"Você precisa resistir ao conforto de uma narrativa consoladora. As vidas dos escravos não foram capítulos da sua redenção. Mas não pode esquecer como transfiguraram nossos corpos mesmos em açúcar, tabaco, algodão e ouro" ILUSTRAÇÃO: ETHAN RILLY
Não controlamos o destino de nossos corpos
Um jovem escritor explica, numa carta ao filho, o que significa ser negro na América
Ta-Nehisi Coates | Edição 108, Setembro 2015
Eis aqui como tudo começou: certa manhã, acordei com uma pequena dor de cabeça. A cada hora a dor de cabeça aumentava. Eu estava indo para o trabalho quando vi a garota a caminho da escola. Meu aspecto era horrível, ela me deu um Advil e continuou seu trajeto. No meio da tarde, eu mal me aguentava em pé. Chamei meu supervisor. Quando ele chegou, eu estava deitado no depósito, porque não tinha ideia do que poderia fazer além disso. Eu estava com medo. Não entendia o que estava acontecendo. Não sabia a quem recorrer. Estava ali deitado, ardendo em febre, semiacordado, na esperança de me recuperar. Meu supervisor bateu à porta. Alguém tinha vindo me ver. Era ela. A garota de longas tranças rastafári me ajudou a sair e ir para a rua. Ela acenou para um táxi. A meio caminho da corrida eu abri a porta, com o táxi em movimento, e vomitei na rua. Mas me lembro dela me segurando para ter certeza de que eu não ia cair e depois me amparando quando terminei. Ela me levou para a casa dela, uma casa cheia de pessoas amorosas, me pôs na cama, colocou Exodus no tocador de CDS ajustando o volume ao nível de um sussurro. Deixou um balde junto à cama. Deixou um jarro com água. Ela tinha que ir para a aula. Eu dormi. Quando ela voltou, eu estava novamente em forma. Comemos. A garota de tranças longas que dormia com quem ela quisesse, sendo esse o seu jeito de demonstrar que controlava o próprio corpo, estava lá. Eu tinha crescido numa casa regida entre o amor e o medo. Não havia espaço para a suavidade. Mas essa garota de longas tranças demonstrava outra coisa – que o amor pode ser leve e compreensivo; que, suave ou duro, o amor era um ato de heroísmo.
E eu não podia mais prever onde encontraria meus heróis. Às vezes eu caminhava com amigos até a rua U[1] e circulava pelos clubes de lá. Era a época da Bad Boy e do Biggie, One More Chance e Hypnotize. Eu quase nunca dançava, por mais que quisesse. Aleijava-me um medo infantil de meu próprio corpo. Mas eu observava como os negros se moviam, como nesses clubes eles dançavam como se seus corpos pudessem fazer tudo, e seus corpos pareciam ser tão livres como a voz de Malcolm X. Lá fora os negros não controlavam nada, e muito menos o destino de seus corpos, que podiam ser requisitados pela polícia; que podiam ser apagados pelas armas, tão pródigas; que podiam ser estuprados, espancados, encarcerados. Mas nos clubes, sob a influência de rum e Coca-Cola na proporção de dois para um, no encantamento das luzes baixas, sob o domínio do hip-hop, eu os sentia no controle total de cada passo, cada aceno, cada giro.
Tudo que eu queria então era escrever da mesma maneira que essa gente negra dançava, com controle, poder, alegria, calor. Eu estava assistindo intermitentemente às aulas em Howard[2]. Sentia que era o momento de ir embora, de me declarar formado, se não pela universidade, pela Meca[3] da universidade. Eu estava publicando resenhas musicais, artigos e ensaios no jornal alternativo local, e isso significava contatos com mais seres humanos. Eu tinha editores – eram também meus professores – e eles foram as primeiras pessoas brancas que vim a conhecer de verdade, pessoalmente. Eles desafiaram minhas ideias preconcebidas – não temiam por mim e não tinham medo de mim. Em vez disso, viam em minha desregrada curiosidade e em minha brandura algo a ser apreciado e aproveitado. E eles me deram a arte do jornalismo, uma poderosa tecnologia para quem está em busca de algo. Eu fazia reportagens locais em D.C., e descobri que as pessoas me contavam coisas, que a mesma brandura que uma vez fizera de mim um alvo agora compelia as pessoas a confiar a mim suas histórias. Isso foi incrível. Eu mal tinha saído das brumas da infância, na qual as perguntas simplesmente morriam em minha cabeça. Agora eu podia ligar para as pessoas e perguntar por que uma loja popular tinha fechado, por que um show tinha sido cancelado, por que havia tantas igrejas e tão poucos supermercados. O jornalismo havia me dado outra ferramenta de exploração, outro modo de desvendar as leis que restringiam meu corpo. As coisas estavam começando a fazer sentido – embora eu ainda não conseguisse enxergar o que eram “as coisas”.
Na biblioteca de Moorland[4] pude explorar as histórias e as tradições. Do lado de fora, nos pátios do campus e com acesso a pessoas e grupos, pude ver essas tradições na prática. E com o jornalismo, pude perguntar diretamente às pessoas sobre as duas coisas – ou sobre qualquer outro assunto que eu quisesse saber. E constatar que grande parte da minha vida tinha sido definida pelo não saber. Por que eu vivi num mundo no qual garotos adolescentes ficavam no estacionamento de lojas de conveniência sacando armas? Por que para meu pai era normal, como era para todos os pais que eu conhecia, tirar o cinto? E porque a vida era tão diferente aqui fora [dos bairros negros], neste outro mundo além dos asteroides? Por que as pessoas cujas imagens uma vez foram transmitidas para dentro da minha sala de estar tinham o que eu não tinha?
