Alunos treinam na Escola Taurina, ameaçada pelo corte de verbas. Ex-governadora de Madri, Esperanza Aguirre lamenta o cerco às touradas. "A tauromaquia é como uma pintura, uma música" FOTO: ERIC VANDEVILLE_GAMMA-RAPHO VIA GETTY IMAGES
Não matarás
Prefeitura de Madri retira subsídio para escola de toureiros
Diogo Bercito | Edição 110, Novembro 2015
Um adolescente caminha na arena de terra iluminada por holofotes, rodeada por uma arquibancada. Observa as cadeiras vazias, separadas do palco por placas de madeira. Para, encolhe a barriga e estica uma das pernas para trás. Depois torce a coluna e, devagar, descreve um delicado círculo com o braço. Deixa passar, assim, colado ao corpo, um touro inexistente.
No outro extremo da praça, um jovem agita uma capa. Do lado de dentro do apetrecho, o tecido é amarelo como uma gema de ovo. Por fora, a capa é cor-de-rosa. Um de seus colegas se agacha, segura um par de chifres e, fingindo ser um touro, investe contra o pano – que o matador faz passar por cima dele, roçando no focinho. Ninguém diz nada, mas a vontade óbvia é de gritar olé!.
Outro rapaz toma um florete nas mãos e fere o ar. Treina o golpe repetidas vezes. Já são nove da noite. Os alunos da Escola Taurina, que desde 1976 forma profissionais para o espetáculo símbolo da Espanha, continuam a praticar os gestos que, esperam, um dia vão poder empregar contra animais de verdade. Por essa sala de aula já passaram alguns dos heróis da tauromaquia, um mundo com códigos, rituais e estética próprios, hoje sob o fogo cruzado de embates políticos, liderados por defensores dos direitos dos animais.
A entidade conta com cerca de quarenta inscritos em 2015, em sua maioria rapazes de famílias pobres, que podem treinar ali de segunda a sexta-feira, das 16 às 21 horas, sujeitos à condição de também frequentar a escola regular. A mensalidade custa apenas 90 reais, e a duração do curso varia de caso a caso, tomando em torno de cinco anos, em geral.
São poucos, porém, os que de fato se tornam matadores, as estrelas das praças de touros. No ano passado, foi apenas um. Dos 2 500 estudantes que já passaram por ali, 135 se tornaram matadores profissionais, segundo as estimativas da direção. Muitos desistiram ou assumiram outras funções nos festejos taurinos, como testar a força dos animais ou fincar bandeirinhas em suas costas musculosas.
O curso, que começou como uma escola privada, é público desde 1981, subsidiado pela Prefeitura de Madri. O ensino da tauromaquia era muito bem-visto pela administração anterior, nas mãos do direitista Partido Popular, mas quiseram as eleições regionais de maio passado que Manuela Carmena se elegesse prefeita. A nova alcaide representa o partido Ahora Madrid, que reúne movimentos de esquerda, como o influente Podemos. Em setembro, Carmena anunciou o corte dos 270 mil reais anuais de subsídio do poder público à escola, quantia responsável por metade das contas da instituição, também financiada pelo governo regional.
Foi uma estocada nos entusiastas do espetáculo. Seus defensores, como a condessa Esperanza Aguirre, ex-governadora de Madri e presidente regional do Partido Popular, foram a público fazer o elogio do que entendem ser um dos baluartes da cultura espanhola. Do outro lado da arena, posicionaram-se setores da esquerda e ambientalistas, como o Partido Animalista, para quem é escandaloso defender uma tradição que envolve o maltrato de animais.
O escritório de Manuela Carmena, na sede da prefeitura, dá para uma praça com um monumento à deusa Cibele, símbolo da fertilidade e da natureza, que os antigos romanos homenageavam com o taurobolium, o sacrifício ritual de um touro.
Coube a Celia Mayer, conselheira da prefeitura responsável pela gestão de esportes e cultura, a decisão administrativa de retirar a subvenção à Escola Taurina. “A verba pública não tem de ser aplicada ao maltrato de animais e à exposição das pessoas à violência”, disse Mayer.
O gesto de Madri não é isolado: a região da Catalunha, por exemplo, foi mais longe e simplesmente proibiu a prática, em 2010. Parte do impulso contrário à tauromaquia vem do Partido Animalista, sigla criada em 2003 e dedicada sobretudo a combater as touradas. Laura Duarte, uma de suas líderes, considera insuficiente a mera retirada dos subsídios. “Não podemos permitir uma festa que consiste em maltratar e torturar um animal”, disse. “Cultura não é necessariamente uma coisa boa. Não queremos apagar a história, mas tradições como essa têm que ser deixadas no passado.”
