Eliana Calmon é agnóstica porque lhe falta "coragem" para ser ateia, mas não dispensa a proteção espiritual das filhas de santo. "Elas me dizem que todos os atabaques estão tocando para mim. De Mãe Olga, de Mãe Nice, todos! Fico até com medo de o ministro Peluso quebrar uma perna", brincou FOTO: ROBERTO CASTRO_2012
Não gosto de firula
Criticada pelo estilo ruidoso, a corregedora Eliana Calmon diz que seus adversários defendem valores que a sociedade não comporta mais
Daniela Pinheiro | Edição 66, Março 2012
Passava das nove de uma noite de fevereiro quando o carro oficial parou em frente ao elevador na garagem de um prédio residencial na Asa Sul de Brasília. Um segurança armado, de colete à prova de balas, surgiu e pegou envelopes, pastas e papéis das mãos do motorista e abriu a porta. A ministra Eliana Calmon Alves, corregedora nacional de Justiça, atendia a uma ligação no celular. “Gilmar, meu querido! Sim, estou superaliviada. Fiquei vendo o julgamento pela tevê, sozinha em casa, numa angústia louca. Graças a Deus acabou”, disse ela com uma voz aguda que reverberou pelo subsolo. “Vocês foram fantásticos! E a Rosa Weber, hein? Estou gostando de ver!”
Uma semana antes, os ministros do Supremo Tribunal Federal – entre eles o seu interlocutor, Gilmar Mendes – haviam derrubado por seis votos a cinco a liminar que impedia o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, de investigar juízes, desembargadores e tribunais suspeitos de corrupção. A decisão punha um termo no alvoroço que, desde dezembro, se espalhara pelo mundo das togas. E consolidava o direito do órgão de fazer diligências para combater mazelas da Justiça. “Sim, vou ver isso direito, Gilmar. Eu também não sei como está. Achei que não poderia entrar em todos os tribunais, e não só no de São Paulo”, disse antes de desligar.
Eliana Calmon usava sapatilha amarela, calça marrom, blazer estampado colorido e um vistoso colar com três peixes dourados pendurados como em um anzol, do joalheiro baiano Carlos Rodeiro. Havia trabalhado doze horas, mas o cabelo estava impecavelmente escovado e a maquiagem ainda lhe enfeitava a face. Apenas o descascado do esmalte vermelho denotava o pouco tempo para se dedicar a si mesma.
Ao entrar em seu apartamento, decorado em tons claros e com móveis de desenho modernista, largou a bolsa verde-limão em cima da mesa da sala, acendeu as luzes de todos os ambientes e foi para a cozinha. Abriu a geladeira, tirou duas tigelas de plástico e uma de vidro e as colocou em cima da mesa. “Esquentamos no micro-ondas, está bem? Minha empregada vai embora às cinco e moro sozinha. Assim é mais prático”, disse.
Explicou que o cardápio do jantar era“arroz à piemontesa light” e “frango à chefe de ouro” – galinha ensopada com milho verde e molho branco. Ambos os pratos foram tirados de um dos três livros de receita de sua autoria, cuja renda das vendas destina à caridade. De uma adega no corredor veio uma pequena garrafa de vinho tinto português de boa cepa. “Compro garrafinha para não ficar aquele resto estragando na geladeira”, explicou.
Antes que a ministra se servisse, o telefone tocou de novo. Uma amiga lhe dava os parabéns pela decisão do Supremo e queria notícias. “Tive um Natal horrível, com aquela sensação de injustiça, mas agora passou”, disse. Sem largar o aparelho, levantou a taça e propôs um brinde silencioso balançando a cabeça. “Quero retomar o trabalho logo. Quero entrar na Bahia, acabar com aquela igrejinha que formaram lá”, falou à amiga. “Sai um ditador e entra outro. Entraram para acabar com o feudo de Antonio Carlos Magalhães e agora estão fazendo a mesma coisa.”
O prato rodava no micro-ondas e a ministra limpava com o pano uma sujeira imperceptível na porta do forno. Ao sentar-se, comentou que se sentia tolhida e que gostaria que a controvérsia sobre o Conselho Nacional de Justiça fosse logo encerrada: “Parece que estou numa roda e não consigo sair.” O telefone tocou novamente. “Sim, sim, estou muito contente. Você viu, minha querida? O povo brasileiro se apropriando do CNJ! Todo mundo nos apoiando. Cidadania pura”, falou. “Foi muito ruim, mas agora estou aliviada. Quem pensou que ia pôr o pé no meu pescoço estava muito enganado.”
Criado em 2004, o Conselho Nacional de Justiça tem, entre outras atribuições, a função de investigar suspeitas de desvio de conduta de magistrados e servidores do Judiciário. Com o corporativismo de corregedorias estaduais, que faziam corpo mole nas investigações e protegiam seus pares, Eliana Calmon tomou para si o papel de garantir a eficácia da apuração e punição de delitos. Desde então, o Conselho condenou 49 magistrados, sendo que 24 deles foram punidos com aposentadoria compulsória, correspondente ao tempo de trabalho. Os demais foram afastados, removidos de seus postos originais ou apenas censurados. Há agora 2 595 processos em andamento – entre reclamações e sindicâncias – contra juízes e desembargadores.