A garota de tranças longas que operou uma mudança em mim, a quem eu tanto queria amar, amava um garoto em quem eu penso todo dia e em quem espero pensar a cada dia pelo resto de minha vida. Às vezes penso que ele era uma invenção, e de certo modo ele é, porque quando os jovens são mortos eles são aureolados por todos os motivos possíveis, por tudo que foi arrancado deles. Mas sei que eu sentia amor por esse garoto, Prince Jones, e por isso eu sorria toda vez que o via, pois sentia o calor que dele irradiava, e ficava um pouco triste quando chegava o momento de fazer entregas e um de nós tinha que ir. Uma dica para entender quem era Prince Jones é saber que ele era tudo aquilo que seu nome exprimia. Era bonito. Era alto e negro de pele clara, de compleição esguia e forte, como um wide receiver[5]. Era filho de um médico eminente. Era evangélico, condição da qual não compartilho mas respeito. Dele irradiava generosidade, e parecia se relacionar com facilidade com todas as pessoas e todas as coisas. Isso pode nunca ser completamente verdadeiro, mas há pessoas que criam essa ilusão sem o menor esforço, e Prince era uma delas. Só posso relatar o que vi, o que senti. Há pessoas que não conhecemos completamente, e ainda assim elas vivem em um cálido lugar dentro de nós, e quando são saqueadas, quando perdem seus corpos e a energia escura se dispersa, o lugar em que estavam torna-se uma ferida.
Eu me apaixonei na Meca uma última vez, perdi meu equilíbrio e toda a minha confusão de infância, sob o feitiço de uma garota de Chicago. Era a sua mãe, filho. Eu me vejo lá de pé com um grupo de amigos na sala de estar da casa dela. Eu tinha um baseado em uma das mãos e na outra uma cerveja. Eu traguei, passei o baseado a essa garota de Chicago, e quando toquei naqueles dedos longos e elegantes, estremeci um pouco da explosão que senti. Ela levou o cigarro aos lábios pintados de ameixa, tragou, exalou, depois aspirou novamente a fumaça. Uma semana antes eu a tinha beijado, e agora, olhando para essa exibição de fumaça e fogo (e já sentindo os efeitos), eu estava perdido, à deriva e imaginando como seria abraçá-la, ser exalado por ela, retornar a ela, e deixá-la inebriada.
Ela não havia conhecido o pai, o que a colocava na companhia do maior número de “todo mundo” de que eu tinha notícia. Senti então que esses homens – esses “pais” – eram os maiores covardes. Mas também senti que a galáxia estava jogando com dados adulterados, o que propiciava um excesso de covardes em nossas fileiras. A garota de Chicago também compreendia isso e compreendia algo mais – que não somos todos roubados de nossos corpos de maneira equivalente, que os corpos das mulheres são expostos à pilhagem de modos que eu nunca poderia realmente conhecer. E ela era o tipo de garota negra a quem tinham dito quando criança que era melhor ficar esperta, porque sua aparência não a salvaria, e a quem depois tinham dito, quando se tornou mulher, que era realmente bonita para uma garota de pele escura. E assim havia, no caso dela, um conhecimento das injustiças cósmicas, o mesmo conhecimento que eu vislumbrei durante todos aqueles anos ao ver meu pai pegar seu cinto, ao assistir às notícias de homicídios em nossa sala de estar, ao observar os garotos de cabelos dourados com seus caminhões de brinquedo e suas figurinhas de futebol, e percebendo obscuramente a grande barreira existente entre o mundo e mim.
Nada entre nós foi planejado – nem mesmo você. Tínhamos ambos 24 anos quando você nasceu, idade normal para a maioria dos americanos, mas, entre nossos colegas de classe, éramos classificados como pais adolescentes. Sentíamos um sopro de medo, quando frequentemente nos perguntavam se pretendíamos casar. O casamento nos era apresentado como um escudo de defesa contra outras mulheres, outros homens, ou a corrosiva monotonia de meias sujas e de lavar a louça. Mas sua mãe e eu conhecíamos muita gente, muita mesmo, que tinha casado e abandonado um ao outro por muito menos. Nossa verdade sempre foi a de que você era nossa aliança de casamento. Nós o tínhamos convocado para fora de nós mesmos, e você não teve direito a voto. Mesmo que fosse só por esse motivo, você merecia toda a proteção que pudéssemos oferecer. Tudo mais estava subordinado a esse fato. Se isso soa como um ônus, não deveria. A verdade é que devo a você tudo o que tenho. Antes de você, eu tinha minhas questões, mas nada além de minha própria pele estava em jogo, e isso na realidade não era nada, porque eu era jovem e ainda não via claramente minhas próprias vulnerabilidades como ser humano. Mas estava instruído e domesticado pelo simples fato de que, se eu agora caísse, não cairia sozinho.
