ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
A morte e a morte de Joaquim Levy
Ministro ameaçou sair e escreveu duas cartas de demissão, nunca entregues. Queria mesmo era ficar
Malu Gaspar | Edição 111, Dezembro 2015
Passava das quatro da tarde da sexta-feira, dia 16 de outubro, quando o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, percorreu, ao lado da presidente Dilma Rousseff, os corredores que conduzem à sala onde se reuniria a junta orçamentária do governo. Como Dilma não o convidara para um tête-à-tête prévio, aqueles minutos seriam os únicos que ele teria a sós com ela. O ministro da Casa Civil, Jaques Wagner, já os esperava. O último componente da junta, Nelson Barbosa, titular do Planejamento, ainda não havia chegado.
Junto à presidente, falando em seu tom de voz habitualmente baixo e pronunciando as palavras como que de boca fechada, Levy expressou duas queixas. A primeira: sentia-se sozinho e isolado, era o único no governo a defender a volta da CPMF, o imposto do cheque, que considerava essencial para aliviar o buraco nas contas públicas. A segunda: “O tiroteio está pesado demais, presidente.” Na antevéspera, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fizera na Central Única dos Trabalhadores um discurso contundente contra o ajuste fiscal, saudado pelos sindicalistas com gritos de “Fora, Levy”.
Em apenas nove meses no cargo, o ministro passara de todo-poderoso a sobrevivente. Seu estoque de credibilidade derretera ao longo de sucessivas crises com colegas de ministério e partidos da base aliada – que, nos momentos mais agudos, o levaram a escrever duas cartas de demissão. Levy, porém, resistia. Encerrando o papo e já entrando na sala de reuniões, Dilma apenas disse: “Calma, Levy, calma. Nós vamos resolver isso. Eu vou defender a CPMF.”
Apesar de o local, o tom e a rapidez da conversa sugerirem improvisação, não havia nada ali que fosse meramente casual. Poucos minutos antes de o ministro da Fazenda deixar seu gabinete rumo àquele encontro, duas colunas de notas online publicaram que Levy oficializaria sua demissão durante o evento. Divulgada já no final da tarde, a notícia alvoroçara Brasília e os operadores da Bolsa. O ministro, afinal, não entregou carta nenhuma à chefe. No domingo seguinte, em viagem oficial à Suécia, a presidente garantiu que ele estava firme. A assessoria de imprensa do ministro nega até hoje a existência de tal documento.
O documento existiu, sim. E não era o primeiro. A carta que Levy não entregou a Dilma dormitava desde o final de setembro na caixa de e-mail do ministro e de pelo menos outros dois interlocutores muito próximos a ele, que o ajudaram na revisão do texto. A mensagem, curta – não preenchia uma página –, repetia basicamente o que o economista concluíra em longos papos com amigos: a missão de formular e apresentar as medidas do ajuste fiscal ao Congresso estava finalizada. Naquele momento, ainda em meados de setembro, Levy julgava ter atingido o limite da paciência ao tomar conhecimento de que o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, prometera a aliados o comando de dois órgãos subordinados à Fazenda: a Casa da Moeda, apalavrada ao PTB, e a presidência do Banco da Amazônia, o Basa, que caberia a um apadrinhado do senador Omar Aziz, do PSD. As nomeações, segundo Mercadante, visavam garantir a governabilidade. Mas Levy se recusava a fazê-las. Três amigos que conversaram com ele na ocasião repetiram à piauí a mesma frase, ouvida em diferentes momentos: “Não vou emprestar meu CPF para esse tipo de coisa.”
O episódio fizera o ministro passar o terceiro final de semana de setembro ruminando os prós e os contras de sair do governo. Quando desembarcou em Brasília, optara pelos prós. Dois dias depois, com a carta prestes a ser impressa, já não estava tão certo. Ventilou que aguardaria o retorno de Dilma, então em Nova York, onde faria o discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU em 28 de setembro. “Vou esperar ela voltar, e aí, na primeira sacaneada que me derem, eu entrego.” Para os mais chegados, aquela ponderação significava que ele não pretendia, de fato, desocupar a Esplanada dos Ministérios.