A ideia da tauromaquia como um traço cultural complica a questão: o touro é um animal onipresente no país. As estradas do interior estão coalhadas de gigantescas silhuetas taurinas, outrora outdoors do conhaque Osborne. A publicidade de bebidas alcoólicas, porém, foi proibida nas rodovias há mais de vinte anos, e os letreiros brancos anunciando o produto foram pintados de preto. Os contornos dos animais, contudo, foram mantidos pelo governo espanhol, por já fazerem parte da paisagem e de uma estética cultural. São monumentos.
Festas populares ligadas a touros foram realizadas na Península Ibérica por romanos, visigodos e árabes, e uma modalidade semelhante à tauromaquia contemporânea já aparecia em relatos medievais. A estética e o cerimonial hoje em vigor remontam ao início do século XX, mas desde então vêm sendo aprimorados. Os estilos individuais de matadores como Belmonte e Joselito, por exemplo, influenciaram os movimentos corporais das gerações posteriores. Pouco a pouco, ao longo dos séculos, a tourada chegou ao formato atual, dividido em três partes: uma para espetar o touro e examinar sua bravura, outra para estocar bandeiras em seu torso e uma última para, bem, matá-lo.
A Escola Taurina está localizada na Casa de Campo, um extenso parque na parte oeste de Madri, separado do Centro por poucas estações de metrô. O caminho até a arena dos touros, descrito à reportagem por mensagens de WhatsApp, não oferece nenhuma dificuldade: o local fica entre o parque de diversões e o zoológico. A localização no mapa parece um comentário cultural sobre as touradas.
Chega-se à escola atravessando um portão antigo de metal, que se abre para um gramado extenso e descuidado. Corvos gralham nos galhos altos dos pinheiros espalhados pelo caminho, como se quisessem garantir que a cena respeitasse um clichê de um filme de terror. Ao fundo ficam as construções onde funciona a escola.
As aulas se concentram em três ambientes. A arena, onde jovens entre 9 e 18 anos praticam seus movimentos elegantes, fantasiando a dança com o touro que um dia vão matar. Depois, um galpão, com sua ampla área interna praticamente vazia, usado pelos estudantes quando o frio excessivo impede que se exercitem ao ar livre. Em nenhum desses ambientes há touros reais – as aulas práticas são realizadas fora da escola, em praças de touros oficiais.
Há por fim uma sala de aula ordinária, pequena, onde os alunos se sentam diante de uma televisão. É lá que o professor esmiúça, com a ajuda de filmes, a aparência e o comportamento dos touros. Tal tipo tem o contorno dos olhos mais claro. Outro apresenta certo ângulo nos chifres. Outro ainda traz determinado padrão de cores no pelo. A identificação do animal, explica o mestre, ajuda na tomada de decisões dentro da arena. Matéria obrigatória, as aulas fornecem indícios de como o touro investirá contra o matador, ou do quão furioso pode ficar quando provocado. Outras disciplinas ensinam as posições do matador diante do animal, a sequência dos rituais na praça, a limpeza da roupa e as regras do cerimonial.
A equipe dos docentes é formada por quatro toureadores profissionais, que recebem um salário de aproximadamente 6 mil reais. Ali também trabalham, em regime voluntário, um preparador físico, um especialista em gado, um historiador de tauromaquia e um psicólogo. Não é preciso assistir às aulas para se tornar toureiro, mas a profissionalização das últimas três décadas fez do ensino um dos caminhos mais eficientes para se chegar à arena de touros.
Os vídeos que o professor colocou a seguir para os alunos assistirem, na pequena sala de aula, mostravam matadores profissionais durante festivais recentes. A música típica das touradas, a marcha redobrada ou pasodoble – com seu compasso binário e a mistura de percussão com melodiosos instrumentos de sopro –, mantinha os rapazes alertas. Na tela, um matador driblava um touro. Uma, duas, três vezes. Mais algumas. Então o animal o jogou ao chão. Os garotos, vestindo moletom ou agasalho esportivo, deixaram escapar um “ai!”, trincaram os dentes e suspiraram. Mas não pareciam especialmente impressionados. Sem comentar a cena, logo já estavam acompanhando com o olhar atento um outro matador na gravação seguinte.