Em agosto passado, a Associação dos Magistrados Brasileiros entrou com uma ação para questionar a competência do CNJ em apurar denúncias antes que as corregedorias estaduais terminassem suas próprias investigações. A ação coincidiu com o período no qual Eliana Calmon averiguava a legalidade de pagamentos de atrasados a potentados do mundo jurídico. E também preparava um processo administrativo contra o desembargador Luiz Zveiter, ex-presidente do Tribunal de Justiça do Rio, acusado de usar o cargo para beneficiar uma construtora, cliente do escritório de advocacia de sua família.
A corregedora não se atemorizou ante a Associação e seus quase quinze mil filiados. Em resposta à tentativa de se restringirem os poderes do CNJ, disse que a magistratura nacional “está com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos escondidos atrás da toga”. A afirmação provocou uma crise de nervos em parte do meio jurídico, que se viu exposto e contestado publicamente por uma das suas integrantes. O ministro Cezar Peluso, presidente tanto do Supremo como do CNJ, declarou-se “indignado”. Disse que as “acusações levianas” de Eliana Calmon eram uma “ameaça à democracia”. Nelson Calandra, presidente da Associação dos Magistrados, considerou-as “ataques impróprios, sem nomes, sem provas”.
A corregedora salgou ainda mais a ferida. Ela estudara um relatório elaborado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, órgão disciplinar do Ministério da Fazenda que cerceia a lavagem de dinheiro e aplica penas administrativas. O relatório focalizava movimentações financeiras de membros do Judiciário e de seus familiares. No total, foi investigada uma multidão de mais de 216 mil pessoas. Com base nele, Eliana Calmon recomendou a inspeção da folha salarial de magistrados de 22 tribunais brasileiros, a se iniciar por São Paulo, o maior deles.
O levantamento do Conselho de Controle de Atividades Financeiras sustenta que 370 juízes e funcionários de tribunais movimentaram 856 milhões de reais de forma atípica num período de dez anos, até 2010. Mais: mil integrantes do Judiciário usaram 274,9 milhões em espécie entre 2003 e 2010.
Na véspera do recesso forense, no final de dezembro, a poucas horas do encerramento do expediente, o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo, resgatou o pedido da Associação dos Magistrados e concedeu uma liminar suspendendo poderes de investigação da corregedoria. No mesmo dia, seu colega de tribunal, o ministro Ricardo Lewandowski, em outra ação, também proibiu o Conselho Nacional de Justiça de usar os dados do Coaf para apurar a evolução patrimonial de magistrados.
Na cozinha de sua casa, a ministra se serviu de salada e pôs-se a falar do “bendito relatório” do Coaf: “Logo que assumi, o Gilmar me disse que se eu investigasse bem todas as corregedorias, mas ficasse omissa em São Paulo, que era o maior dos tribunais, a minha gestão iria passar em brancas nuvens. Fiquei com isso em mente.” Tomou outro gole de vinho e prosseguiu: “No fim do ano, vi que o tempo estava passando e ainda não tinha conseguido entrar em São Paulo. Eles eram sempre gentis, solícitos, mas você não conseguia passar de um ponto, era tudo fechado.”
Disse ter lembrado então do relatório do Coaf: catorze páginas, ilustradas com tabelas e gráficos em forma de pizza, com informações sobre altas movimentações de integrantes de tribunais federais, regionais e militares. Não há no papelório referência a nomes ou a números de documentos dos investigados, como o CPF. O que mais perto se tem de detalhes é a identificação do “órgão de lotação” – o local de trabalho – e, eventualmente, a função do auditado. Sobre as operações feitas com dinheiro vivo, por exemplo, lê-se que foram localizadas 797 pessoas, e oito delas fizeram transações equivalentes a 16,7 milhões de reais, ou quase 10% do total. “De tais pessoas, duas constam ser titulares de cartórios, três seriam juízes, um desembargador, um aposentado e um empresário”, diz o texto.
Além de entidades classistas do Judiciário, alguns juristas e advogados também se insurgiram contra a investigação do CNJ. Eles defendem que, para identificar 0,1% de suspeitos, foi preciso examinar informações financeiras de centenas de milhares de pessoas. E argumentam que promover buscas genéricas com dados sigilosos dos cidadãos compromete a credibilidade da instituição e do próprio governo, sobre o qual sempre paira a desconfiança de que pode vir a usá-los politicamente.
“Sem entrar no mérito se houve ou não quebra de sigilo financeiro, é um episódio que faz parte de uma cultura repressiva que se instalou recentemente no país”, disse o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que é favorável à transparência do Judiciário. “A partir da ideia de que os ricos não vão para a cadeia, quase tudo passou a ser permitido. Em nome dessa cruzada, se passa por cima de direitos individuais garantidos pela Constituição.”