Em Brasília, as crises envolvendo Levy se tornaram tão corriqueiras que originaram uma anedota, o seriado Levy. A ação se desenrolaria em temporadas que seguem sempre o mesmo roteiro: na primeira parte, os jornalistas – sobretudo os das colunas de notas – são informados de que o ministro está incomodado; na segunda, o noticiário divulga que “Levy está enfraquecido”; na derradeira, a presidente emite um sinal de apoio às medidas defendidas pelo ministro, que então se torna “o empoderado”. Logo depois o titular da Fazenda se aborrece outra vez e tem início outra temporada.
Na origem da dinâmica de Dilma Rousseff e Joaquim Levy estão diferenças profundas. Tanto que um dos amigos do ministro, Armínio Fraga, principal formulador do programa econômico do candidato tucano, Aécio Neves, certa feita o descreveu como um quadro da CIA dirigindo a KGB. “Não é que eles pensem diferente. Eles são diferentes. É outra turma. Levy não tem nada a ver com esse governo”, disse Fraga, no início de novembro. Ele foi um dos amigos que Levy consultou ao receber o convite da presidente da República. Aconselhou-o a declinar. Da mesma opinião compartilhava o economista Marcos Lisboa, secretário de Política Econômica do primeiro governo Lula na época em que Levy era secretário do Tesouro, na gestão de Antonio Palocci. “Meu diagnóstico sempre foi que o rombo nas contas públicas só não aumentaria se fossem feitas reformas estruturais, que dependem de um esforço conjunto de todo o governo e de uma aliança com o Congresso. Apenas trocar o ministro da Fazenda não seria suficiente”, lembrou Lisboa.
Levy assumiu a pasta no comecinho de janeiro. Num primeiro momento, procurando controlar a agenda econômica no Legislativo, passou a negociar diretamente com deputados e senadores a votação de medidas do ajuste fiscal, nem sempre com bons resultados. Perdeu várias disputas internas no governo e algumas votações no Congresso. A cada derrota, parecia mais fragilizado diante de uma gestão que hesitava em cortar mais gastos, e ainda mais sujeito às admoestações dos petistas, que nunca engoliram seu nome. A antipatia é mútua. Levy só se refere ao PT como “aquela agremiação”, “os colegas do PT” ou “os companheiros”.
Até o final de agosto, porém, nenhum percalço fora forte o bastante para abalar a confiança do mercado no poder de Levy. E aí teve início a discussão sobre o orçamento da União para 2016. Por lei, o governo deve apresentar ao Congresso suas previsões de despesa e receita para o ano seguinte até o dia 31 de agosto. Já se sabia, então, que a previsão de superávit nas contas públicas fora reduzida para 0,7% do PIB – já bem abaixo da meta anunciada no início do ano, quando se programava uma economia de 2% do PIB para 2016. A arrecadação, porém, continuava ladeira abaixo, bem mais rápida e mais abaixo do que qualquer membro da equipe econômica se arriscara a prever. Secretamente, os ministros que elaboravam o orçamento da União – Fazenda, Planejamento e Casa Civil – começaram a cogitar a volta da CPMF, que poderia render cerca de 68 bilhões de reais aos cofres federais.
Com a aproximação do prazo máximo para a entrega do orçamento, todos já haviam concluído que as contas não fechariam sem a receita do imposto do cheque – o Executivo seria obrigado a enviar ao Parlamento um orçamento com déficit, algo inédito na história do Brasil. Só que o possível retorno do imposto vazou antes da hora, e sua divulgação produziu reações violentas. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que vinha ameaçando abrir um processo de impeachment, foi um dos mais explícitos. “Acho que com a nova CPMF o governo pode unir o PMDB novamente. Todos contra: eu, Michel Temer e Renan Calheiros.” Barbosa, do Planejamento, e Aloizio Mercadante, então na Casa Civil, passaram a defender o orçamento com déficit, argumentando que não havia mais como cortar gastos, já que muitas das despesas do governo são determinadas por lei.
