eu preciso desse dinheiro, pelo amor de Deus, meus filhos estão morrendo de fome, eu vou me matar” etc. Alguns ameaçam se matar na porta do banco segurando um cartaz no peito com os dizeres “dona Miriam me matou”, mas até hoje ninguém fez isso. Esses pobres-diabos têm que aprender a viver dentro das suas posses, mas não, eles querem ter DVD, telefone celular, máquina fotográfica digital, máquina de lavar roupa, máquina de lavar pratos, freezer, e querem comer churrasco todo fim de semana. Quem não tem dinheiro tem que se contentar com a novela das oito e apertar o cinto.
Afinal pude ir ao tal especialista, que se chamava doutor Romênio. Diziam que ele era um bambambã e ele tinha cara e consultório de bambambã. Demorou uma hora para me atender.
Afinal fui chamada para ser examinada pelo doutor Romênio. Contei para ele que sempre que engolia algo, até mesmo saliva, sentia um corpo estranho na garganta.
“Vamos ver”, disse ele, com o espelhinho na mão. Mandou que eu abrisse bem a boca.
Depois de me examinar durante dez minutos ele disse, “a senhora não tem nada na garganta”.
“Como que eu não tenho nada na garganta? Estou sentindo, eu conheço o funcionamento do meu corpo,” eu disse, sem esconder a minha irritação.
“E o funcionamento da sua mente, a senhora conhece?”, ele perguntou irônico.
“Que merda, não vai também me dizer que eu estou nervosa. Foi o doutor Lipton quem lhe disse que eu estou nervosa, não foi?”
“Não, senhora. Não era preciso que ninguém dissesse isso para mim, estou constatando com os meus próprios olhos.”
“Está bem, doutor Romênio, aceito, eu estou nervosa. Mas sinto um corpo estranho na minha garganta”, engoli, engoli, “eu estou sentindo, por favor, faça outro exame.”
“Está bem”, disse ele com um suspiro, “mas a senhora terá que ser anestesiada para esse exame que eu vou fazer. É uma coisa desagradável e inútil, mas se a senhora insiste…”
O doutor Romênio anestesiou a minha garganta. Depois pediu à enfermeira, uma mulher grande, de braços grossos, que agarrasse a minha língua e a puxasse para fora.
“Mais, mais, dona Assunta.”
Eu já via a minha língua a um palmo de distância, agarrada pelas mãos da dona Assunta.
“Mais, mais, dona Assunta.”
Nunca pensei que a gente tivesse uma língua tão comprida.
Então o doutor Romênio enfiou um tubo na minha garganta com uma luz na ponta e olhou demoradamente.
“A senhora tem mesmo um corpo estranho na garganta, bem no fundo, difícil de ser visto num exame de rotina. É um cisto. Vamos ter que observá-lo periodicamente, mas é benigno, posso lhe assegurar desde já.”
Minha garganta doía. Eu não tinha vontade de falar, nem mesmo jubilosamente, “eu não disse, eu não disse?”.
“Vou enviar o exame para o doutor Lipton.”
No dia seguinte examinei dez pedidos de financiamento. Recusei todos. A choldra tem que aprender a viver dentro dos seus recursos. Eu não tenho câmera fotográfica digital nem máquina de lavar pratos. Nem freezer.
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