A Osesp após concerto regido por Thierry Fischer em 5 de março passado, na véspera do novo fechamento da Sala São Paulo: para muitos, a orquestra encarna ideais de vida comunitária que parecem cada vez menos reais CREDITO: ARTHUR NESTROVSKI_2021
Música acima de tudo, Beethoven acima de todos
Como a maior orquestra do país sobrevive à pandemia
Arthur Nestrovski | Edição 175, Abril 2021
Eram sete e pouco da manhã quando li a mensagem do pianista Aleyson Scopel, enviada sete horas antes. Ele suspeitava que estivesse infectado pela Covid-19 e me avisava que iria fazer um teste em breve. O seu primeiro ensaio seria no dia seguinte, 27 de janeiro, quarta-feira. Na manhã de quinta haveria o ensaio geral com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, e à noite, a primeira de duas apresentações na Sala São Paulo. Enviei a ele uma mensagem de apoio. Disse que estava torcendo para que seu exame desse negativo, mas já comecei a pensar em possíveis nomes para substituí-lo, enquanto tomava café.
Antes das 9 horas chegou outra mensagem, acompanhada da foto do laudo médico. “Infelizmente não tenho boas notícias”, dizia Scopel. “Meu teste rápido acaba de dar positivo para IgM.” O laudo explicava o que era IgM, como se fosse preciso: “Significa infecção ativa (recente) pelo coronavírus.”
Era a segunda vez que teríamos de substituir um solista para o Concerto para Piano Nº 2, de Shostakovich, mas agora num tempo recorde. Desde o início da pandemia, em meados de março de 2020, tínhamos feito incontáveis mudanças de solista, regente e programa, mas nunca nesse aperto. O repertório também não ajudava: o Nº 2 não é exatamente uma peça que todo pianista tem nos dedos.
No programa da Osesp divulgado em novembro, o solista era Boris Giltburg, israelense nascido na Rússia. Mas em fins de dezembro ele não pôde embarcar para São Paulo, porque a Holanda, onde vive (em Haia), proibiu todos os voos para e da América do Sul, reagindo ao aumento descontrolado de casos da doença no continente.
Foi quando pensei em Aleyson Scopel, jovem pianista capixaba (radicado no Rio) que estivera na Sala São Paulo havia pouco, num festival de sonatas de Beethoven. Uma rápida consulta ao site do artista confirmou minha lembrança de que o Concerto para Piano N° 2 fazia parte do seu repertório. Na nossa conversa por telefone, um dia depois do Natal, Aleyson vacilou, já que não tocava essa peça havia muito tempo. Nada, como nós dois sabíamos, que dez horas de piano por dia, durante dez dias, não resolvessem. A vontade de tocar venceu o vacilo, e a substituição de Giltburg foi resolvida – até que a Covid-19 atacasse Aleyson.
O Concerto para Piano Nº 2 foi escrito em 1957 como presente de aniversário de Shostakovich para o seu filho Maxim, que completava 19 anos e fez a estreia do concerto no dia de sua formatura no Conservatório de Moscou. De porte camerístico e um pouco menos extenso que o habitual (só cerca de vinte minutos), mesmo assim exige considerável virtuosismo do pianista, que precisa articular centenas de colcheias, com leveza e graça, no primeiro e no terceiro movimentos, além de encontrar a medida funda de lirismo nas aparentes simplicidades do segundo, um dos mais lindos entre todos que o compositor russo escreveu. É uma peça perfeita para programas durante a pandemia: curta, com formação orquestral pequena e oportunidades de sobra para o solista exibir suas artes.
Havíamos chegado ao Nº 2 depois de um trajeto complicado, que começara não com Shostakovich, mas com Anton Bruckner e sua Sinfonia Nº 8.
A Oitava de Bruckner estreou em 1892 e é um dos maiores monumentos sinfônicos do romantismo tardio. A orquestração pede 3 flautas, 3 oboés, 3 clarinetes e 3 fagotes (um deles dobrando contrafagote); 8 trompas (5 delas tocando também tubas wagnerianas), 3 trompetes, 3 trombones e tuba; tímpanos e percussão (2 percussionistas); 3 harpas; e cordas, que, para uma peça desse porte, não devem ser menos que 60 (16 primeiros violinos, 14 segundos violinos, 12 violas, 10 violoncelos e 8 contrabaixos). Ou seja: 93 músicos.
Era essa a obra que estava programada para os concertos que deveriam ter acontecido na última semana de maio de 2020 e haviam sido combinados dois anos e meio antes com sir Richard Armstrong, quando o maestro inglês veio à Osesp reger um inesquecível segundo ato de Tristão e Isolda, de Richard Wagner.
Com 78 anos, sir Richard tem relação de mais de uma década com a Osesp, que ele já regeu em oito temporadas. É especialmente benquisto pelos músicos e possui uma sabedoria prática que vem de uma vida inteira no meio orquestral e operístico. Foi diretor das óperas da Escócia e do País de Gales, regeu no Covent Garden e na English National Opera, entre muitos outros lugares. Sir Richard cultiva uma ironia que é também autoironia, bem-humoradamente discreta e muito inglesa. Nesse espírito, que guarda sua dose de melancolia, ajuda a manter um asilo para elefantes idosos, na Tailândia.