O ministro da Fazenda – em viagem a Washington – era contra. Em reuniões por teleconferência que se estendiam por mais de cinco horas, defendia o aperto do cinto, alegando que o “orçamento negativo” faria o Brasil perder o selo de bom pagador na classificação das agências de risco internacionais. Dilma, assombrada pelo impeachment, tendia a acatar o arrazoado de Barbosa e Mercadante.
Levy voltou a Brasília no meio da semana. Só que, em 29 de agosto, dois dias antes do envio do orçamento ao Congresso, ele foi a Campos do Jordão participar de uma conferência da Bolsa de Valores. Na última hora, porém, a presidente marcou uma reunião para aquele mesmo sábado, com o intuito de bater o martelo em torno do orçamento. Entre o ministro da Fazenda se desvencilhar do compromisso e chegar à capital federal, de noite, Dilma já arbitrara a questão a favor do que ficou conhecido como “orçamento negativo”.
Além de ter perdido a batalha, Levy ainda deu gás à intriga dos que, dentro do governo, o pintavam como um auxiliar ausente e mimado, do tipo que se recusa a encampar posições alheias quando perde um round. Na segunda-feira em que seria divulgado o novo orçamento, Levy tinha outro seminário, dessa vez em São Paulo. Mas a presidente lhe disse para não arredar pé de Brasília e comparecer à entrevista coletiva. Um Levy emburrado surgiu diante dos jornalistas, ladeado por um Nelson Barbosa falante e animado.
Foi então que o ministro da Fazenda escreveu a primeira carta de demissão. Um texto enfático, inspirado por uma citação de Abraham Lincoln que ele vivia repetindo naqueles dias: “Pode-se enganar a todos por algum tempo. Pode-se enganar a alguns por todo o tempo. Mas não se pode enganar a todos todo o tempo.” Assessores revisaram a mensagem, conferindo-lhe um tom mais eufemístico e menos rancoroso. E a carta foi mantida no bolso do colete, para o caso de a situação se deteriorar demais. Assim como a carta que ele escreveria mais tarde, a primeira até hoje não saiu da caixa de e-mails de Levy e de dois de seus aliados mais próximos no Ministério. Mas, à diferença do que ocorreria em outubro, a existência daquele primeiro documento não chegou às manchetes. O que veio a público foi a informação de que Levy cogitava deixar o governo.
Rápida no gatilho, a presidente se pronunciou a favor do ministro. Ele entendeu que permaneceria no cargo, mas ainda não se considerava suficientemente fortalecido. Marcou um jantar em São Paulo com os maiores empresários do país, aos quais deixou claro que, com tamanho rombo nas contas, o país perderia o selo de bom pagador. A consternação foi geral, a ponto de um deles telefonar para a presidente já bem depois das onze da noite, na frente do ministro, para pedir um compromisso público do governo com a austeridade nos gastos. Uma semana depois, a Standard & Poors realmente rebaixou o Brasil em seu ranking. Dilma e alguns auxiliares deram declarações enfáticas de apoio ao ajuste fiscal. Levy sentiu-se novamente fortalecido. Mas só até o início da crise seguinte.
Se cada temporada do seriado Levy tivesse um título, a última poderia ser batizada de Lula Contra-Ataca. O ex-presidente, que já vinha dizendo que o prazo de validade do ministro vencera, no início de novembro botou fogo na campanha pela substituição de Levy pelo ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles – alguém que, segundo Lula, poderia fazer o Brasil vislumbrar “um futuro”. A mensagem foi ecoada por outros ministros e líderes petistas. Por um tempo, Dilma deixou que falassem. Pela primeira vez, Levy achou que poderia, de fato, ser destronado. E passou a sondar os aliados mais próximos da presidente, buscando saber se ela também o considerava “vencido”. Aconselharam-no a esperar quieto, até que Dilma viesse socorrê-lo. Foi uma longa semana até que o “Levy enfraquecido” fosse substituído pelo “Levy empoderado”.
“Acho extremamente nocivas e negativas para o país as especulações que, vira e mexe, são feitas quanto ao ministro, que me obrigam também de forma sistemática a vir a público reforçar que o ministro fica onde está”, disse a presidente da República, encerrando o último capítulo da última temporada da série Levy. O ministro garantiu-se por mais algum tempo. Dessa vez, não se falou em carta de demissão.