O oráculo Ifá, porta-voz dos orixás: saibam que o momento é um “freio de arrumação” CREDITO: ANDRÉ HORA
Na companhia dos orixás
Confinamento nem sempre tem a ver com solidão
Nei Lopes | Edição 164, Maio 2020
Nasci e fui criado numa casa onde eu, com meus oito irmãos, duas irmãs e nossos pais constituíamos um núcleo numeroso, do qual sou hoje o único remanescente. A todo esse “time”, somavam-se, no mesmo trecho de rua e em ruas próximas, outros membros da família extensa. E esse povo gostava muito de estar junto, sobretudo nas horas alegres das comemorações.
Minha primeira festa é hoje uma vaga mas persistente lembrança: o quintal arborizado de casa e boa parte da rua enfeitados de bandeirinhas verde-amarelas, saudando o cabo Dayr, o segundo da prole, que voltava da Itália, para onde havia ido durante a Segunda Guerra Mundial. Ali, o som do trombone do Jimbo, o quarto irmão mais velho, alardeava a vitória dos Aliados. Seu quinteto musical, que já me encantava, tinha no bombo da bateria a inscrição The Big Five, que tempos depois descobri ser uma expressão de elevada autoestima.
Essa minha celebração inaugural confirmava nossa modesta casa do Irajá, na Zona Norte carioca, como um reduto festeiro. Naquela residência caiadinha de branco, com piso de cimento cru, reuniam-se parentes, amigos e vizinhos nos festejos juninos e natalinos, e também em eventuais festas maiores, como batizados e casamentos. Quase sempre o Big Five dava as caras. À época, os músicos do quinteto tocavam até em famosas gafieiras do Centro de um vibrante Rio de Janeiro.
Impossível amargar solidão em ambiente como esse. Dele veio meu gosto pelos terreiros e avenidas do samba, onde ninguém canta ou dança sozinho. Vieram também outros territórios de prazer e alegria, como o dos pagodes em outros fundos de quintais e mesmo em bares e calçadas. Um dia, entretanto, veio a primeira experiência de confinamento, isolamento, reclusão.
Não, não é nada disso que você está pensando! Nem vírus, nem muito menos cadeia. Afinal, desfrutei de uma formação primorosa. Sou filho de um dedicado operário da Casa da Moeda e de uma caprichosa dona de casa, tenho temperamento calmo e cursei uma prestigiosa faculdade de direito, a da então Universidade do Brasil. Sei muito bem a diferença entre lícito e ilícito. A quarentena deveu-se a motivos religiosos.
A iniciação nos diversos cultos de origem africana obriga a um período de isolamento. Nele, o iniciando cumpre um conjunto de ritos que lhe confere aprendizado litúrgico e de comportamentos. Fica sozinho durante quase todo o processo. Apenas em momentos previamente determinados é que tem contato com o corpo sacerdotal da casa a que pertence.
Comigo não foi diferente. Iniciado em um ramo cubano da religião dos orixás, depois de cinco décadas de ligação mais tênue com o candomblé, passei pelos rituais necessários e secretos, em reclusão absoluta por uma semana. Os efeitos negativos do isolamento eram amenizados pela presença intangível mas efetiva de minha ancestralidade e das forças naturais que conduzem minha vivência espiritual desde a infância e que agora eu começava a compreender filosoficamente.
Quando grifo essa palavra, faço-o como introdução ao seguinte raciocínio: em 1950, no texto Philosophie et Religion des Noirs (Filosofia e religião dos negros), publicado na revista Présence Africaine, o antropólogo francês Marcel Griaule perguntava-se sobre a pertinência de aplicar as denominações “filosofia” e “religião”, na acepção que os europeus lhes dão, à visão de mundo, às relações com o invisível e à vida interior dos negros na África. Ao final da indagação, o cientista confirmava existir, sim, entre povos tradicionais do continente de Nelson Mandela e Kofi Annan, tanto um pensamento filosófico quanto um arcabouço espiritual autônomos – que, no entanto, se relacionam em perfeita conjugação. Quatro décadas depois, o padre espanhol Raul Ruiz de Asúa Altuna fez eco à afirmação de Griaule e, no livro Cultura Tradicional Bantu, escreveu: “Basta debruçarmo-nos sobre esse conjunto de crenças e cultos para encontrar uma estrutura religiosa firme e digna.”
Foi a partir do meu isolamento ritualístico que entendi conceitualmente (ou filosoficamente) muita coisa que eu fazia sem saber direito o porquê, como um músico que toca bem, mas de ouvido, sem conseguir decifrar a partitura. Creio, portanto, que o vocábulo “confinamento” – “ato ou efeito de isolar(-se) em dado lugar” – não tem correspondência direta com o substantivo “solidão” – “estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só” –, conforme define o Dicionário Houaiss. Aquele que se inicia corretamente no culto aos orixás e ancestrais se encontra em permanente comunicação com eles. Jamais está sozinho, em qualquer circunstância do dia e da vida, incluindo a que experimentamos hoje, diante do novo coronavírus.
À beira dos 78 anos, longe do burburinho da metrópole já há algum tempo, vivencio uma bela união conjugal de quase quatro décadas com Sônia. Ex-professora de língua e literatura francesas, ela agora é um híbrido de gestora do nosso lar e orientadora da carreira universitária recém-iniciada do nosso casal de netos. Graças a essa minúscula mas aguerrida família e às minhas crenças espirituais, não posso me queixar de solidão nesta quarentena. Mesmo porque o oráculo Ifá, porta-voz dos orixás, já me acenou com a possibilidade de que o mau momento que ora enfrentamos seja um “freio de arrumação”, como aquele dos ônibus aqui da periferia.
“Não há mal que sempre dure”, dizem os mais velhos. Daqui a pouco tudo isso passa. Aí, então, vamos festejar, como nos melhores tempos. Num samba fantástico, semelhante ao do inesquecível Big Five, com direito a trombone, sax, trompete, contrabaixo e bateria.
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