Foi isso que disse a mim mesmo, finalmente. Era confortador acreditar que o destino de meu corpo e dos corpos de minha família estava em meu poder. “Você terá de se tornar um homem”, dizemos a nossos filhos. “Qualquer um pode fazer um filho, mas é preciso ser homem para ser um pai.” Isso é o que eles me disseram durante toda a minha vida. Essa era a linguagem da sobrevivência, um mito que nos ajudava a lidar com o sacrifício humano que acaba nos alcançando, apesar de nossa hombridade. Como se nossas mãos fossem sempre realmente nossas. Como se a pilhagem de energia escura não estivesse no coração de nossa galáxia. E a pilhagem estava aqui, se eu quisesse vê-la.
Certo verão, fui a Chicago ver sua mãe. Desci a rodovia Dan Ryan com amigos e contemplei, pela primeira vez, o State Street Corridor – uma extensão de mais de 6 quilômetros de conjuntos habitacionais decadentes. Havia moradias populares desse tipo por toda Baltimore, mas nada tão abrangente. Essas moradias me pareceram um desastre moral não apenas para as pessoas que lá viviam, mas para toda a região, uma metrópole de pessoas que se transportam todo dia de suas casas para o trabalho e passam por ali, e que com sua muda aquiescência toleram uma coisa dessas. Mas nesses prédios havia muito mais do que eu, mesmo com toda a minha curiosidade, estava preparado para ver.
Sua avó materna uma vez nos visitou durante a gravidez. Ela deve ter ficado horrorizada. Estávamos morando em Delaware. Não tínhamos quase nenhum móvel. Eu havia saído de Howard sem me formar e vivia dos minguados salários de um escritor freelancer. No último dia de sua visita, levei sua avó ao aeroporto. Sua mãe era filha única, assim como você é meu único filho. E tendo visto você crescer, sei que para sua avó nada poderia ser mais precioso. Ela me disse: “Tome conta da minha filha.” Quando ela saiu do carro, meu mundo tinha mudado. Senti que tinha transposto algum limiar, saindo do vestíbulo de minha vida e entrando na sala de estar.Isso foi antes de você, e então houve o depois, e nesse depois você foi o Deus que eu nunca tinha tido. Eu me sujeitava às suas necessidades, e soube então que tinha de sobreviver por algo maior que o próprio motivo da sobrevivência. Eu tinha que sobreviver por você.
Você nasceu naquele agosto. Pensei no grande espectro humano da Meca– pessoas negras de Belize, pessoas negras com mães judias, pessoas negras com pais de Bangalore, pessoas negras de Toronto e de Kingston, pessoas negras que falavam russo, que falavam espanhol, que tocavam Mongo Santamaría, que sabiam matemática e que trabalhavam em laboratório de análise de ossos para desenterrar os mistérios que envolvem os escravizados. Havia lá mais do que sempre esperei, e eu queria que você o tivesse. Queria que você soubesse que o mundo, em sua inteireza, nunca poderá ser encontrado nas escolas apenas, nem nas ruas apenas, nem no estojo de um troféu. Queria que você reivindicasse para si o mundo inteiro, como ele é. Queria que uma afirmação como “Tolstói é o Tolstói dos zulus” fosse imediatamente óbvia para você. Contudo, mesmo nesse desejo cosmopolita eu sinto a antiga força da ancestralidade, porque vim a conhecer na Meca o que meus ancestrais fizeram, e fui compelido para a Meca pelo esforço e a luta de meus ancestrais.
Essa luta está em seu nome, Samori – em homenagem a Samori Touré, que lutou contra os colonizadores franceses na África pelo direito a seu próprio corpo negro. Ele morreu no cativeiro, mas os frutos dessa luta e de outras como essa são nossos, mesmo quando o objetivo de nossa luta, como tão frequentemente acontece, nos escapa das mãos. Aprendi isso vivendo num povo que eu nunca teria escolhido, porque os privilégios de ser negro nem sempre são evidentes por si mesmos. Somos, como Derrick Bell[6] escreveu certa vez, os “rostos no fundo do poço”. Mas há realmente sabedoria aqui embaixo, e essa sabedoria responde por muito do que há de bom em minha vida. E minha vida aqui embaixo diz respeito a você.
Também havia sabedoria naquelas ruas. Estou pensando agora em uma antiga regra que dizia que, se um garoto fosse atacado por estar casualmente num “gueto” alheio, seus amigos deveriam ficar com ele e deviam todos enfrentar juntos a pancadaria. Sei agora que nesse édito jaz a chave de toda uma vida. A nenhum de nós foi prometido que estaremos de pé ao final da luta, os punhos erguidos para o céu. Não podemos controlar o número de nossos inimigos, sua força ou seu armamento. Às vezes deparamos com uma situação bem ruim. Mas quer se lute quer se corra devemos fazer isso juntos, porque essa é a parte que está sob nosso controle. O que nunca devemos fazer é entregar voluntariamente nossos próprios corpos ou os corpos de nossos amigos. Esta é a sabedoria: sabemos que não fomos nós que estabelecemos a direção da rua, mas apesar disso podemos – e devemos – conceber o rumo de nossa caminhada. E é este o sentido mais profundo de seu nome – o de que a luta, em si e por si mesma, tem significado.
