Um pedaço da história do Terceiro Reich, exposto na mostra “Hitler e os Alemães”, aponta para a cadeia de responsabilidades na Shoah foto: THÜRINGISCHES HAUPTSTAATSARCHIV, WEIMAR
Nazileaks
Uma exposição no Museu Histórico Alemão, em Berlim, convida a nação a se confrontar com sua responsabilidade coletiva na Shoah
Paulo Nogueira | Edição 52, Janeiro 2011
Ela é feiosa, amarelecida, sem graça. Tem o tamanho de meia folha de papel ofício e quase 70 anos de idade. Passa facilmente despercebida entre outros mil itens mais vistosos da exposição “Hitler e os alemães: povo e crime”, que há três meses agita Berlim.
Ainda assim, é essa folha de 15 por 21 centímetros, banal, impessoal e burocrática que melhor serve à intenção dos curadores da exposição montada no Museu Histórico Alemão: aprofundar o confronto da nação alemã com o seu passado nazista. Ao contrário do Japão e da Áustria, que optaram por não remexer no passivo moral relativo à Segunda Guerra, a Alemanha, a cada nova geração, mergulha mais e mais nos meandros do mais terrível período de sua história, na expectativa de compreendê-lo e, se possível, exorcizá-lo.
O item acima referido registra o telefonema de um engenheiro para a sede de sua empresa, cobrando a entrega de uma mercadoria atrasada. Coisa corriqueira, em suma. O telefonema foi atendido em 17 de fevereiro de 1943 por Fritz Sander, engenheiro-chefe da firma J. A. Topf & Söhne. Depois foi transcrito, datado, fichado, numerado, carimbado, encaminhado, rubricado cinco vezes e, por fim, arquivado no fichário da casa.
A indústria J. A. Topf & Söhne, de porte médio, era dirigida por dois irmãos e tinha sede em Erfurt, cidade central da Alemanha. O autor do telefonema, Karl Schultze, chamara de Auschwitz, a 686 quilômetros dali, na Polônia ocupada. A mercadoria atrasada era um “exaustor número 450 para as câmaras de gás”, que teria sido despachado em 18 de novembro do ano anterior e não chegara. “Dada a urgência de utilização do equipamento”, anotou, metódico, o Oberingenieur Sander, “devemos enviar de imediato uma nova peça para possibilitar a sua rápida instalação.” Schultze fora despachado de Erfurt três vezes para Auschwitz em 1943 a fim de supervisionar a instalação e funcionamento dos crematórios. No telefonema, ele também solicitava providências para que vinte guinchos manuais encomendados a outro fabricante chegassem logo.
Os curadores da mostra de Berlim optaram por descartar documentos mais chocantes da mesma empresa – como, por exemplo, a carta na qual a Topf & Söhne oferece um método avançado para acelerar o processo de incineração das pilhas de crianças dizimadas nas câmaras de gás. Para pôr os corpos na fornalha, dizia o documento descartado, recomendamos um simples garfo de metal sobre cilindros. Cada fornalha terá um forno medindo 60 centímetros por 45, uma vez que não serão usados caixões. Para transportar os cadáveres dos locais de armazenamento às fornalhas, sugerimos o uso de carrinhos leves, cujo diagrama em escala segue anexo. Heil Hitler! Por extrema, a carta fugiria do ponto de equilíbrio buscado pelos organizadores.
O tema é chocante, mas, quando se pensa, não deveria propriamente espantar, pois não se monta uma indústria da morte sem engenheiros, organogramas e reclamações. Como diz a narração de Noite e Neblina, o primeiro grande documentário sobre os campos de extermínio, dirigido por Alain Resnais em 1955, “um campo de concentração é construído como se constroem hotéis ou estádios – com orçamentos, concorrências, um ou outro suborno”.
Há tempos historiadores vêm demolindo a tese de que a Shoah, a política de extermínio de judeus, era um segredo de Estado guardado pela cúpula do nazismo. Ainda assim é perturbador constatar que um reles papelucho burocrático, com cinco assinaturas igualmente burocráticas, trata com naturalidade de fornos de cremação em Auschwitz. E que engenheiros, secretárias e telefonistas voltavam à noite para a casa, comentavam o dia de trabalho e depois iam dormir sem que a Alemanha acordasse diferente.
Esta é a primeira vez desde a morte do Führer, 65 anos atrás, que um grande museu nacional da Alemanha decide expor a relação entre Hitler e seu povo, jogando luz sobre a sociedade que o nutriu e lhe ofereceu o país para comandar.
A própria localização da mostra já vem carregada de simbolismo. Instalada nas entranhas de um antigo arsenal prussiano que hoje abriga o Museu Histórico Alemão, a exposição está a poucos metros da praça onde o regime promoveu o auto de fé de livros “antigermânicos”, em maio de 1933. “A era do extremo intelectualismo judeu chegou ao fim”, proclamou na ocasião o chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, enquanto uma população entusiasmada atirava tomos de Kafka, Einstein e Freud na pira.
No país que considera necessário manter proibidas a saudação nazista, a reimpressão do livro Mein Kampf e a reprodução da suástica, a preocupação em impedir que a mostra se torne local de peregrinação neonazista é clara. Inevitavelmente, o cuidado para que o ditador não vire objeto de fetiche acabou resultando numa anomalia: cassaram-lhe a voz. Na exposição inteira não se ouve um só de seus discursos; sequer uma amostra da voz esganiçada que arrebatou todo um povo. Objetos de uso estritamente pessoal do Führer, ou que ele tenha manuseado, também são raros nas salas do museu.
O historiador inglês Ian Kershaw, autor de monumental biografia do Führer recém-lançada no Brasil (Hitler, Companhia das Letras), foi uma das autoridades mundiais que trabalharam estreitamente com os curadores alemães. No ensaio que escreveu para o catálogo da exposição, intitulado Carisma e Violência, ele aborda a relação do líder com seus adoradores e cita o célebre discurso de Nuremberg, de setembro de 1936. “É um milagre vocês terem me encontrado no meio de tantos milhões. E é o destino da Alemanha eu ter encontrado vocês.”
Em outubro de 2010, com o país indo para a terceira geração nascida após a queda do Terceiro Reich, o instituto de pesquisa da Fundação Friedrich Ebert ouviu 2 411 pessoas entre 14 e 90 anos sobre o futuro do país. Um em cada dez alemães respondeu que gostaria de um Führer para, com mão forte, governar em benefício do bem de todos. (Em alemão, a palavra Führer significa “líder” e o seu uso, embora carregado, não deve ser automaticamente compreendido como uma referência a Hitler.) Mais de um terço respondeu que a Alemanha corre o risco de vir a ser controlada por estrangeiros.
“Estamos longe de ter enterrado Hitler”, adverte com cautela recomendável, mesmo que excessiva, um vídeo à saída da exposição de Berlim, cujas portas ficam abertas ao público até fevereiro.
Ernst-Wolfgang Topf, um dos donos da empresa de Erfurt que em 1943 recebeu a reclamação de Auschwitz, morreu aos 74 anos. Seu irmão Ludwig suicidou-se pouco após o final da guerra. O engenheiro-chefe Sander também.
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