Guardo fotos dele feitas no camarim, depois da apresentação de Tristão e Isolda, ao lado da germanista Graça Machel, viúva de Nelson Mandela, e de minha mulher Claudia Cavalcanti (também germanista e amiga de Machel) – todos nós sorrindo. São imagens de um tempo que hoje parece muito distante e muito ingênuo em sua confiança no futuro.
Em 14 de março de 2020, a Sala São Paulo, casa da Osesp, foi fechada por causa da pandemia. Estávamos na segunda semana da temporada e, apesar da crescente preocupação com o aumento da Covid-19 no país, ninguém esperava que a situação se deteriorasse tanto. Mas, de repente, era isso: mal terminado o concerto de sexta-feira à noite, o pianista inglês Paul Lewis e o regente suíço Stefan Blunier correram para o hotel, com voos remarcados para o dia seguinte, enquanto eu me despedia da equipe, sem ter uma noção real do que nos aguardava.
Os dois primeiros meses de quarentena nos deixaram meio embriagados de temor, espanto e adrenalina. Aos poucos, foram sendo adiados todos os programas do fim de março ao fim de julho, entre eles a apresentação da Sinfonia Nº 8, que transferimos para janeiro de 2021. Numa conversa via FaceTime com sir Richard, os dois lamentamos a mudança de data, mas a essa altura mudar a data queria também dizer manter o programa, o que era significativo. Por aqui, como na Europa, orquestra atrás de orquestra estava cancelando tudo.
Como era impossível fazer reuniões presenciais, marcamos uma primeira sessão de trabalho virtual, para tratar de questões variadas, por meio do Zoom. Foi comovente ver aqueles rostos aparecendo, um após o outro, nos quadradinhos do aplicativo. E ainda mais emocionante quando organizamos as duas primeiras reuniões plenárias – uma com músicos e cantores, outra com funcionários de todas as áreas da Fundação Osesp (um total de mais de 250 pessoas, somadas as duas). Curioso que uma tecnologia dessas, tão nova e cheia de frescor, tão rapidamente se torne instrumento banal, quando não antiquado, do dia a dia. Muito do que nos encantava há poucos meses agora parece velho e sem charme. Aliás, muito do que aconteceu já é lembrado como passado distante. Alguém deveria refletir sobre essa veloz preterização do futuro, que parece uma das marcas de um período sem presente.
A Sala São Paulo – considerada uma das melhores salas de concerto do mundo – só reabriu ao público sete meses depois, em 15 de outubro, com medidas sanitárias que permitiam a presença de, no máximo, 480 espectadores, num espaço com 1 484 lugares. Para a orquestra, o retorno também seguiu restrições severas, entre elas a decisão de que não deveria passar de 53 o número de instrumentistas no palco. Esses cuidados simplesmente impediam a apresentação da Oitava de Bruckner e sua multidão de músicos. Tivemos de dar adeus à sinfonia.
Não foi surpresa alguma para sir Richard quando, num novo FaceTime, comuniquei a mudança, não mais de data, mas do programa. Pensando na afinidade natural do maestro com a música inglesa e levando em conta também o tamanho possível de orquestra, sugeri, no lugar da Oitava, os Quatro Interlúdios Marítimos, espécie de suíte orquestral extraída da ópera Peter Grimes (1945), de Benjamin Britten, compositor inglês que sir Richard conheceu pessoalmente.
É uma peça incrível, cujo percurso nos leva do alvorecer numa praia cheia de pássaros até a noite enluarada, quando, finalmente, irrompe uma das mais extraordinárias cenas de tempestade jamais compostas. Além da poesia da paisagem em forma de sons, os Quatro Interlúdios também retratam uma comunidade litorânea e fazem um mergulho na alma de um pescador violento, injustamente acusado de supostos crimes de natureza veladamente sexual. São dois temas caros à imaginação de Britten: a homossexualidade – que ele jamais assumiu, mas também não escondeu – e o que o próprio compositor definiu como “a luta do indivíduo contra as massas”.
Como eu imaginava, sir Richard imediatamente disse sim.
Britten combinava com Shostakovich, que foi obrigado, sob o regime stalinista, a escrever numa língua musical cheia de ambiguidades e duplos sentidos. Os dois compositores, aliás, se davam bem e se admiravam mutuamente. Foi o que motivou reunir os Quatro Interlúdios Marítimos, com duração de 16 minutos, com o Concerto para Piano Nº 2, de 20 minutos. Mas, como a pandemia nos obrigou a ter programas com cerca de 60 minutos de duração, sem intervalo (ou seja: sem aglomeração no café da Sala São Paulo), faltava ainda uma abertura.
Uma boa opção era o poema sinfônico No Reino da Natureza (1891), de Antonín Dvořák. Uma linda peça de 12 minutos, pouco tocada, o que seria mais um motivo de interesse, e cujo tema abriria o cenário para as paisagens de Britten. Além disso, com orquestração compatível às dificuldades de agora.
E assim foi definido o repertório que substituiria a Oitava. Pouco tempo atrás, ninguém pensaria num programa como esse e nessa ordem – Dvořák, Britten e Shostakovich –, mas a necessidade é mãe da invenção, e o novo formato de concertos de uma hora inspirou a solução inusitada, como tem inspirado outras mais.