Eliana Calmon autorizou a inspeção no Tribunal de Justiça de São Paulo no início de dezembro, “e duas semanas depois vieram as liminares”, disse ela, grave. “Aquilo para mim foi o sinal. Era como se dissessem: ‘Aqui você não entra.’” Em resposta às liminares, ela fez uma ironia n’O Estado de S. Paulo: “Sabe que dia eu vou inspecionar São Paulo? No dia em que o sargento Garcia prender o Zorro.”
Com os trabalhos da corregedoria suspensos, jornais e revistas passaram a publicar detalhes sobre a caixa-preta dos tribunais. Foi revelado que um ex-presidente do Tribunal de Justiça da capital paulista recebeu de uma vez 1,5 milhão de reais em atrasados, graças a um requerimento despachado por ele mesmo. Descobriu-se que juízes vendiam um de seus dois meses de férias para fermentar seus holerites. Surgiu nas páginas da imprensa um manancial de gratificações, atrasados e extras que jamais havia sido mensurado em público.
Soube-se, por fim, que os dois ministros do Supremo que tinham se posicionado contra a ação da corregedoria, Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski – e que fizeram carreira no tribunal de São Paulo –, receberam 700 mil reais cada um de passivos trabalhistas. A própria Eliana Calmon recebera 421 mil reais de auxílio-moradia. “Recebi sim, em três parcelas, assim como toda a Justiça Federal”, disse ela. “Não foi como em São Paulo, que uma turminha de amigos foi privilegiada, recebeu antes da maioria e tudo de uma vez.” Perguntei se ela se referia a Peluso e Lewandowski. “Não sei se estão no grupo porque não pude entrar em São Paulo, lembra?”, respondeu.
Com a repercussão do relatório do Coaf, entidades classistas e colegas de profissão a acusaram de ter vazado informações sigilosas. “Mas se não tinha nome nem CPF de ninguém, como pode ter violação de sigilo?”, perguntou, indignada, o que fez sua voz vibrar algumas oitavas a mais. “Vinha conselheiro querer saber que desembargador estava listado! Não tenho ideia, não tive essa informação. A Associação dos Magistrados insiste nisso porque é a única maneira de justificar essa postura corporativista descabida.”
Aos 67 anos, Eliana Calmon é mercurial e superlativa. Fala alto, com um sotaque baiano que a faz parecer ainda mais ruidosa. Ao explicar algo sério, fecha as pálpebras e levanta as sobrancelhas para concluir frases de efeito. Como se veste com estampas de uma paleta infinita de cores e se enfeita com bijuterias chamativas, sua figura altiva chama atenção.
Quando a porta de seu gabinete de trabalho se abre, está atrás da mesa à espera do convidado numa mesma pose: os dedos das mãos entrelaçados, os cotovelos apontando em direções opostas e o corpo virado um pouco de lado, como uma professora rigorosa prestes a dar uma bronca. Mas quando se sente à vontade preenche o ambiente com uma gargalhada comprida e contagiante.
Alta (1,70 metro), com pés que considera “enormes e largos” (calça 39), desde bem jovem ela luta contra a balança. As amigas brincam que está de regime desde que nasceu. Anda na esteira todos os dias pela manhã e consome potes de salada de frutas para manter a forma, mas tem dificuldade de resistir a doces. No ano passado, perdeu dezoito quilos numa dieta de proteínas do médico argentino Máximo Ravenna. A ansiedade derivada da crise no CNJ trouxe muitos deles de volta.
Ela se diz agnóstica por não ter “coragem” de assumir ser ateia. Mas contou que amigas baianas, filhas de santo, lhe dão proteção espiritual. “Elas me ligam para dizer que todos os atabaques da Bahia estão tocando para mim. De Mãe Olga, de Mãe Nice, todos! Eu fico até com medo de o ministro Peluso quebrar uma perna”, brincou. É feminista, a favor do direito de aborto e do casamento gay. “Gays não assumidos podem ser as pessoas mais pérfidas do planeta, é difícil conviver”, disse. “Já os assumidos são maravilhosos.”
É vaidosa, mas não gosta de gastar com roupas. Compra uma peça e manda uma costureira reproduzi-la em vários tecidos diferentes. Por insistência da irmã, aceitou tomar duas picadas de botox na glabela para sumir com o “V” que lhe marcava a expressão. Dispensa seu dinheiro em joias (todos os anos se presenteia com uma em seu aniversário) e na decoração e reforma de suas casas. Além do apartamento em Brasília, é dona de outro, em frente à praia da Barra, em Salvador. Ali, é vizinha do publicitário Duda Mendonça, dos atores Lázaro Ramos e Wagner Moura e do cantor Gilberto Gil.
Cozinheira tarimbada, Calmon é conhecida entre familiares e amigos pelos jantares organizados para grupos pequenos, nos quais cuida do cardápio à mise en place. Adora cruzeiros de navios. Já navegou pela Turquia, Grécia e Itália e pelos mares da China e do Alasca. Tem como companhias constantes de viagem a irmã e o filho único, Renato da Cunha, de 32 anos, analista do Ministério Público Federal. Casado, e com um segundo filho a caminho, ele não quis falar sobre a mãe: “Sou muito discreto, os holofotes são dela.”
