O budião-azul e seu sorriso: capacidade para arrancar pedaços de corais e algas dos recifes CREDITO: RONALDO FRANCINI-FILHO
Na ponta do arpão
A caçada para salvar um peixe da extinção
Bia Guimarães | Edição 168, Setembro 2020
Depois de balançarem por três horas no esverdeado mar do Rio Grande do Norte, os ecólogos Natália Roos e Guilherme Longo ouviram do pescador que pilotava o barco: “É aqui. Podem descer.” A dupla se equipou, então, com cilindros de ar e outros acessórios de mergulho para mais um dia de contagem dos budiões-azuis, peixes cujas escamas celestes contrastam com os marrons e amarelos dos recifes onde vivem. Por causa do formato de suas bocas, dão a impressão de estar sempre sorrindo ou de ter o bico de uma ave. Daí também serem conhecidos como peixes-papagaio.
O budião-azul, no entanto, não tem nenhum motivo para sorrir. Desde o fim de 2014, figura na Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção. Enquanto os cientistas mergulhavam, registrando a quantidade e o tamanho dos peixes que encontravam pelo caminho, um arpão acertou em cheio um dos animais. O tiro não partiu de um pescador, o principal predador dos budiões, e sim do biólogo Tiego Costa. Por mais contraditório que pareça, os ecólogos o convocaram para abater o bicho e, assim, ajudá-los a salvar a espécie.
A caça – autorizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio – repetiu-se de julho de 2016 a março de 2018 e possibilitou que Natália Roos concluísse o doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2019. Os professores Adriana Carvalho, do Departamento de Ecologia, e Guilherme Longo, do Departamento de Oceanografia, orientaram o estudo. Ele também se juntou a Roos nas quase trinta expedições de pesquisa pela costa potiguar, o segundo lugar do país em que os budiões-azuis se revelam mais abundantes, atrás apenas de Abrolhos, arquipélago no Sul da Bahia. Ao realizar o censo demográfico do peixe, que constatou sua idade média, sua localização e a velocidade de sua reprodução, a doutoranda queria descobrir como a pesca vem afetando o animal e o que se pode fazer para evitar que ele desapareça do planeta, uma vez que a espécie só existe no Brasil.
Anualmente, 9 toneladas de budiões-azuis são retiradas do oceano no Rio Grande do Norte. A população do peixe caiu cerca de 50% ao longo das últimas três décadas. “Quanto mais informações precisas a gente tiver sobre a espécie, melhor conseguiremos planejar a conservação dela”, afirma a ecóloga, que estuda o assunto há sete anos.
Dos 95 budiões-azuis analisados na pesquisa, 23 foram pegos com arpão durante os mergulhos. Os demais vieram de mercados potiguares. Guilherme Longo até tentou capturar um dos exemplares por conta própria, mas fracassou. “Fiquei com pena na hora de atirar e acabei errando.” Natália Roos nem quis tentar.
Sem o sacrifício dos budiões, seria impossível entender como anda a vida deles. Após horas de trabalho embaixo d’água, os cientistas abriam os peixes no laboratório e lhes retiravam duas estruturas: os otólitos, ossinhos localizados dentro do ouvido, e as gônadas, órgãos sexuais que lembram vasos sanguíneos bifurcados.
À semelhança do tronco de uma árvore, o otólito tem “anéis de crescimento”, que se revelam somente quando o ossinho é cortado com uma roda de lapidação de diamante. Tais círculos vão se desenhando no interior de cada otólito, ano após ano. A idade dos budiões equivale, assim, ao número de anéis existentes dentro da estrutura. O mais velho dos animais pesquisados tinha 7 anos, embora se saiba que o peixe pode chegar aos 20. Já as gônadas, quando examinadas no microscópio, mostram se o indivíduo em questão era fêmea ou macho, e se já estava maduro para se reproduzir.
Os budiões-azuis nascem nos recifes próximos à costa, que funcionam como berçários, e se abrigam nos recifes mais distantes depois de crescidos. Mas eles raramente conseguem mudar de hábitat. Como a espécie demora mais que a maioria das outras para atingir a maturidade – pelo menos quatro anos – e como a pesca costuma se dar justamente nos berçários, o bicho é pego antes de alcançar a puberdade, época em que começa a migrar. Por isso, 80% dos indivíduos pescados no Rio Grande do Norte não chegaram a procriar, segundo a pesquisa. Sem se reproduzir, o peixe tende a desaparecer aos poucos. “É como se você ganhasse 500 reais por mês e gastasse 1 mil. O budião está sempre no vermelho”, compara Longo.
A entrada na lista dos animais brasileiros ameaçados de extinção fez com que a captura dessa e de outras espécies em risco, a exemplo de alguns cações e badejos, fosse proibida. Mas a pressão do setor pesqueiro logo derrubou a medida. Na tentativa de estabelecer um equilíbrio entre a restrição total da pesca e o colapso dos bichos, o Ministério do Meio Ambiente elaborou planos de manejo sustentável para diferentes tipos de peixes, incluindo o budião-azul.
Pelas novas regras, a captura só pode ser feita por pescadores autorizados, em áreas específicas e com arpão. Antes de atirar, eles devem conferir o tamanho do animal, que precisa ter entre 39 cm e 63 cm de comprimento, para garantir a sobrevivência dos exemplares em fase reprodutiva. A previsão era de que o plano entrasse em vigor no ano passado, o que não ocorreu. “Os pescadores nem ficaram sabendo dessas coisas. Tudo continua acontecendo como se os budiões não estivessem à beira de desaparecer”, lamenta Roos. Para a pesquisadora, sem o diálogo com os trabalhadores do ramo e o monitoramento constante do que é retirado do mar, o governo não conseguirá impedir a extinção.
Jonildo Santana comandou doze das explorações científicas pelo litoral potiguar. Nascido e criado em Rio do Fogo, município a 60 km de Natal, começou a pescar com 13 anos, seguindo os passos do pai. “Tem muita gente que gosta do budião-azul por aqui. De sabor, ele parece o sirigado”, conta, usando o nome que se dá ao badejo na região. Não fosse pelo conhecimento de profissionais como Santana – que navegam sem bússola ou GPS –, a dupla de ecólogos da “cidade grande” teria sofrido para encontrar os peixes.
Graças à bocarra sorridente, o budião é capaz de arrancar bons pedaços de corais e algas da superfície dos recifes. Abre, dessa maneira, espaço para que outras espécies cheguem ali e se estabeleçam, ajudando a manter a diversidade daqueles hábitats. Caso o animal desapareça, não apenas a rotina dos corais e das algas irá se modificar, mas também a de lagostas, polvos e demais bichos que frequentam os recifes. O prejuízo, além de ambiental, será econômico. Os pescadores sentirão o baque tanto quanto o setor de turismo – afinal, quem vai querer mergulhar se as paisagens marinhas ficarem cada vez menos heterogêneas e coloridas?
Em entrevista pelo Skype, quando indagados se têm esperança de que a espécie abandone a lista dos animais em perigo, Roos e Longo deixam escapar um suspiro de desalento. “Esse é o tipo de coisa que menos interessa ao governo atual. Eu simplesmente não sei o que vai acontecer”, diz a ecóloga. Guilherme Longo concorda: “Estamos vendo a história se repetir. Nós já acabamos com tantas outras espécies… Depois do budião-azul, qual será a próxima?”
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