CRÉDITO: CARLA CAFFÉ_2021
Morte súbita
O crime não compensa em Minas Gerais
Nina Rocha | Edição 182, Novembro 2021
O domingo ainda despertava quando Ademir Carlos da Silva chegou à Padaria e Confeitaria Vovó Gilda. Ele costuma madrugar, de segunda a segunda, para acompanhar o preparo dos bolos, pães, biscoitos e doces vendidos no pequeno estabelecimento comercial, que fica num bairro periférico de Belo Horizonte, o Tupi B. O comerciante e o irmão mais velho, Arlindo José, são os donos do negócio.
A padaria abre religiosamente às seis da manhã. Para que estejam prontos nesse horário, os pães precisam entrar no forno antes das cinco. Os domingos, em geral, têm pouco movimento. Mesmo assim, Silva não ousa alterar seus hábitos profissionais e enxerga os fins de semana como dias úteis. Naquele 10 de outubro, porém, a rotina decidiu se rebelar e pregou uma peça no comerciante.
Logo depois de iniciar o expediente, Silva notou que um rapaz desconhecido estacionava uma motocicleta cinza em frente à padaria. O jovem branco e alto, de bermuda e chinelo, saltou do veículo e, enquanto se dirigia ao balcão, deixou cair uma faca. Ele se agachou sem demonstrar qualquer constrangimento, recolheu a arma e continuou andando. Era um assalto.
Àquela altura, havia menos de 100 reais no caixa. “Quando entreguei o dinheiro para o cara, rolou um troço muito esquisito”, recorda o comerciante. O rapaz de 24 anos, Cláudio Vitor Soares da Rocha, começou a tremer como quem sofre uma convulsão e desmoronou no piso branco de cerâmica, entre a prateleira de achocolatados e o freezer. Perdeu a consciência rapidamente. Boquiaberto, Silva chamou a Polícia Militar, que apareceu em menos de dez minutos.
O assaltante foi para o Hospital Risoleta Tolentino Neves, onde os médicos se esforçaram para reanimá-lo por quase meia hora. Às 7h20, o jovem teve uma parada cardiorrespiratória e morreu. Nem a PM nem o hospital forneceram mais informações sobre o morto. Silva tampouco se empenhou para obtê-las. Preferiu esquecer o assunto e seguir trabalhando pelo resto do domingo. “Não podia deixar meus fregueses na mão.”
Algo incomum parecia estar ocorrendo em Minas. Na manhã do dia 16 de setembro, uma quinta-feira abafada, Raimundo Nonato Sousa Carvalho zanzava perto da aldeia xakriabá de Vargem Grande, em Itacarambi, município com apenas 18,1 mil habitantes. Ele carregava um revólver. Mal avistou uma moto cinza que trafegava em alta velocidade, apontou a arma para o motociclista e disparou. O tiro não atingiu o alvo, mas obrigou a vítima a parar, assustada. Carvalho, então, lhe roubou a moto, um celular e 400 reais. Antes de partir, garantiu que abandonaria o veículo logo à frente.
O motociclista caminhou até outro povoado indígena, o de Sumaré, que se localiza em São João das Missões, cidadezinha próxima de Itacarambi. Lá avisou a Polícia Militar. Assim que tomou conhecimento da história, a população do vilarejo resolveu procurar a moto. Acontece que, ao se livrar dela, Carvalho acabou deixando para trás uma mochila com roupas e um retrato 3×4 dele mesmo. A foto possibilitou que os policiais o identificassem.
A primavera no Norte de Minas é muito seca e quente. Naquela quinta, os termômetros marcavam 38ºC, e a umidade relativa do ar beirava os 20%. O criminoso de 54 anos se esgueirou pelas matas durante oito horas, sempre com a PM em seu encalço. Às tantas, já não podia sustentar o próprio corpo. Sedento, exausto e cambaleante, apostou na solidariedade local e pediu água em algumas casas. A ideia não se revelou das melhores: os moradores sabiam do assalto e se mobilizaram para impedir que o ladrão escapasse.
Quando finalmente recebeu voz de prisão, Carvalho – suspeito de mais três roubos e dois homicídios – despencou no chão. Estava tão debilitado que não conseguiu se levantar. Os policiais e umas poucas testemunhas o socorreram, mas não adiantou. O criminoso teve um infarto e morreu.
No primeiro sábado de junho, havia acontecido a mesma coisa. Com o intuito de jejuar e orar, cinco evangélicos acampavam num monte em Ribeirão das Neves, município da Grande Belo Horizonte. À tardinha, o grupo foi surpreendido por dois jovens. Um deles exibia uma pistola que, na verdade, não passava de uma réplica, como os religiosos constataram depois. A dupla ordenou que as vítimas se deitassem e entregassem os celulares.
“Eles gritavam: ‘Perdeu, perdeu! A gente só quer os telefones’”, lembra Thiago Souza do Carmo, pastor da Igreja Ministerial Deus É Bom. O religioso conta que, durante a investida, repreendeu o ladrão armado. “Estendi o braço e falei: ‘Jovem, não faça isso! Jesus te ama! Você vai roubar cinco homens de Deus?’” Nesse instante, ainda de acordo com o pastor, o criminoso de 23 anos revirou os olhos e tombou de costas.
O outro ladrão pegou um facão no acampamento e tentou continuar o assalto, mas desistiu, já que o religioso não cessava de invocar o nome de Cristo. “Eu te perdoo. Some daqui”, rogou o pastor tão logo o rapaz interrompeu a ação. Carmo o abraçou, lhe ofereceu “uns 18 reais” e o aconselhou a pegar um ônibus. “Em seguida, os irmãos e eu apalpamos o peito do moço caído, mas não sentimos batimento cardíaco nenhum. Observamos a veia do pescoço dele e nada. O coitado estava morto. O poder de Deus o derrubou. Quando ligamos para a PM, acharam que era trote.” Os policiais disseram que o assaltante armado se chamava Luiz Felipe de Sales e já havia cometido outros delitos. O atestado de óbito não especificou a causa mortis, embora tenha concluído que o corpo não apresentava sinais de violência.
Com ou sem oração, parece que o crime não compensa em Minas.
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