No ano passado, morreram 7 200 animais em touradas na Espanha. Apesar dos acidentes constantes, não há registro de morte de um matador em ação desde os anos 80. As estatísticas oficiais indicam que havia 801 matadores em 2014, um incremento de 2,2% em relação ao ano anterior. A despeito das crescentes críticas a essa tradição, toureadores ainda são tidos como figuras heroicas e ícones de elegância. Cayetano, um dos principais expoentes da atual geração, representa a marca espanhola de luxo Loewe. O salário na arena, como o de um jogador de futebol no estádio, depende da fama e da ocasião.
Enquanto treinava, Carlos Ochoa, um dos alunos da Escola Taurina, contou que sonha desde pequeno com a profissão. “Comecei a praticar aos 13 anos e matei meu primeiro bezerro aos 15.” Aos 16, passou a envergar o “traje de luzes”, tradicional veste dos toureiros, assim apelidada devido ao reflexo das lantejoulas. Ochoa disse ter matado, neste ano, cerca de quarenta novilhos, animais que têm entre 2 e 5 anos de idade. Antes de se tornar um matador de touros, o estudante precisa praticar com bezerros e, então, com novilhos. A idade mínima para se ter o registro profissional e atuar na arena é de 16 anos.
Em seu escritório, no Centro da capital espanhola, a ex-governadora Esperanza Aguirre também assistia a vídeos de touradas. Uma das principais defensoras da tradição entre os políticos do país, foi ela que, em 2011, declarou a tauromaquia bem de interesse cultural em Madri. Aguirre apontou na tela do smartphone os movimentos elegantes de um matador. Ressaltou, por exemplo, como ele apoiava o joelho na areia quando deixava passar o animal, e como trocava a capa de mãos. “São todos lindíssimos. Você não imagina quão valentes eles são.”
Aguirre, 63, lembra-se de quando, na infância, ia ver os touros com o avô. “A tauromaquia é como desfrutar de uma pintura, de música”, explicou. “De repente se faz um silêncio em que se pode ouvir o zumbido de uma mosca, quando o toureador faz alguma coisa que nos impressiona.”
Mas àquela época, afirmou, as touradas eram uma tradição cultural, e não política. “Sempre houve oposição, mas havia liberdade – ia quem queria. O que estão querendo agora é proibir”, disse. Nas últimas semanas, Aguirre tem defendido que a Escola Taurina permaneça aberta. Durante a conversa, insistiu que a reportagem anotasse: “Não queremos tornar os touros obrigatórios”, ditou. Mas sim “que as pessoas possam escolher participar do ritual ou evitá-lo”. Sem subvenção, argumentou, porque não é papel do governo fomentar a tauromaquia, mas também sem proibição. Somente o governo regional de Madri, hoje controlado pelo Partido Popular, pode banir a prática. A prefeitura não tem autoridade para tanto.
Apaixonada pela tradição, a ex-governadora elencou diversos de seus heróis, em especial Antonio Ordóñez, “o melhor toureiro que vi na vida”. E rebateu o argumento de que a tauromaquia seja maltrato animal. “Todos os animais, quando vão ao matadouro, sabem que vão morrer, e sofrem. O touro, não. Ele luta.”
José Luís Bote falava ao celular. Parecia discutir os recentes problemas da Escola Taurina, da qual é codiretor. A verba pública está garantida, por contrato, até meados de 2016. Dali em diante, a instituição não poderá contar com o financiamento da prefeitura. Depois disso, se nada mudar nas contas da escola, ela será sufocada pela falta de recursos. “Levamos muito tempo sob ataque, e não nos defendemos porque pensávamos que não era necessário, que a cultura taurina estava arraigada na Espanha”, contou. “Mas criou-se a imagem de que somos assassinos. Agora estamos em risco.”
Bote, vestido de marrom da cabeça aos pés, também foi aluno da Escola Taurina e diz que ali se formam desde sempre “homens responsáveis”. Aos 9 anos, pisou pela primeira vez na arena da escola, onde estudou de 1979 a 1983. “Eu queria ver um touro passar perto do meu corpo. Sentir que sou capaz de me superar”, explicou. Agora, preocupa-se com a ideia de que a prática da tauromaquia possa estar declinando, e corra o risco de desaparecer. O número de corridas de touro diminuiu em 7% entre 2013 e 2014, com um total de 398 eventos. “Condenar a escola é condenar os jovens que desejam ser toureiros, como há também os que querem ser jogadores de futebol. Querem proibir uma forma de sentir.”
Ele defendeu que as críticas à escola e à tauromaquia partem de uma sociedade hipócrita, que “não tolera ver matar um touro, mas come chuleta”. Então interrompeu a fala, por um instante. Uma pequenina aranha caminhava pela mesa de madeira. “Mato ou deixo?”, perguntou-se o antigo toureiro, com um sorriso. “O que diriam os ecologistas?”
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