Com a ajuda de uma faca, Eliana Calmon equilibrava a comida sobre o garfo em montinhos arredondados. Mais uma vez, o telefone interrompeu a entrevista. Era uma chamada do Palácio do Planalto. Em um tom formal, logo depois das reverências de praxe, elogiou um candidato à próxima vaga no Superior Tribunal de Justiça. Defendeu seu ponto de vista afirmando que “a função no STJ pressupõe força física” e, portanto, “alguém jovem, com sangue novo”. Sem mais, despediu-se com um misto de animação e cortesia.
Quis saber qual tinha sido o momento mais tenso de todo o processo. “Foi quando o Calandra me comparou ao Palocci”, respondeu, entre uma e outra garfada. Referia-se a uma alusão do presidente da Associação dos Magistrados à quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos feita a serviço do então ministro da Fazenda, Antônio Palocci. “Aqui se viola o sigilo de 220 mil pessoas e não acontece nada!”, dissera Nelson Calandra.
Almiro Petronilho Alves era dono de uma empresa de reboques de carro em Salvador. Sua mulher, Elizabete, tinha modos finos, bom gosto e habilidade manual. Seus três filhos, Eliana, Almiro e Rosário, cresceram num loteamento de casas de classe média, sob uma educação rígida e distante. A família era vizinha do ex-deputado federal e presidente do DEM baiano, José Carlos Aleluia. “Ela sempre teve esse jeito de líder, era séria, estudiosa e comandava as brincadeiras, não era de muita bagunça, não”, contou Aleluia no saguão de um hotel de Salvador.
Quando Eliana Calmon tinha 15 anos, seu pai saiu de casa e formou outra família – episódio que a marcou profundamente. Como tinham boa situação financeira, pôde se dedicar aos estudos em vez de trabalhar. Na juventude, era a única da turma que tinha carro, um Fusca creme, o que a tornava a carona oficial das amigas.
Foi num baile que ela, aos 23 anos, conheceu seu futuro marido, Renato Sá Bernardo da Cunha, um oficial da Marinha treze anos mais velho. A moça alta, longos cabelos negros repartidos ao meio e os olhos amendoados, delineados com lápis kajal, chamou a atenção do militar loiro e de olhos azuis, alguns centímetros mais baixo que ela. Dançaram e se despediram sem trocar telefones. Dias depois ela recebeu uma orquídea em casa. Durante anos ficou intrigada como havia conseguido o seu endereço. “Depois Eliana soube que ele tinha mandado o serviço secreto da Marinha ir atrás. Imagina, naquela época da ditadura”, contou a amiga de infância Ana Luisa Costa Soares, que estava no baile.
Casaram-se em uma cerimônia simples, no ano seguinte. “Ela marcou numa terça-feira, às nove da manhã, em uma igrejinha em que mal cabiam cinquenta pessoas”, lembrou a irmã, a decoradora Rosário Calmon, em seu apartamento, no bairro da Pituba, em Salvador. “Minha mãe quase teve um ataque e, com muito custo, conseguiu convencê-la a usar um véu curto.”
Quando ela se formou, o marido foi transferido para o Rio de Janeiro e, em seguida, para Natal, onde ela lecionou na faculdade de direito. Ali, começou a estudar para o concurso de procuradora da República. Na primeira tentativa, foi reprovada por meio ponto, mas no ano seguinte classificou-se entre os primeiros lugares. Assumiu o posto no Recife, onde morou sozinha por pouco tempo. Depois, o marido foi removido para Brasília e partiram novamente.
Era o governo militar e o Ministério Público respondia à ditadura. Na época, ela contou, o procurador-geral da República, Henrique Fonseca de Araújo, publicou uma resolução proibindo os procuradores de se posicionar contra o regime. Em 1976, quando ela deu um parecer favorável a um mandado de segurança de estudantes contra a invasão da Universidade de Brasília, ele alterou a decisão a favor dos militares. Eliana Calmon abandonou a procuradoria e estudou para se tornar juíza federal.
De volta a Salvador, prestou o concurso e foi aprovada. Também passou a dar aulas de direito civil na universidade católica e na federal da Bahia. Estava casada há dez anos e, apesar da insistência do marido, não queria saber de filhos. Achava ser impossível conciliar profissão e família. Mas, sem planejar, engravidou. Nasceu Renato.
À medida que sua carreira deslanchava, os problemas no casamento aumentavam. Certa vez, o marido repreendeu o porteiro do prédio porque ele os chamava de “seu Renato” e “doutora Eliana”. Uma conhecida se lembra dela carregando uma garrafa térmica para o cinema porque o marido gostava de tomar café durante a sessão. “Imagine, uma juíza federal tendo que fazer isso porque senão ele aprontava um escarcéu”, disse. Mesmo nas situações mais tensas, as amigas contam que ela sempre preferiu contemporizar a se indispor com o marido, com quem tem boa relação.
Numa entrevista à Folha de S.Paulo, quando assumiu a vaga no Superior Tribunal de Justiça, ela falou sobre a condição feminina: “É muito difícil um homem da minha geração dividir cama, mesa e sala com uma mulher que tem o seu brilho próprio e uma projeção. Ele começa a se sentir inferiorizado.”