Essa sabedoria não é exclusiva de nosso povo, mas penso que ela tem um sentido especial para aqueles de nós que nasceram de um estupro em massa, cujos antepassados foram levados à força, distribuídos como apólices e ações. Eu eduquei você no respeito a todo ser humano como indivíduo, e você deve estender o mesmo respeito ao passado. A escravidão não é uma indefinível massa de carne. É uma mulher escravizada particular e específica, cuja mente é tão ativa quanto a sua, e a abrangência dos sentimentos dela é tão vasta quanto a sua; uma mulher que prefere a maneira com que a luz incide num determinado local da floresta, que gosta de pescar onde a água redemoinha num riacho próximo, que ama a mãe à sua própria e complicada maneira, acha que a irmã fala alto demais, tem um primo predileto, uma estação do ano predileta, que se destaca ao criar e fazer vestidos, e que sabe, bem dentro dela, que é tão inteligente e capaz quanto qualquer um.
“Escravidão” é essa mesma mulher nascida num mundo que proclama em voz alta seu amor à liberdade e inscreve esse amor em seus textos fundamentais, um mundo no qual os mesmos professores mantêm essa mulher como escrava, mantêm a mãe dela como escrava, seu pai como escravo, sua filha como escrava, e quando essa mulher olha para trás por meio de gerações, tudo o que ela vê são os escravizados. Ela pode ter esperança. Pode imaginar outro futuro para seus netos. Mas quando ela morre, o mundo – que na realidade é o único mundo que ela jamais poderia conhecer – termina. Para essa mulher, a escravidão não é uma parábola. É a danação. É a noite que nunca termina. E a duração dessa noite constitui a maior parte de nossa história. Nunca se esqueça de que estivemos escravizados neste país por mais tempo do que temos sido livres. Nunca se esqueça de que durante 250 anos as pessoas negras nasciam acorrentadas – gerações inteiras seguidas de mais gerações que nada conheciam além de suas correntes.
Você deve se esforçar para lembrar esse passado com todas as suas nuances, seus erros e sua humanidade. Você tem que resistir ao impulso tão comum de encontrar uma narrativa confortadora com base nalguma lei divina, em algum conto de fadas sobre a inexorabilidade da justiça. Os escravizados não foram tijolos que pavimentaram o seu caminho, e a vida deles não foram capítulos em sua história de redenção. Eles foram pessoas transformadas em combustível para a máquina americana. A escravidão não estava destinada a terminar, e é errado considerar nossa situação atual – não importa o quanto ela tenha melhorado – como a redenção da vida de pessoas que nunca pediram para si a glória póstuma e intangível de morrer por seus filhos. Nossas conquistas nunca serão uma compensação por isso. Talvez nossas conquistas nem sejam a verdadeira questão. Talvez tudo que tenhamos seja a luta, porque o deus da história é ateu, e nada que diga respeito ao seu mundo, à história, deveria necessariamente ser como é. Assim, você deve acordar toda manhã sabendo que nenhuma promessa é isenta de ser quebrada, e menos ainda a promessa de simplesmente acordar. Isso não é desespero. Essas são as preferências do próprio universo: verbos acima de substantivos, ações acima de estados, luta acima da esperança.
O surgimento de um mundo melhor não depende, em última análise, de você, embora eu saiba que todos os dias há homens e mulheres adultos que lhe dizem o contrário. O mundo precisa de salvação exatamente por causa das ações desses mesmos homens e mulheres. Não sou um cínico. Eu amo você, e amo o mundo, e o amo mais a cada centímetro novo que descubro. Mas você é um menino negro, e você precisa ser responsável por seu corpo de uma maneira que outros garotos nunca poderão saber. Na verdade, você também será responsável pelas piores ações de outros corpos negros, que, de algum modo, sempre serão atribuídas a você. E você terá de ser responsável pelos corpos dos poderosos – o policial que bate em você com um cassetete encontrará com facilidade algum pretexto em seus movimentos furtivos. E isso não se reduz a você – as mulheres a sua volta devem ser responsáveis pelos seus corpos de uma maneira que você jamais conhecerá. Você tem de fazer as pazes com o caos, mas não pode mentir. Não pode esquecer o quanto eles tiraram de nós e como transfiguraram nossos corpos mesmos em açúcar, tabaco, algodão e ouro.
Pouco antes de você nascer, dirigindo, fui obrigado a encostar o carro pela polícia do condado de Prince George, a mesma polícia sobre a qual os poetas de D.C. tinham-me advertido. Eles se aproximaram pelos dois lados do carro, a luz de suas lanternas atravessando os vidros das janelas. Pegaram meus documentos e voltaram para o carro de patrulha. Eu fiquei ali sentado, aterrorizado. Àquela altura eu tinha acrescentado às advertências dos meus professores tudo o que sabia sobre o condado de Prince George lendo relatos e notícias de jornal. E assim eu sabia que a polícia do condado de PG tinha matado Elmer Clay Newman e depois alegado que ele tinha batido a própria cabeça contra a parede de uma cela na prisão. E sabia que tinham atirado em Gary Hopkins e dito que ele tentou agarrar a arma de um policial. E sabia que tinham espancado Freddie McCollum Jr. até ele ficar cego de um olho, e alegaram que ele havia caído de um sótão. E tinha lido relatos desses policiais estrangulando mecânicos, atirando em operários de construção, jogando suspeitos através das portas de vidro de um shopping center. E sabia que faziam isso com grande regularidade, como se movidos por algum relógio cósmico invisível. Sabia que atiravam em carros em movimento, atiravam em pessoas desarmadas, atiravam em homens pelas costas e alegavam que eles, policiais, é que tinham estado sob fogo. Esses atiradores foram investigados, exonerados, e logo voltaram para as ruas onde, assim blindados, atiravam novamente. Nessa altura da história americana, nenhum departamento de polícia disparava suas armas mais do que o do condado de Prince George. O FBI abriu várias investigações – às vezes mais de uma na mesma semana. O chefe de polícia foi agraciado com um aumento de salário. Eu repassava tudo isso sentado ali no meu carro, nas garras deles. Seria melhor levar um tiro em Baltimore, onde havia a justiça das ruas e alguém poderia acertar contas com o assassino. Mas esses policiais tinham o meu corpo, podiam fazer com meu corpo o que bem entendessem, e se eu sobrevivesse para contar o que eles tinham feito comigo, a queixa não significaria nada. O policial voltou. Ele devolveu minha licença. Não explicou por que me havia feito parar.