Tudo parecia ter voltado razoavelmente aos trilhos quando, em dezembro do ano passado, o governo brasileiro proibiu a entrada no país de pessoas vindas do Reino Unido. Faltava um mês para sir Richard chegar a São Paulo, mas nada indicava que aquela regra mudaria a tempo de ele poder viajar. Antevendo o problema, liguei para outro maestro inglês, Neil Thomson – que reside no Brasil –, para saber se estaria disponível, caso fosse preciso.
Titular da Orquestra Filarmônica de Goiás, que em suas mãos tornou-se um dos mais importantes conjuntos do país, Neil tem regido a Osesp todo ano, desde que veio pela primeira vez em 2015 numa substituição de última hora. Tem sido um parceiro importante do Festival de Inverno de Campos do Jordão, que a Fundação Osesp voltou a administrar em 2012 – o que, diga-se de passagem, representa um acréscimo de mais de uma centena de concertos aos 150 que fazem, por ano, a Osesp, seus grupos e solistas. Especialmente apreciado pelos músicos, Neil tem duas virtudes cruciais para quem precisa de socorro: um repertório imenso, já que parece ter regido de tudo e coleciona todas as partituras, e uma disposição invariavelmente positiva. É um homem do sim. Logo entendeu a situação e aceitou a tarefa.
Foi então que sucederam as duas surpresas com os intérpretes do Concerto para Piano Nº 2: Boris Giltburg estava impossibilitado de vir da Holanda, e seu substituto, Aleyson Scopel, de deixar a quarentena no Rio.
Quando Aleyson me escreveu, naquela manhã de janeiro, Neil já estava prestes a ensaiar com a orquestra. Saí de casa rumo à Sala São Paulo sem saber qual seria o solista, nem o repertório, para o ensaio do dia seguinte. Estávamos em maus lençóis. Mas aprendi com a prática que, nessas horas, é melhor se apressar sem pressa, como reza o ditado latino. Sempre ocorre uma solução.
Ao entrar no camarim para falar com Neil, já tinha uma proposta na ponta da língua. Para substituir Aleyson, convidaríamos Fábio Zanon. E, em vez do Concerto para Piano Nº 2, de Shostakovitch, teríamos o Concerto para Violão e Pequena Orquestra, de Heitor Villa-Lobos.
Um dos mais renomados violonistas da atualidade, o paulista Fábio Zanon é professor na Royal Academy of Music de Londres, e desde 2013 é também coordenador artístico-pedagógico do Festival de Campos do Jordão – em outras palavras: um amigo da casa. Gravou toda a obra de Villa-Lobos para violão solo e domina o Concerto para Violão e Pequena Orquestra desde os 15 anos, ou seja, há quatro décadas. Esse concerto, que exige virtuosismo do solista, não tem dificuldade para a orquestra, o que favorecia a mudança às pressas. Tanto Neil quanto os músicos seriam mais do que capazes de ler a partitura à primeira vista, se necessário. O maestro nunca havia regido a obra, mas gostou da ideia de imediato, confiando na minha descrição. Bastou um breve telefonema a Zanon e, cinco minutos depois, o assunto estava resolvido.
A mudança fazia sentido em termos do programa, que ficou definido na seguinte ordem: No Reino da Natureza, de Dvořák; o concerto de Villa-Lobos, que, afinal, gostava de repetir que toda sua música vinha das florestas do Brasil; e os Quatro Interlúdios Marítimos, de Britten. Um programa da natureza, para tempos de convulsão ecológica.
No dia seguinte, o ensaio foi um passeio. E os concertos, com Zanon portando uma extravagante máscara bivalvulada (que lembrava cenas de Chernobil, depois do desastre na usina nuclear), foram um memorável sucesso, nas duas noites de apresentação, quinta e sexta. Tanto mais que já não era permitido abrir a sala no sábado, pois São Paulo havia voltado à fase vermelha de quarentena, aos fins de semana.
Em tempos normais, a combinação certa de regente, solista(s) e programa tem que ser costurada dois ou três anos antes entre as partes, tendo em vista toda a temporada. Cada programa precisa fazer sentido em si, e a sequência de programas, semana a semana, também deve ser construída com cuidado, tanto do ponto de vista de quem vai tocar quanto de quem vai ouvir. Não é uma questão apenas de curadoria, que busca dar coerência a tantos concertos. Há outros fatores em jogo, bem mais concretos. Nenhuma orquestra, por exemplo, aguenta fazer Bruckner numa semana, Wagner na seguinte e Mahler na terceira. O esforço físico exigido por esse repertório não seria viável para os instrumentistas do naipe de metais, para começo de conversa.
Uma mudança que seja dispara uma série de providências. Além das questões relacionadas à divulgação, venda de ingressos e produção – contratos, vistos, passagens aéreas, reservas de hotel e, agora, certificados de testagem para Covid-19 –, há muitas outras, específicas do meio orquestral: aluguel de partituras, escalação dos músicos, mapas de palco (especialmente relevantes com as normas de distanciamento); textos sobre o programa (agora virtuais) e legendas para o público (que passaram a ser projetadas no alto da cena, evitando distribuição de materiais impressos).
Na Osesp, uma temporada de assinaturas – os programas vendidos em pacotes, antecipadamente – tem, em média, 32 semanas, com três concertos por semana. Mas a orquestra também se apresenta fora das assinaturas, na pré-temporada, na série de concertos a preço popular e nos matinais de domingo, sem falar nos concertos ao ar livre e nas turnês. Além das apresentações da orquestra, há recitais de solistas e concertos do Coro da Osesp e do Quarteto Osesp. Tudo somado, são mais ou menos 150 concertos por ano, envolvendo os 152 músicos e cantores da Osesp e cerca de 60 artistas convidados, do Brasil e do exterior.