Quando foi promovida por merecimento a desembargadora do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, o casamento de vinte anos ruiu. Com o filho pequeno e uma babá a tiracolo, Calmon mudou-se para Brasília. As novas funções a obrigavam a passar dias, muitas vezes semanas, fora de casa. Nunca mais teve outro envolvimento amoroso sério e duradouro.
Ela disse não gastar “um minuto” pensando em discriminação de gênero, apesar de considerar o Judiciário um meio machista e chauvinista. “Eu não me ligo nisso, nem presto atenção porque acho que as mulheres acabam se preocupando demais com esse assunto”, disse. Na véspera da votação da liminar da Associação dos Magistrados, ela comentou o que diziam alguns juízes de seu tribunal: “Ficam querendo me diminuir me chamando de louca, de doidivana. É a maneira que costumam usar para desmerecer uma mulher.”
Como desembargadora, Eliana Calmon coordenou por anos um curso de formação e aperfeiçoamento de magistrados. Por isso, era dada como certa sua nomeação, em 1998, como diretora da Escola Nacional de Magistratura, um posto de prestígio na carreira. Ela defendia ideias inovadoras, como um currículo nacional, e era contrária à cobrança de mensalidades, já que as escolas estaduais da magistratura recebiam verbas do Judiciário.
Um amigo dela contou que, numa discussão com seus pares sobre ensino, Eliana Calmon levantou a voz e disse que as escolas estaduais só queriam dinheiro e não ligavam para formação. Havia representantes das escolas na sala e houve um mal-estar generalizado. Ela não foi nomeada diretora da Escola Nacional, ficando com a secretaria-executiva. Sua versão é menos cabotina: “Era um cargo que dava prestígio, visibilidade, tinha muitas viagens para o exterior. E aí apareceram dez pessoas querendo.”
Amigos, parentes e colegas afirmam que os arroubos verbais e o temperamento passional lhes são atávicos. “Essas coisas que ela faz hoje, ela sempre fez, é o jeito dela”, disse o advogado Ailton Daltro Martins, amigo de Calmon desde a faculdade. “Se tinha alguém para jogar luz no obscurantismo do Judiciário, essa pessoa era a Eliana.”
Há alguns anos, ela divergiu do ministro João Otávio de Noronha sobre a reabertura do julgamento da extinção de um crédito para exportações. Nos cálculos de Eliana Calmon, a União poderia ter um prejuízo de 300 bilhões de reais. Ele defendia a revisão e ela insistia que a deliberação já fora tomada. “Eu virei um bicho, falei que era absurdo, que aquilo era um processo que envolvia muito dinheiro e muito lobby e ia ficar horrível para o tribunal voltar atrás”, contou. “Mas quando falei ‘dinheiro’ esfreguei os polegares, e ele deve ter se sentido ofendido, achando que eu estava dando alguma indireta – o que não era o caso.” Depois de um bate-boca no plenário do STJ, Noronha ameaçou entrar com uma representação contra Calmon. Ele desistiu da revisão do processo e a questão ficou do jeito que ela queria. Mas eles passaram semanas sem se cumprimentar.
Calmon também bateu de frente com o ministro Raul Araújo Filho quando ele foi indicado ao Superior Tribunal de Justiça. O então candidato foi ao seu gabinete e ela lhe disse, olhando nos olhos: “O senhor não é desembargador, entrou pelo quinto e tem três anos de magistratura. Acho um absurdo votarem no senhor e falarei com todos meus colegas para não o fazerem.” Araújo Filho foi eleito e ela publicou um artigo intitulado “A magistratura pede socorro”, no qual desancou a forma como se dava a escolha dos ministros de seu próprio tribunal.
À frente do CNJ, ela não fez amigos ao propor que as férias forenses passassem de 60 para 30 dias, que se regulamentasse a participação de juízes em eventos pagos por entidades privadas e que fossem criadas diretrizes sobre o recebimento de presentes. Seus críticos rebatem dizendo que ela deveria ter proposto tudo antes, e não a três anos de sua aposentadoria compulsória.
Certa vez, quando reformava seu apartamento em Brasília, Calmon espinafrou uma arquiteta enviada por um escritório de advocacia da Bahia, que queria presenteá-la com armários da marca Ornare, uma das mais caras do mercado, para todos os cômodos de sua residência. Em outra ocasião, um escritório paulista mandou para sua casa um relógio Patek Philippe. No dia seguinte, mandou devolvê-lo.
“Aceitar viagem que não seja de trabalho, presente de quem não conheço, isso é baratear a toga”, comentou a ministra pouco antes de esbarrar em um copo que se espatifou sobre a mesa. “Mas é uma prática infelizmente arraigada nesse meio”, disse, indo atrás de um pano para limpar o estrago. Lembrou-se da ocasião em que um colega, ministro do STJ, disse achar um absurdo o tribunal não pagar a passagem de sua mulher quando ele viajava a trabalho. “Eu respondi: ‘Você tem toda a razão! Tinha que pagar a passagem e ainda dar um salário a ela. Porque ela vai dormir com você e tem que ser remunerada por isso”, contou. Ficaram semanas estremecidos.