Depois, naquele mês de setembro, peguei o Washington Post e vi que a polícia do condado de PG tinha matado novamente. Não consegui evitar o pensamento de que poderia ter sido eu, e segurando você – você tinha 1 mês de vida – eu sabia que essa perda não seria somente minha. Olhei só de relance a manchete – as atrocidades que praticavam pareciam ser muito comuns na época. A história se espalhou no dia seguinte, e lendo um pouco mais detalhadamente, vi que quem tinha sido morto era um estudante de Howard. Pensei que talvez o conhecesse. Mas não dei mais atenção ao caso. Três dias depois foi publicada uma foto junto com a história, dei uma olhada e então me foquei mais no retrato – e lá estava ele. Vestia roupas formais, como se estivesse em seu baile de formatura, petrificado no âmbar de sua juventude. Seu rosto era magro, marrom e bonito, e em seu rosto eu via o sorriso aberto e fácil de Prince Carmen Jones Jr.
Não consigo me lembrar do que aconteceu depois. Acho que caí para trás. Acho que contei para sua mãe o que tinha lido. Acho que liguei para a garota de tranças longas e perguntei se era verdade. Acho que ela gritou. Me lembro com certeza é do que senti: fúria, e a antiga força da gravidade da parte oeste de Baltimore, a gravidade que me condenou às escolas, às ruas, ao vazio. Prince Jones tinha superado tudo isso, e ainda assim eles o mataram. E mesmo sabendo que eu nunca acreditaria em nenhum relato que justificasse o que tinha acontecido, eu me sentei e li a história. Havia bem poucos detalhes. Ele tinha sido alvejado por um policial do condado de PG, não no próprio condado, nem mesmo em D.C., mas em algum lugar no norte da Virginia. Prince estava de carro indo ver sua noiva. Foi morto a alguns metros da casa dela. A única testemunha da morte de Prince Jones era o próprio matador. O policial alegou que Prince tinha tentado atropelá-lo com seu jipe, e eu sabia que os promotores acreditariam nele.
Dias depois, sua mãe e eu colocamos você no carro, seguimos para Washington, deixamos você com sua tia Kamilah e fomos ao funeral de Prince na capela Rankin, no campus de Howard, onde no passado eu assistia maravilhado ao desfile de ativistas e intelectuais – Joseph Lowery, Cornel West, Calvin Butts– que pregavam naquele púlpito. Lá devo ter encontrado um grande número de velhos amigos, embora não consiga lembrar exatamente quem eram. Do que me lembro é de todas as pessoas que falaram sobre a devoção religiosa de Prince, sua permanente crença de que Jesus estava com ele. Lembro-me de ter visto o reitor da universidade levantar-se e chorar. Lembro-me da dra. Mabel Jones, mãe de Prince, falando da morte do filho como um chamado para que ela saísse de sua confortável vida de classe média para o ativismo. Ouvi várias pessoas pedindo que se perdoasse o policial que tinha matado a tiros Prince Jones. Só me lembro vagamente de minhas impressões diante de tudo isso. Mas sei que sempre me senti muito distante dos rituais de luto do meu povo, e devo ter sentido isso poderosamente naquela ocasião. A necessidade de perdoar o policial não me teria tocado, porque mesmo então, de algum modo incipiente e rudimentar, eu sabia que Prince não fora assassinado por um único policial, mas fora assassinado por seu país e por todos os medos que o marcavam desde seu nascimento.
Nos últimos tempos a expressão “reforma da polícia” entrou em voga, e as ações de nossos guardiões públicos têm atraído a atenção presidencial e a de todos que andam nas ruas. Você deve ter ouvido as conversas sobre diversidade, sensibilidade, treinamento, câmeras presas aos corpos de policiais. Tudo isso é muito bom e exequível, mas minimiza o que tem de ser feito, e permite que os cidadãos deste país finjam que existe uma grande distância entre suas próprias atitudes e as daqueles que são designados para protegê-los. A verdade é que a polícia é um reflexo da América em toda a sua vontade e determinação e em todo o seu medo, e a despeito que possamos achar da política de segurança pública deste país, não se pode dizer que ela foi imposta por uma minoria repressiva. Os abusos que se seguiram a essas políticas – o estado carcerário em expansão, a detenção aleatória de pessoas negras, a tortura de suspeitos – são produtos de uma vontade democrática. Assim, desafiar a polícia é desafiar o povo americano que a enviou aos guetos armada com os mesmos medos autoinduzidos que compeliram as pessoas que pensam que são brancas a fugir das cidades e ir para o Sonho [dos subúrbios de classe média]. O problema com a polícia não é que eles sejam porcos fascistas, mas que nosso país seja governado por porcos majoritários.