Seria o eufemismo dos eufemismos dizer que tudo isso exige planejamento. A capacidade de planejar e a tradição de honrar o que foi planejado são, aliás, dois fatores dos muitos que dão credibilidade a uma instituição cultural. Alta qualidade artística será sempre o mais importante, mas cumprir acordos, ter uma produção que funciona e ser bom pagador são qualidades básicas. Não mudar de ideia no meio do caminho, também. Era assim que as coisas funcionavam no passado pré-pandêmico, antes da avalanche de pedras que agora obstrui diariamente a vida de nossas retinas tão fatigadas.
O planejamento tornou-se ainda mais relevante na hora de reabrir a Sala São Paulo seguindo as normas sanitárias, tanto para músicos e funcionários quanto para o público. Sob coordenação do diretor executivo Marcelo Lopes, meu grande parceiro e principal responsável por não deixar a peteca cair, foi elaborado um documento interno, com nada menos que 68 páginas, com textos, fotos, ilustrações e diagramas, detalhando medidas, como:
Maestros, instrumentistas, produtores e técnicos devem utilizar máscaras durante ensaios, concertos e intervalos;
para fins de cálculo, considerar-se-á a distância mínima de 1,5 metro entre os músicos de cordas e de 2 metros entre os músicos de sopro;
a equipe técnica entregará no início da semana um kit com lápis e borracha [para anotações na partitura], em embalagem descartável. A responsabilidade pela guarda do material será dos músicos, não havendo substituição em caso de perda;
a condensação dos instrumentos de sopro [o acúmulo de umidade produzido pelo sopro no tubo] deverá ser depositada em toalhas descartáveis, fornecidas pela Produção da Orquestra, que serão depositadas individualmente por cada músico em um recipiente de higiene para posterior refugo;
músicos de sopros e metais deverão fazer uso de máscaras na contagem de pausas mais longas [durante a execução de uma peça];
os técnicos deverão usar luvas de proteção durante o transporte dos instrumentos.
Os ensaios passaram a ser feitos em três sessões de 45 minutos, com 15 minutos de intervalo entre elas, para arejamento e higienização. Os músicos de cordas agora tocam em fila indiana, não mais em duplas que compartilham a estante da partitura. Cantores do coro foram divididos em três grupos, que ensaiam de máscara em dias ou semanas diferentes, em duas sessões, alternando salas, de janelas escancaradas. São medidas que vêm sendo adotadas por orquestras e teatros no mundo inteiro, uma vez que a pandemia instigou mudanças de hábito, inovações e reavaliações em todas as instituições culturais (e não apenas nelas). Ninguém sairá igual ao que era quando isso tudo acabar. Não é menos verdade que essa crise nos fez ver o que realmente importa, o significado mais fundo da atividade, que precisa ser preservado.
Durante o ano triste de 2020, foi bonito ver o ânimo dos músicos, como de todo mundo – funcionários, colaboradores, conselheiros, parceiros –, para que a Osesp não deixasse de cumprir o seu papel e não interrompesse suas atividades, o que ocorreu, por força maior, com tantas instituições, no Brasil e no exterior. Foi nesse espírito que pudemos fazer, apesar de tudo, duas estreias mundiais: a do monodrama Cartas Portuguesas, do carioca João Guilherme Ripper, num espetáculo imaginado especialmente para as condições atuais, e a de uma peça do compositor norte-americano Mason Bates, Undistant, com a Osesp regida por sua conterrânea Marin Alsop.
Por vários meses, não poder tocar ao vivo tornou-se o maior desafio para a Osesp: como manter uma orquestra ativa, quando ela não pode se apresentar? A resposta todos conhecem: um aumento expressivo da atividade digital. Os números falam por si e dão medida da receptividade do público, assim como do empenho dos músicos. Foram 865 publicações nas mídias sociais da Osesp e da Sala São Paulo entre os dias 16 de março (dois dias depois do fechamento da sala) e 9 de outubro (um dia antes da reabertura da plateia). Nada menos de 135 vídeos foram vistos 1 354 548 vezes. No Instagram, alcançamos 4 091 396 pessoas, e no Facebook, 7 281 877 – chegando ao impressionante total de 11 373 273 pessoas. Mais recentemente, em fevereiro passado, as lives de um programa com a Primeira e a Quinta Sinfonias, de Beethoven, ambas regidas por Thierry Fischer, foram vistas por mais de 15 mil espectadores, o equivalente a dez vezes a lotação completa da Sala São Paulo.
Mesmo depois que se retornar a alguma forma de normalidade, as orquestras farão o possível para conquistar novos públicos, mantendo as atividades digitais – não só os concertos, mas as aulas, os debates, os documentários. Os recursos digitais serão muito explorados especialmente na área educativa. Graças a um aporte do governo estadual, a Sala São Paulo está sendo equipada com oito câmeras robóticas e um estúdio, para que as transmissões de concertos e a produção de outros programas virem rotina permanente – a depender de patrocínios.