A franqueza a prejudica? “Não acho. O problema é que não temos a cultura da sinceridade, do pão-pão, queijo-queijo, sobretudo no Judiciário. Falo o que eu tenho que falar porque não tenho por que me calar diante do errado. Não devo nada a ninguém, a minha vida é esquadrinhada, eu posso falar o que eu falo”, disse, sublinhando o verbo.
Há três representações judiciais contra Calmon no Supremo Tribunal Federal. “A de um juiz corrupto porque dei uma entrevista falando do desfalque que ele deu, e ele entrou com ação de injúria e difamação”, disse, referindo-se a Moacir Ferreira Ramos, ex-presidente da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região, acusado de usar dados pessoais de outros magistrados em contratos de empréstimos fictícios.
Em outra, a Associação de Magistrados pede sua punição por considerar que extrapolou suas funções administrativas ao conceder uma liminar contra a decisão de uma juíza no Pará. “Só que essa juíza era conivente com uma fraude de 2,3 bilhões de reais contra o Banco do Brasil”, disse Eliana Calmon. Até o final de fevereiro, havia ainda o mandado de segurança de Lewandowski, mantido pelo Supremo, que a impedia de usar os dados do Coaf para investigar os tribunais.
“Isso não me prejudica. Eu tenho foro privilegiado, quando não tiver mais, vamos ver. Mas hoje só me tiram daqui com impeachment no Senado. Se o STF quiser me tirar, não me tira”, comentou, enfática. “E também não sei quem vai ter coragem de me tirar com o argumento de que estou fazendo algo errado ou falando alguma mentira”, disse.
A blindagem não significa que ela tenha se mantido à margem da política. Pelo contrário, buscou apoio de quem estivesse à mão. Em 1998, Calmon concorreu a uma vaga no STJ. Não teve sucesso e no ano seguinte entrou novamente na lista de indicações. “Na primeira vez, eu achava que poderia ser escolhida sem falar com nenhum político”, disse. “Estava enganada: o processo de escolha é essencialmente político. Tive que aprender na marra.”
Sabia-se que o presidente Fernando Henrique Cardoso tinha a intenção de nomear uma mulher para o cargo. A candidata mais cotada era Ellen Gracie, juíza do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, apoiada pelo então ministro da Justiça, Nelson Jobim. O senador Antonio Carlos Magalhães, que seria um forte cabo eleitoral, estava comprometido com a candidatura de um desembargador baiano.
Eliana Calmon consultou um deputado, cuja irmã era sua amiga, que a desencorajou quanto à ajuda de ACM. Ela se lembrou, então, do senador Edison Lobão, à época do PFL do Maranhão, ligado ao ex-presidente José Sarney. Ambos haviam se conhecido anos antes, quando ele a procurou para tratar de um processo de seu interesse. “Imediatamente abracei a candidatura dela. Saí com ela pelos gabinetes de todos os senadores”, contou Lobão, ministro das Minas e Energia, hoje no PMBD. “Ela era o nome ideal: séria, não comprometida com nenhuma agenda ou ninguém.”
Foi apresentada ao senador Jader Barbalho, do PMDB do Pará. Ele lhe disse que gostava de “juíza séria porque meu pai quase se arrebentou numa eleição por causa de um juiz venal”; e passou a defendê-la. Quando a lista sêxtupla de indicações virou tríplice, o candidato de Antonio Carlos Magalhães foi excluído e ela se animou a procurá-lo. “Lembrei a ele o compromisso que tinha com a Bahia. Se o candidato dele não havia entrado, tinha eu, que era baiana”, falou. ACM se tornou o principal artífice de sua candidatura.
Nesse intervalo, um dossiê com todas as decisões proferidas por ela contra a União chegou às mãos de Fernando Henrique, como prova de que não seria fiel ao governo. Novamente, Calmon acionou seus contatos e foi orientada a preparar um “antidossiê” para entregar ao advogado-geral da União. Uma das contraprovas foi a sua decisão sobre títulos da dívida pública do início do século XX, na qual afirmava que eram de papéis podres sem validade, o que livrou o governo de pagar indenizações milionárias.
A escolha de seu nome demorou quatro meses. Na cúpula do governo, fechou-se o compromisso de que Ellen Gracie ocuparia a próxima vaga de um tribunal superior – o que ocorreu logo depois, quando foi nomeada ministra do Supremo. Na sabatina no Senado, perguntaram-lhe se tinha padrinhos políticos. Eliana Calmon não titubeou: “Sim, Jader Barbalho, Edison Lobão e Antonio Carlos Magalhães.” Sua indicação foi aprovada por 65 votos favoráveis e nove contrários. Houve toma-lá-dá-cá? “Nunca, nunca, nenhum desses políticos me pediu nada em troca”, respondeu. Há quem veja com ironia o fato de a magistrada mais empenhada em levantar publicamente a bandeira da moralização do Judiciário ter como padrinhos figuras identificadas com a política do mandonismo.