Mesmo naquele momento, sentado na capela Rankin, eu já sabia algo disso tudo, embora não pudesse ainda expressá-lo. Assim, perdoar o matador de Prince Jones teria sido para mim algo irrelevante. O matador era a expressão direta das crenças de todo este país. Educado com consciência, na rejeição do Deus cristão, eu não podia enxergar um propósito maior na morte de Prince. Eu acreditava, e ainda acredito, que nossos corpos são nossos próprios eus, que minha alma é a voltagem conduzida por meus neurônios e nervos, e que meu espírito é minha carne. Prince Jones era um sujeito único, e eles tinham destruído seu corpo, chamuscado seus ombros e seus braços, rasgado suas costas, estraçalhado pulmão, rim e fígado. Eu fiquei ali sentado, me sentindo um herege que só acredita nesta – e única – vida, e no corpo. Para o crime de destruir o corpo de Prince Jones, não acredito em perdão. Quando as pessoas em luto reunidas ali inclinaram suas cabeças em oração, eu estava apartado delas porque não acreditava que do vazio viesse uma resposta.
Passaram-se semanas. Detalhes repugnantes começaram lentamente a vazar. O policial era conhecido como mentiroso. Um ano antes tinha prendido um homem com base em provas falsas. Promotores se viam obrigados a abandonar cada caso no qual o policial estava envolvido. Ele fora demitido, readmitido, depois alocado na rua para continuar seu trabalho. Agora, por intermédio de relatos adicionais, uma narrativa começou a tomar forma. O policial se disfarçara de traficante de drogas. Fora escalado para seguir um homem que tinha 1,63 metro de altura e pesava 113 quilos. Sabemos, do médico legista, que o corpo de Prince tinha mais de 1,90 metro de altura e pesava 96 quilos. Sabemos que o outro homem foi depois preso. As acusações contra ele foram retiradas. Nada disso teve importância. Sabemos que seus superiores mandaram esse policial seguir Prince desde Maryland, passando por Washington D.C. e até a Virgínia, onde ele atirou em Prince diversas vezes. Sabemos que o policial confrontou Prince com a arma na mão, e sem distintivo. Sabemos que o policial alega ter atirado porque Prince tentara atropelá-lo com seu jipe. Sabemos que as autoridades encarregadas de investigar o caso fizeram muito pouco para investigar o policial e fizeram tudo que estava em seu poder para investigar Prince Jones. Essa investigação não produziu nenhuma informação que explicasse por que Prince Jones mudaria repentinamente suas ambições universitárias para a de matança de policiais. O policial, a quem se outorgara um poder máximo, arcou com um mínimo de responsabilidade. Não foi acusado de nada. Não foi punido por ninguém. Foi reconduzido ao trabalho.
Havia vezes em que eu me imaginava, assim como Prince, perseguido através de muitas jurisdições por um homem vestido como um criminoso. E ficava horrorizado, pois sabia o que iria fazer se esse homem me confrontasse, com uma arma na mão, a alguns metros da casa de minha própria família. Tome conta de meu bebê, diria sua avó, o que vale dizer: Cuide de sua nova família. Mas agora conheço os limites de meus cuidados, o alcance de seus poderes, delineados por um inimigo tão antigo quanto o estado da Virgínia. Pensei em todas as belas pessoas negras que eu via na Meca, toda a sua variedade, todos os seus cabelos, todas as suas línguas, todas as suas histórias e geografias, toda a sua incrível humanidade, e nada disso poderia salvá-las da marca da pilhagem e da gravidade de nosso mundo particular. E ocorreu-me então que você não escaparia, que havia homens horríveis que tinham feito planos para você, e eu não conseguiria detê-los. Prince Jones foi o superlativo de todos os meus medos. E se ele, um bom cristão, nobre rebento de uma classe esforçada, santo padroeiro da lógica que diz que os negros devem ser “duas vezes melhores” para alcançar o mesmo que os brancos, podia ser imobilizado para sempre, quem não poderia ser?
E a pilhagem não era só e unicamente a de Prince. Pense em todo o amor que foi investido nele. Pense nos pagamentos à escola Montessori e às aulas de música. Pense na gasolina despendida, nos pneus gastos para levá-lo aos jogos de futebol americano, torneios de basquete, à liga infantil de beisebol. Pense no tempo empregado administrando as festas de pijama. Pense nas festas-surpresa de aniversário, na creche, no controle das baby-sitters. Pense nas enciclopédias World Book e Childcraft. Pense nos cheques preenchidos para fotos de família. Pense nos cartões de crédito debitados durante as férias. Pense em bolas de futebol, kits de experimentos científicos e de química, autoramas e trens de brinquedo. Pense em todos os abraços, brincadeiras em família, costumes, cumprimentos, nomes, sonhos, todo o conhecimento partilhado e as capacidades de uma família negra injetados nesse vaso de carne e osso. E pense em como esse vaso foi arrebatado, estilhaçado no concreto, e todo o seu sagrado conteúdo, tudo que nele entrara, fluindo de volta para a terra. Pense em sua própria mãe, que não teve pai. E em sua avó, que foi abandonada pelo pai dela. E em seu avô, que foi deixado para trás pelo pai dele. E pense como a filha de Prince estava agora recrutada para essas fileiras solenes, bem como privada de seu direito nato – esse vaso que fora seu pai, o qual transbordava 25 anos de amor e tinha sido o investimento dos avós dela, e que seria seu legado.