Tudo isso entusiasma, mas cabe ser bem realista, quando o fragor pelos novos meios chega às raias de defender a extinção de tudo o que se tinha antes. Os meios digitais são um fenômeno notável na difusão da música e compensaram, em alguma medida, a paralisia das atividades presenciais. Mas apenas trazem algo diferente, um elemento a mais, ao que é insubstituível: a apresentação ao vivo.
Uma coisa é sentar na plateia, escutar o som de uma orquestra num espaço acústico especial, prestar atenção aos intérpretes e seguir, de fato, uma obra do início ao fim. Bem diferente é ver a transmissão na tevê, no computador ou no celular, enquanto se requenta uma pizza, e geralmente por menos tempo que isso. Há a parcela do público melômano, impedida de ir ao teatro, que dedica atenção máxima às transmissões. Mas a média de atenção dos usuários em geral nas redes sociais não ultrapassa três minutos.
Durante a pandemia, também cresceu muito a comunicação via redes sociais. No nosso caso, a mídia que melhor cobriu as atividades da orquestra foi a televisiva, mais que a impressa, já que a reportagem e a crítica cultural no sentido clássico parecem em rota de extinção. Perante o silêncio da imprensa escrita, por desconhecimento, desinteresse, ressentimento ou estratégia de sobrevivência, cada vez mais as orquestras terão de falar diretamente a seu público. Já estávamos fazendo isso antes da pandemia, e a prática só cresceu de lá para cá.
No artigo Notes Toward Reinventing the American Orchestra (Notas para uma reinvenção da orquestra americana), publicado em 12 de fevereiro no New York Times, o crítico Anthony Tommasini elencou algumas questões que as orquestras terão de discutir para sobreviver à crise. “Missão”, “relevância” e “inclusão” são alguns dos temas. Programação criativa e inovadora será sempre uma chave do sucesso. Captação de recursos também.
Nada disso é exatamente novidade e cada orquestra responderá a esses desafios conforme suas particularidades. A Sala São Paulo, prestígio internacional à parte, fica em plena Cracolândia, uma das regiões mais difíceis da cidade, acossada por problemas de saúde pública que vêm de muito antes da pandemia. Às vezes, pensar em música clássica no meio disso tudo parece loucura. Mas é uma loucura necessária, para quem acredita no projeto da Osesp, em seu sentido mais amplo, como esforço civilizatório, especialmente relevante aqui e agora.
“Bom dia! Tatiana testou positivo… Davi acaba de cancelar o ensaio e fará o teste hoje mesmo…”
Dezessete de fevereiro passado, Quarta-Feira de Cinzas, sete e meia da manhã. Quem me escrevia era Emmanuele Baldini, o spalla da Osesp e do Quarteto, para dar notícias sobre o paulistano Davi Graton, segundo violino do Quarteto, e sua mulher, a russa Tatiana Vinogradova, violinista da orquestra.
Num telefonema a três, com Marcelo Lopes e o gerente de Recursos Humanos Leonardo di Piazza, expert em protocolos e nosso consultor cotidiano, confirmamos que tanto Tatiana como Davi precisariam entrar em quarentena. Temos hoje, na prática, duas orquestras que se alternam semanalmente, respeitando o limite possível de músicos. Por sorte, seguindo o revezamento, nenhum dos dois músicos havia tocado na semana anterior. Mas como fazer para o recital do Quarteto, dali a dois dias?
Cancelar ou não cancelar, era essa a questão. Mas nem era: nunca cancelamos nada, a menos que seja obrigatório por lei. Não fazer nada justifica os que não veem necessidade em haver orquestras, concertos, música clássica – ou simplesmente música. De resto, em nosso caso, como equipamento público, havendo permissão para exercer atividades, isso para nós se torna obrigação – um dos mantras de Marcelo. O desafio é achar a melhor e mais segura forma de fazê-lo.
Não parar de tocar já representa muita coisa, na situação atual. Para além da dimensão de compromisso, da orquestra e de cada um de nós, existe também um fator prático, da maior importância. O que é uma orquestra? Na definição do Dicionário Houaiss, um “grande conjunto de músicos e seus respectivos instrumentos”. Faltou dizer: tocando juntos. De meados de março até começo de agosto, quando a cidade de São Paulo finalmente entrou numa fase menos restritiva (a fase amarela), e a Osesp, em versão reduzida, pôde voltar a fazer concertos digitais na Sala São Paulo (sem público), os músicos estavam impedidos de ensaiar juntos.
À parte as dificuldades de aguentar a quarentena, quem sabe se isso também não produziu um efeito positivo? Cada músico da Osesp em quarentena pôde usufruir de um tempo que provavelmente não dispunha havia anos para praticar seu instrumento, sem a pressão de ensaios e concertos com repertório novo a cada semana ou duas. Muitos fizeram vídeos musicais nas redes, o que resultou numa série, com três postagens por semana, e exibiu talentos individuais de primeira linha para quem só conhecia os instrumentistas como integrantes de um naipe da orquestra.
Mesmo assim, havia certo receio de como seria a volta ao palco, depois de um longo e insólito intervalo. Foi impressionante ver como todo mundo voltou tinindo. Os músicos tiveram de lidar, de cara, com a dificuldade de tocar num palco estendido, separados uns dos outros por uma distância bem maior que a habitual. Seguir maestros de máscara também exige ajuste, já que as expressões faciais são uma parte importantíssima da comunicação musical. Para o regente, significa cancelar um elemento espontâneo primário de sua arte. Apesar disso, a música em conjunto faz toda a diferença. Uma orquestra é uma orquestra é uma orquestra. E não existe quarteto de três.