Em 2007, a Polícia Federal e o Ministério Público deflagraram a Operação Navalha. A intenção era desbaratar um poderoso esquema de fraudes em obras e licitações públicas com ramificações em seis estados do Nordeste. Foi Eliana Calmon quem determinou a prisão de 47 das quase cem pessoas detidas, entre empresários, políticos, autoridades e servidores públicos. A butique de uma sobrinha e o escritório da irmã da ministra foram arrombados sem que nada tivesse sido levado. Calmon entendeu os episódios como ameaças a ela.
Com o passar do tempo, a Operação Navalha se tornou um caso emblemático nos meios jurídicos. É usada para ilustrar a onda de prisões espetaculosas feitas pela Polícia Federal, pedidas desnecessariamente pelo Ministério Público e autorizadas prontamente pelo Superior Tribunal de Justiça. Houve casos de pessoas soltas em menos de 24 horas e nunca mais chamadas a esclarecer nada sobre o assunto. Outros suspeitos, considerados peças-chave nas quadrilhas, verificou-se depois, tinham patrimônios que se resumiam a apartamentos de dois quartos.
Um grupo de advogados chegou a entregar uma carta ao então presidente do STJ, Raphael de Barros Monteiro Filho, criticando a forma pouco criteriosa com a qual o Judiciário vinha deferindo medidas de força, como as prisões temporárias – que serviam apenas para os suspeitos prestarem depoimento. De acordo com o grupo de defensores, a Justiça agia de forma açodada e desorganizada, além de buscar os holofotes da televisão.
“Eu acho muito curioso ouvir essas críticas porque as pessoas falam qualquer coisa”, disse Calmon sobre a Operação Navalha. “Ouvi os grampos, sei do que estou falando, não sou uma doida irresponsável de mandar prender inocente. Não sabem, mas eu sei, que quem tinha apartamento de dois quartos é porque era viciado em jogo. Essas pessoas integravam uma quadrilha organizadíssima, que roubou por anos. Tinham lanchas, ilhas, apartamentos.” Até hoje, cinco anos depois, contudo, ninguém foi condenado.
Em uma manhã recente, em seu gabinete no Superior Tribunal de Justiça, de onde se tem uma linda vista para o lago de Brasília, o ministro Gilson Langaro Dipp, de 67 anos, estava às voltas com a redação do novo Código Penal Brasileiro. “Vamos propor mudanças em relação ao aborto, à eutanásia, ao jogo do bicho, há mais de 120 leis especiais que vão ser contempladas”, disse ele, que preside a comissão que trata do assunto.
Em junho de 2009, quando era o corregedor nacional de Justiça, foi ele quem pediu ao Coaf que produzisse uma lista de integrantes do Judiciário com movimentações financeiras incompatíveis com os rendimentos de funcionários assalariados. No caso dos juízes, foram consideradas operações acima de 500 mil reais ao ano.
Por um ano e meio, Dipp coordenou uma série de inspeções em tribunais. O que viu foi desolador. Não havia controle ou informações sobre o andamento dos processos, o desempenho dos magistrados ou a organização dos foros. “Chegávamos a alguns municípios e éramos recebidos com faixa, como salvadores da pátria, porque a Justiça lá era tão corrupta que o cidadão não tinha a quem recorrer”, contou.
No intuito de criar uma base de dados nacional com os valores pagos pelos tribunais a magistrados e servidores, ele solicitou a pesquisa do Coaf. “Era um dos pilares para organizarmos a coisa. Tudo o que tínhamos era muito precário”, disse. “E, para falar a verdade, nem me lembrava de que tinha pedido isso.”
O levantamento ficou pronto quase dois anos depois, em fevereiro de 2011, quando ele já havia deixado o cargo. “Nunca houve pedido de quebra de sigilo, nem o documento entregue à corregedoria violou o sigilo de ninguém”, disse Dipp, corroborando a tese de Eliana Calmon. Na sua avaliação, o problema não é o conteúdo, mas sim a forma como a proposta de se investigar os tribunais foi conduzida.
Citou como exemplo o ministro Paulo Medina, do STJ, e o desembargador José Eduardo Carreira Alvim, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Eles foram obrigados a se aposentar, sob a acusação de terem negociado sentenças a favor de empresários de bingos. “Investigamos, punimos, mas tudo foi conduzido com calma, negociando tudo”, contou.
A diferença, afirmou, é que atuava em sintonia com o então presidente do Conselho Nacional de Justiça, Gilmar Mendes. “Eu e o Gilmar tínhamos o Conselho; nos reuníamos e saíamos com um denominador comum”, disse. “É diferente do que ocorre hoje, quando há uma clara divisão interna entre os membros do CNJ, alguns colocados ali para enfraquecer o próprio órgão. É uma batalha de vaidades e interesses, o que propiciou que o corporativismo viesse à tona.”
O cerne da crise, ele disse, foi a mudança de estilo e propósitos na condução do Conselho Nacional de Justiça: “Eliana é investigativa, Peluso é conservador, além do que nunca morreu de amores pelo CNJ. Seu desinteresse pela corregedoria sempre foi evidente.”