Agora à noite, eu seguro você em meus braços e um grande medo, com a amplidão de todas as gerações americanas, me assalta. Agora entendo pessoalmente meu pai e o velho mantra – “Ou bato eu nele, ou bate a polícia.” Entendo isso tudo, os cabos e fios, os fios de extensão, o ritual do açoite. As pessoas negras amam seus filhos com uma espécie de obsessão. Você é tudo que temos, e você já nos chega em perigo. Penso que preferiríamos matar você nós mesmos a vê-lo morto pelas ruas que a América criou. Essa é a filosofia dos descorporificados, das pessoas que nada controlam, que nada podem proteger, que estão destinadas a temer não apenas os criminosos entre elas, mas também a polícia que age soberana acima delas com toda a autoridade moral de uma gangue de proteção. Foi somente depois de ter você que compreendi esse amor, que compreendi o aperto da mão de minha mãe. Ela sabia que a própria galáxia poderia me matar, que eu poderia, inteiro, ser despedaçado e todo o seu legado despejado no meio-fio como se fosse vinho de má qualidade. E ninguém seria acusado por essa destruição, porque minha morte não teria sido por culpa de qualquer ser humano, mas por culpa do desafortunado mas imutável fato da “raça”, imposto sobre um país inocente pelo inescrutável juízo de deuses invisíveis. Um terremoto não pode ser incriminado. Um tufão não se curvará a um indiciamento. Eles mandaram o matador de Prince Jones de volta ao trabalho porque ele não era absolutamente um matador. Ele era uma força da natureza, o desamparado agente das forças físicas de nosso mundo.
Todo esse episódio levou-me do medo à fúria que então ardeu em mim, que me anima agora, e provavelmente me deixará em fogo pelo resto de meus dias. Eu ainda tinha meu jornalismo. Minha reação, naquele momento, foi escrever. Eu tinha sorte de pelo menos poder fazer isso. A maioria de nós é forçada a engolir, pura, a caricatura de nós mesmos e a sorrir disso. Escrevi sobre a história da polícia do condado de Prince George. Nunca na vida algo tinha me parecido tão essencial quanto isso. Eis aí o que eu sabia para começar: o policial que matou Prince Jones era negro. Os políticos que outorgaram a esse policial o poder de matar eram negros. Muitos dos políticos negros, muitos deles “duas vezes melhores”, pareciam estar despreocupados. Como poderia ser? Era como se eu estivesse de volta, novamente em Moorland, chamado por grandes mistérios. Mas então eu já não precisava de fichas de requisição de livros na biblioteca; a internet já florescia como ferramenta de pesquisa. Isso deve surpreender você. Durante toda a sua vida, sempre que tiver uma pergunta você poderá digitar essa pergunta num teclado, vê-la aparecer num campo retangular bordejado pelo logo corporativo, e em segundos fazer uma festa com a inundação de possíveis respostas. Mas ainda lembro o tempo em que as máquinas de escrever eram úteis, o surgimento do computador pessoal Commodore 64, e os dias em que uma canção da qual você gostava teria seu momento no rádio e depois desapareceria no nada. Devo ter passado cinco anos sem ouvir as Mary Jane Girls cantando All Night Long. Para um homem jovem como eu, a invenção da internet foi a invenção da viagem espacial.
Minha curiosidade, no caso de Prince Jones, abriu-me um mundo de recortes de jornal, histórias e sociologias. Eu liguei para políticos e os interroguei. Disseram-me que era mais plausível que os cidadãos pedissem a ajuda da polícia do que reclamassem de sua brutalidade. Disseram-me que os cidadãos negros do condado PG estavam em situação confortável e que tinham “uma certa impaciência” com o crime. Eu já tinha visto essas teorias antes, quando fazia pesquisas em Moorland, folheando páginas cheias das várias lutas dentro e fora da comunidade negra. Eu sabia que essas eram teorias, mesmo na boca de pessoas negras, que justificavam as prisões que brotavam a minha volta, que defendiam os guetos e suas moradias populares, que viam a destruição do corpo negro como incidental na preservação da ordem. Segundo essa teoria, “segurança” é um valor maior que “justiça”, talvez o mais alto dos valores. Eu compreendi. O que eu não daria, lá atrás em Baltimore, para ter uma fileira de policiais, agentes de meu país e de minha comunidade, protegendo meu caminho até a escola! Não existiam tais oficiais, e sempre que via a polícia aparecer isso significava que algo já tinha dado errado. O tempo todo eu sabia que havia alguns, os que viviam no Sonho, para quem a conversa era outra. Sua “segurança” estava em escolas, portfólios e em arranha-céus. A nossa estava em homens com armas que só podiam nos olhar com o mesmo desdém da sociedade que os tinha enviado.
E a falta de segurança torna inevitável que seja limitada a sua percepção da galáxia. Nunca me ocorreu, por exemplo, que eu poderia, ou mesmo quereria, morar em Nova York. Eu gostava de Baltimore. Gostava de Charlie Rudo’s e das vendas de calçada em Mondawmin. Gostava de me sentar do lado de fora, na varanda, com seu tio Damani esperando Frank Ski tocar Fresh Is the Word. Eu sempre pensei que estava fadado a voltar para casa depois da faculdade – mas não simplesmente porque gostava de casa, mas porque não podia imaginar algo muito diferente para mim. E essa imaginação atrofiada é algo que devo às minhas correntes. E, contudo, alguns de nós realmente veem mais do que isso.