Ou será que não? Quarteto de três foi justamente a primeira ideia que me ocorreu, ao ler a mensagem de Emmanuele Baldini. Em outras palavras: um trio. Já que, sem o segundo violino, não teríamos como apresentar o Quarteto Op. 130 e a Grande Fuga de Beethoven, por que não tocar um dos trios? Existem os lindos Trios Op. 9, que já anunciam o universo dos Quartetos…
Antes mesmo que eu pudesse fazer essa sugestão, o celular vibrou: “Estava pensando no que eu conseguiria montar BEM com um dia e meio de ensaios (amanhã e no dia do concerto)…” E na sequência da mensagem de Emmanuele: “…talvez um recital de trio de cordas, com o Peter Pas e o Rodrigo Silveira.” A essa altura, Marcelo também já estava ciente do problema. Vendo as mensagens do spalla, os dois tivemos a mesma reação: “Esse cara é demais. Não desiste nunca.”
Uma das cenas mais marcantes do tanto que a Osesp fez na pandemia terá sido a Ciaccona de Bach, para violino solo, que Emmanuele tocou na Sala São Paulo vazia, na primeira transmissão digital desse período, no dia 28 de março, duas semanas depois de seu fechamento (e que pode ser vista no YouTube). Minha mulher e eu assistimos àqueles quinze minutos de música com lágrimas nos olhos, e imagino que a mesma reação tenha ocorrido a muitos dos 25 168 espectadores que viram a gravação até 18 de fevereiro passado. Tanto mais que a Ciaccona, como se sabe agora, foi uma espécie de “epitáfio em música”, composto por Bach em 1720, logo após a morte de sua mulher, Maria Barbara.
Emmanuele ficou aturdido com o vazio e o silêncio da sala. Como depois me disse, tocar para duas câmeras fixas, apenas, foi uma experiência difícil, mas acabou contribuindo para a interpretação. Sem dúvida, terá sido um dos pontos altos de sua carreira, para não dizer de sua vida. De lá para cá, ninguém como esse triestino que vive no Brasil há quinze anos encarnou a obsessão de manter a atividade, fazendo música sempre, das mais variadas formas, e não dando ouvidos aos apocalípticos e desintegrados, que sempre estão por aí.
Para uma orquestra, não há função mais crucial que a de spalla. Antes de mais nada, ele lidera o conjunto, na primeira estante dos primeiros violinos. Mas não só. É também o principal interlocutor do regente no palco. Se os dois não estão em sintonia, uma sintonia muito fina, a coisa toda desanda. Um spalla dá cara ao conjunto e veste a camisa da orquestra.
Ao longo dessa crise sem precedentes, Emmanuele fez tudo isso e muito mais. Gravou vídeos e lives, deu aulas a distância, na Academia da Osesp e em outros espaços virtuais. Manteve um programa de rádio, fez concertos de câmara e encarou polêmicas em defesa da cultura. Também regeu a orquestra mais de uma vez e substituiu o chinês Ning Feng, retido na Alemanha, como solista do Concerto para Violino de Beethoven – aliás, tocando e regendo ao mesmo tempo.
Assim como Emmanuele tocando a Ciaccona, outro vídeo virou emblema da quarentena para a Osesp: um Trenzinho do Caipira, de Villa-Lobos (último movimento das Bachianas Brasileiras Nº 2), em que cada músico filmou a si próprio com o celular, em sua casa, enquanto nosso regente titular, Thierry Fischer, os regia em Genebra. Tudo isso registrado pelo diretor Fábio Furtado num verdadeiro “filme de música”, não mera filmagem de concerto.
Sincronizar os mais de oitenta instrumentistas e equalizar o som gravado de mais de oitenta celulares seria uma tarefa impossível, pelo menos com os recursos disponíveis. Recorremos, então, a uma gravação ao vivo da Osesp regida por Thierry. Cada músico ouvia a gravação no fone de ouvido, enquanto tocava sua parte, seguindo algumas instruções básicas. Em dado momento, Thierry, que é também flautista, surpreendeu a todos, ao tocar algumas frases da primeira flauta junto com o naipe. Esse vídeo causou – e ainda causa – comoção, tanto pelo engajamento da orquestra quanto pela música de Villa-Lobos, que nunca deixa de nos pegar. E pelas marcas do tempo que essa música traz: uma obra de arte que já parece presa às circunstâncias do passado, mas também livre delas, lançada ao futuro como uma garrafa ao mar, para contar nossa história.
A pandemia coincidiu com uma das efemérides mais acalentadas pelo meio musical – os 250 anos de nascimento de Ludwig van Beethoven, comemorados em 2020. Orquestras do mundo inteiro, entre elas a Osesp, planejaram com anos de antecedência suas temporadas para homenagear o compositor. Não seria para menos. Como escrevi num ensaio de apresentação da Temporada 2020 da Osesp, muito do que nos parece natural hoje, numa sala de concertos, está ligado, direta ou indiretamente, à obra e à pessoa de Beethoven. A própria ideia de um cânone musical, centrado nos grandes autores, foi se desenvolvendo em consequência da sua música, com a figura dele sempre presente.