Ao assumir o Conselho, Peluso dispensou quase todos os juízes auxiliares da gestão de seu antecessor, Gilmar Mendes. Até a nomeação dos dois conselheiros que são juízes federais – cuja indicação era feita pelo corregedor – ficou a seu critério. Também contestou a verba destinada para o programa dos mutirões carcerários, a vitrine de Mendes, que em menos de dois anos havia colocado em liberdade cerca de 20 mil pessoas mantidas presas indevidamente.
Durante o jantar em sua casa, Eliana Calmon comentou o assunto. Disse ter ficado surpresa quando soube que não poderia indicar os conselheiros. E ainda mais atônita ao ver que um dos nomeados por Peluso era o juiz Tourinho Neto, de quem ela foi amiga durante anos e a quem hoje mal cumprimenta. “É o único inimigo que tenho, mas a filha dele me diz que ele me admira, pelo menos”, disse.
Ao longo do convívio no CNJ, as diferenças de prioridades e de estilo entre a corregedora e o presidente do órgão ficaram evidentes. Enquanto ela quer dar visibilidade às mazelas do Judiciário e não se furta a dar entrevistas, Peluso é uma figura esquiva, para quem o juiz só deve “falar nos autos” e os problemas devem ser resolvidos interna corporis.
Durante meses, ela disse, tentou se acertar com Peluso. Mandava recados e insistia em mostrar a importância da transparência na apuração de casos de corrupção no Judiciário. Em uma conversa que tiveram, segundo ela contou, Peluso explicitou que sua atuação o incomodava. E disse que não a reconhecia como executiva do Conselho Nacional de Justiça porque “corregedoria é uma coisa, e presidência é outra”.
“Quando percebi que o diálogo não seria mesmo possível, que ele não estava interessado, que a missão dele era restringir o CNJ e ponto, desisti de querer contemporizar e resolvi fazer meu trabalho”, disse Eliana Calmon. O ministro Cezar Peluso se recusou a falar com a revista.
“O Peluso é sério, evidente”, reconheceu a corregedora. “Mas o mundo ao qual ele pertence acabou. Ouvir o Peluso, o Calandra, é como entrar num túnel do tempo, num mundo que não existe mais, de valores que a sociedade não comporta mais. Se fosse outro no meu lugar, poderia ter evitado toda a polêmica, mas certamente o CNJ iria acabar.”
De frente à janela, apontando para o nababesco prédio do Tribunal Superior Eleitoral, inaugurado há pouco, o ministro Gilson Dipp concluiu seu raciocínio dizendo que três motivos provocaram crise no CNJ: “A confusão aconteceu porque o Peluso reagiu exageradamente. Concedidas no apagar das luzes, as liminares do Supremo foram inoportunas. E houve inabilidade ao se começarem as investigações por São Paulo. Se Eliana Calmon tivesse ido devagar, indo pelo Piauí, Paraíba, e chegado depois a São Paulo, seria natural.”
Em sua opinião, apesar de a corregedora ter a maioria da opinião pública e da imprensa a seu favor, seu campo de atuação ficou comprometido. “Quando tudo isso esmorecer e a rotina for retomada, acho que vai ser difícil para ela. Será um trabalho insano, com muitas inimizades feitas ao longo do caminho”, disse.
Outras duas tigelas vieram da geladeira à mesa. Calmon anunciou, quase com solenidade, tratar-se de gelatina diet de abacaxi e salada de frutas adoçada com sucralose. “Vão muito bem juntas e são ótimas para manter a forma”, falou. Serviu duas porções generosas e discorreu sobre a fama súbita. Do dia para a noite, passou a ser cumprimentada nas ruas, tornou-se conhecida nas redes sociais (duas comunidades do Facebook reuniam mais de onze mil pessoas a seu favor), dezenas de blogs incensaram sua performance.
“A vida toda, fui a tudo quanto é curso, palestra, encontro, seminário para os quais eu era chamada. Mesmo que tivesse que pagar o frigobar do meu bolso, eu ia. Sabe por quê? Porque eu queria ficar conhecida, eu queria ter respaldo”, contou, se servindo de um resto de vinho. “Eu queria que, quando ouvissem meu nome, as pessoas comentassem: ‘Ah, ela fala disso, ela entende daquilo, eu ouvi uma palestra dela, eu sei que ela é boa na área tal.’ Ninguém mexe com mulher que é nome nacional, que tem credibilidade. Sempre tive esse pensamento. E vejo que foi o pensamento correto.”
Era quase meia-noite e ela estava cansada. Levantou-se da mesa equilibrando uma pilha de pratos e talheres e os depositou dentro da pia. Em seguida, passou filme plástico nas tigelas de comida e guardou tudo na geladeira. Foi caminhando a passos lentos até a porta de casa. Reclamou do calor e, antes de se despedir, fez um pedido: “Preserve minha intimidade. Não gosto de firula, não quero nada, não sou candidata a nada. Sou só uma magistrada.”
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