Conheci muitos destes na Meca – como seu tio Ben, que foi criado em Nova York, o que o forçava a compreender a si mesmo como um afro-americano navegando entre haitianos, jamaicanos, judeus hassídicos e italianos. E havia outros como ele, outros que, tendo recebido um empurrão de um professor, uma tia, um irmão mais velho, tinham espiado por sobre o muro quando crianças, e como adultos tornaram-se capazes de enxergar a vista completa. Essas pessoas negras sentiam, como eu, que seus corpos poderiam ser arrebatados para trás pelo simples capricho de alguém, mas isso provocava neles um tipo diferente de medo que os projetava no cosmo. Elas passavam semestres no estrangeiro. Nunca soube o que faziam, ou por quê.
Mas talvez eu sempre tivesse tido a sensação de que estava afundando muito facilmente. Talvez isso explique cada garota e toda garota que eu amei, porque cada garota que amei era a ponte para alguma outra coisa. Sua mãe, que conhecia o mundo melhor do que eu, apaixonou-se por Nova York através da cultura, através de Amor à Segunda Vista, Bonequinha de Luxo, Uma Secretária de Futuro, do rapper Nas e do grupo de hip-hop Wu-Tang. Sua mãe conseguiu um emprego lá, e eu fui com ela quase como um carona escondido, porque naquela época ninguém em Nova York me pagava para escrever muito sobre qualquer coisa. O pouco que eu fazia, resenhando um álbum ou um livro, só cobria umas duas contas de energia elétrica por ano.
Chegamos dois meses antes do 11 de setembro de 2001. Suponho que cada pessoa que estava em Nova York naquele dia tenha uma história para contar. Eis a minha: ao anoitecer, eu estava num terraço de um prédio de apartamentos com sua mãe, sua tia Chana e o namorado dela, Jamal. Lá estávamos nós no terraço, falando e olhando a vista – grandes nuvens de fumaça cobriam a ilha de Manhattan.Cada um conhecia alguém que conhecia alguém que tinha desaparecido. Mas ao olhar as ruínas da América meu coração estava frio. Eu tinha minhas próprias catástrofes. O policial que tinha matado Prince Jones, como todos os policiais que nos observam com desconfiança, era a espada da cidadania americana. Eu jamais seria considerado um cidadão americano puro. Eu estava fora de sincronia com a cidade. Fiquei pensando em como o sul de Manhattan sempre tinha sido, para nós, Ground Zero. Lá eles leiloavam os nossos corpos, no mesmo devastado, e assim corretamente intitulado, distrito financeiro. E ali houve uma vez um lugar de sepultamento para os leiloados. Eles construíram sobre parte dele uma loja de departamentos e depois tentaram erguer um prédio do governo em outra parte. Só foram detidos pela ação de uma comunidade de pessoas negras sensatas. Eu não tinha formado, de tudo isso, uma teoria coerente. Mas sabia que Bin Laden não havia sido o primeiro a levar o terror para essa parte da cidade. Nunca esqueci isso. Nem você deveria esquecer. Nos dias que se seguiram assisti à ridícula pompa das bandeiras, ao machismo dos bombeiros, aos desgastados slogans. Que se dane tudo. Prince Jones estava morto. E que vão para o inferno esses que nos dizem para sermos duas vezes melhores e assim mesmo atiram em nós. Que vá para o inferno esse medo ancestral que aterroriza os pais negros. E para o inferno os que despedaçam o vaso sagrado.
Eu não via diferença entre o policial que matou Prince Jones e os policiais que morreram ou os bombeiros que morreram. Para mim eles não eram humanos. Negros, brancos, ou o que fossem, eles eram as ameaças da natureza; eram o fogo, o cometa, a tempestade, que poderiam – sem qualquer justificativa – despedaçar meu corpo.
Trecho do livro Entre o Mundo e Eu, lançado pela editora Objetiva.
[1] Região de intensa vida noturna, com bares, boates e tradicionais clubes de jazz em Washington D.C., capital dos Estados Unidos.
[2] Fundada em Washington em 1867, dois anos depois do fim da Guerra Civil Americana, a Universidade Howard foi durante muito tempo o principal centro formador da elite intelectual negra nos Estados Unidos. A escritora e Prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison, bem como o primeiro negro a ser escolhido juiz da Suprema Corte, Thurgood Marshall (1908–93), estudaram lá. Ainda hoje, cerca de 90% de seus alunos são negros.
[3] Ta-Nehisi Coates é ateu e diz que a Universidade Howard foi e sempre será sua “única Meca”. Ao mesmo tempo, faz uma distinção entre Howard e “A Meca”: “Essas instituições estão relacionadas, mas não são a mesma coisa. A Universidade Howard é uma instituição de ensino superior […]. A Meca é uma máquina forjada para capturar e concentrar a energia escura de todos os povos africanos e injetá-la diretamente em seus alunos.”
[4] O Centro de Pesquisa Moorland-Spingarn, parte da Universidade Howard, abriga em sua biblioteca uma das maiores coleções de livros sobre a história dos povos africanos e dos negros norte-americanos.
[5] Uma espécie de atacante, no futebol americano. É um dos atletas encarregados de receber o passe e correr em direção à linha de fundo.
[6] Derrick Bell (1930–2011) foi o primeiro professor de direito negro contratado por Harvard.
Leia Mais