A criação de orquestras profissionais, ao longo do século XIX, se deu, acima de tudo, em resposta às exigências colocadas pelas nove sinfonias, que depois se tornaram uma obrigatoriedade. Uma das consequências foi a consolidação e evolução da figura do regente (Felix Mendelssohn foi um dos primeiros). Até algumas características modernas do piano, como a dimensão do teclado, a alta tensão das cordas e o tipo de pedal, devem muito a novidades que Beethoven conseguiu impor aos principais fabricantes de Viena e, por extensão, às fábricas do resto da Europa. Em 1948, pouco mais de um século depois de sua morte, a duração dos primeiros LPs de 33 1/3 rpm produzidos pela Columbia Records foi definida para acomodar a Quinta Sinfonia na íntegra. Em 1982, a dos CDs também: 75 minutos, para caber a Nona Sinfonia.
A Osesp tinha planejado o que seria o maior ciclo de obras de Beethoven jamais apresentado por uma instituição brasileira. Por uma feliz coincidência, a temporada marcaria também a chegada do novo regente titular e diretor musical da Osesp, o maestro suíço Thierry Fischer.
Foi nesse espírito que apresentamos a Missa Solemnis, na primeira semana de março do ano passado, pouco antes de ser decretada a quarentena. À orquestra uniram-se um quarteto de cantores convidados, com dois alemães e dois brasileiros, e os coros profissional e acadêmico da Osesp, num total de quase 150 pessoas no palco, sob o comando de Thierry. A Sala São Paulo ficou lotada três dias seguidos, numa aglomeração que nos parecia gloriosa, mas, em retrospecto, provoca calafrios. A Missa é uma das últimas obras de Beethoven e leva ao limite uma arte que parece forçar a música além do conhecido. Virtuosística para a orquestra, não menos do que para os cantores, exige tudo o que um maestro pode dar. Também por isso, parecia a peça ideal para inaugurar a nova era da Osesp.
Thierry Fischer nasceu em 1957, na Federação da Rodésia e Niassalândia, atual Zâmbia, onde seus pais, que eram missionários, estavam trabalhando. Quando o menino tinha 1 ano e pouco, a família retornou a Genebra, cidade em que o maestro mora até hoje. Thierry fez carreira como flautista. Foi primeira flauta na Ópera de Hamburgo e na Ópera de Zurique, antes de se tornar primeira flauta na prestigiosa Chamber Orchestra of Europe, atuando lá por uma década, em contato próximo com seus dois mentores, o italiano Claudio Abbado e o alemão Nikolaus Harnoncourt, ambos nomes maiores da música clássica na segunda metade do século XX.
Começou a reger por acaso, substituindo de última hora um regente de coral (quanta coisa começa com substituições!). Tomou gosto pela regência e logo embarcou na carreira, em grande estilo, assumindo a direção musical de orquestras na Holanda, na Irlanda e no País de Gales. Foi principal regente convidado em Nagoya, no Japão, e em Seul, na Coreia do Sul, e rege muitos conjuntos importantes, como a London Philharmonic Orchestra e o Ensemble Intercontemporain, de Paris, entre outros. Em 2009, assumiu a Sinfônica de Utah, nos Estados Unidos, na qual permanecerá até 2023, a pedido da orquestra, dadas as dificuldades de conduzir a busca por um novo regente durante a pandemia.
Ao mesmo tempo, ele comandará a Osesp, com a qual esteve pela primeira vez em 2016, quando chegou a São Paulo afônico e com febre (mas essa era, mesmo, só uma gripezinha). Fez inesquecíveis concertos, mesmo com substituição de solista e programa – a violoncelista argentina Sol Gabetta, que estava grávida, preferiu não vir ao Brasil, na época assolado por uma epidemia de zika (lembram?).
O maestro voltou em 2018, para reger a estreia latino-americana de um Concerto para Flauta encomendado ao compositor francês Philippe Manoury, na companhia do suíço Emmanuel Pahud, seu grande amigo, primeira flauta da Filarmônica de Berlim. Na segunda parte, regeu a Sinfonia Fantástica, de Hector Berlioz, uma de suas especialidades. As duas visitas causaram enorme impacto nos músicos da orquestra e, também, num comitê formado para encontrar o sucessor da regente Marin Alsop, que no final de 2019 terminaria seu bem-sucedido mandato de oito anos na Osesp, da qual se tornou regente de honra.
O comitê – de onze pessoas, entre membros do Conselho de Administração, músicos, diretores, consultores estrangeiros e um musicólogo – trabalhou dezoito meses, seguindo normas de um regimento específico, até bater o martelo no nome de Thierry Fischer. Quando bateu, bateu com força. Num roteiro cinematográfico, cheio de sigilo, o maestro veio a São Paulo em junho de 2019, para o anúncio, que foi muito bem recebido. Uma rara, talvez inédita ocasião, nesse universo: a passagem do bastão conduzida com tranquilidade. Fortaleceu um sentido republicano, não personalista, que deveria ser sempre norma nas instituições. No mês seguinte, Thierry voltou para reger a Quinta de Beethoven e peças escolhidas pelo público, comemorando os 20 anos da Sala São Paulo.
Depois de tudo isso, eram grandes as expectativas para a temporada Beethoven 250, que prometia ser também um sucesso do ponto de vista comercial. Mal sabíamos o que vinha pela frente.
Com a quarentena, começou uma troca de centenas de e-mails e mensagens. Fizemos dezenas de reuniões virtuais sobre a programação e assuntos gerais, porque era preciso ir em frente, confiando na existência dos anos 2021, 2022 e 2023. A certa altura, houve um temporário corte trimestral de quase 15% no salário de todos, em consequência da diminuição de 50% do repasse do estado naquele período (15% do total do ano), o que nos levou a renegociar contratos na mesma proporção. Só ao cabo de sete estranhos, impremeditáveis, desafiadores e, a seu modo, educativos meses, Thierry Fischer pôde voltar a reger a Osesp, na segunda semana de novembro do ano passado.
Uma consequência inesperada e bem-vinda do novo xadrez de datas e programas foi concentrar oito sinfonias de Beethoven num período de três meses, entre novembro e a primeira semana de março de 2021. Marin Alsop já havia regido a Nona em dezembro de 2019, no seu último programa como regente titular, dando início ao ciclo Beethoven 250. Fazer as outras oito com Thierry, de modo tão intenso, definiu de imediato a essência do que ele pretende para a orquestra.
Os músicos têm se referido a cada ensaio com Thierry como uma verdadeira masterclass. O maestro suíço tem um jeito despretensioso de dizer o que quer, e sua sabedoria artística confere autoridade natural aos comentários. É um músico entre músicos. Dentro e fora do palco, guarda um equilíbrio incomum: não exagera nada, nem diminui. Sabe o valor que tem e sabe o valor da orquestra. O resto é talento e carisma: extrair o melhor de cada um, na hora do concerto. E criar no palco aquela unidade indefinível, mas imediatamente perceptível, que faz de uma orquestra uma orquestra, muito mais que a soma de vários músicos tocando juntos.
“A luta é a marca fundamental da vida de Beethoven”, disse Thierry numa entrevista para a Revista Osesp, realizada antes da pandemia e que agora ganha acentos premonitórios. “Sua noção de vitória não significa sucesso. Sua noção de vitória é: nunca desistir. São coisas muito diferentes. Isso é Arte.”
Entre tantas lições trazidas por esse período difícil, houve esta: ter disposição para mudar o que estava planejado, diante das urgências, o que nos deixou muito mais flexíveis com tudo, sem prejuízo da vontade de seguir planejando, para tempos melhores. Também nos tornamos mais flexíveis uns com os outros. Desdramatizados. Emmanuele Baldini normalmente não teria tocado a Sonata Kreutzer, de Beethoven, tendo apenas 48 horas para se preparar – mas foi isso que ele e o pianista paulista Lucas Thomazinho fizeram, para uma plateia de 348 pessoas, em complemento ao programa que incluía o Trio Op. 9 Nº 2, e salvando aquela outra situação.
Sabe-se lá quanto tempo teremos de seguir nessa rotina de máscaras, distanciamento e sobressaltos. Quanto tempo teremos de sofrer com as notícias de pessoas queridas, mais ou menos próximas, familiares, conhecidos, parceiros e amigos lutando, em graus variáveis, contra esse vírus, alguns sem resistir. Às vezes me pego vendo um filme na cabeça: tantas faces, tanta gente, tanta energia de resistência, num redemoinho de sonho. Mas logo acordo, lavo o rosto e dou uma conferida no celular, para ver o que será que nos espera.
O público retornou à Sala São Paulo em outubro passado, entre mil protocolos, para o bem de nós todos e felicidade geral da orquestra. Até o dia 6 de março, quase um ano depois do primeiro fechamento, quando o estado de São Paulo entrou de novo na fase vermelha e a Sala São Paulo se viu obrigada a fechar outra vez as portas, com todas as equipes trabalhando remotamente e todos os concertos suspensos.
Não é o caso de detalhar aqui o novo pandemônio de remarcações, adiamentos e substituições. Nas primeiras 24 horas depois do anúncio do novo fechamento, contei ter falado com três regentes, quatro solistas e seus respectivos agentes, além de Thierry, na tentativa de rearrumar a casa. Sem contar as reuniões de diretoria, conversas com conselheiros e mensagens com a equipe – mais e-mails e mensagens de assinantes e do público em geral.
O público da Osesp pratica formas de cultivar a orquestra mais ou menos em tempo integral, o que envolve boa dose de crítica, mas também de apoio, nessas horas. Para muita gente, a orquestra encarna ideais de vida comunitária que, fora dali, parecem cada vez menos reais.
Há os espectadores que vêm de vez em quando, os que a frequentam regularmente e os fanáticos, como um casal de terceira idade, que costumava assistir três vezes ao mesmo programa, na quinta, na sexta e no sábado (verdade que cada vez é outra vez, se os músicos são verdadeiros artistas).
Uma semana antes do Natal, na saída de um concerto, minha mulher e eu fomos abordados por uma senhora, antiga assinante e frequentadora assídua da Osesp, praticamente um membro da torcida organizada da orquestra. Ela veio perguntar se os músicos estavam bem de saúde, se o orçamento não ia fazer água, se tudo continuaria como antes. Respondi que estava “tudo bem, brasileiramente falando”. Ela sorriu e bradou, através da máscara:
– Música acima de tudo!
E eu, de bate-pronto:
– Beethoven acima de todos!
Caímos os três na risada, na cumplicidade da contra-analogia. Ela se afastou, abanando a mão, e foi pegar seu carro. Mas minha mulher, que não perdoa, perguntou:
Estamos rindo exatamente do quê?