ILUSTRAÇÃO: BERNARDO FRANÇA
Neura nas alturas
Afivelado na poltrona e condenado a ouvir tudo o que não quer
Paula Scarpin | Edição 64, Janeiro 2012
– Alô! Fala rápido que tô no avião, essa ligação é uma fortuna. Não, não é importante. Te ligo quando pousar.
O toque de celular foi atendido por um senhor na terceira fileira do voo JJ3914 da TAM, na manhã de uma segunda-feira recente. O passageiro sentado na fileira imediatamente à frente acionou a comissária de bordo e, discreto, perguntou se o uso do celular era permitido naquele voo, que fazia o curto trajeto Congonhas–Santos Dumont.
Sim, esclareceu a funcionária. Aquele Airbus 319 era uma das sete aeronaves da companhia em que o celular estava liberado para ser utilizado a bordo por até oito passageiros ao mesmo tempo. Não só liberado como incentivado. No bolso da poltrona em frente, junto às revistas, havia um encarte anunciando as vantagens da “Conectividade, agora também a bordo”. A tabela de tarifas – cerca de 9,40 reais o minuto, dependendo da operadora – esfriava um pouco o frisson geral.
Mesmo assim, a aquiescência da comissária para o uso do celular espalhou-se cabine adentro e teve o efeito de uma alforria. Em questão de minutos, iPhones, iPads e BlackBerries foram empunhados como troféus e só então os passageiros repararam que havia também adesivos autorizando o uso de smartphones, colados na mesinha dobrável e no painel luminoso acima das poltronas.
Era o que faltava para o relativo silêncio a bordo tornar-se mais uma lembrança em extinção.
A cacofonia sonora que acomete todo passageiro desde que pisa no saguão de um aeroporto brasileiro já faz parte de sua bagagem. Impossível escapar da vigésima “chamada final” de um voo que não é sequer o seu, mas cuja convocação estridente vai alcançá-lo onde estiver.
Até quem já está na boca do portão do embarque é forçado a ouvir pela enésima vez os termos da “Resolução nº 130 da Anac”, e quase a salvo no corredor do finger talvez ainda ouça os últimos ecos de mais um “reposicionamento de aeronave” do portão x para o portão y, “quando a decolagem for autorizada”. Deve haver algum motivo imperioso para veicular a informação de que passageiros não embarcam antes de receberem autorização para fazê-lo. Ou que a resolução da Anac é a 130, e não a 131.
De todo modo, todos esses passos e eventuais contratempos são compartilhados pela massa de passageiros que só se locomovem na vida – e portanto também nos aeroportos – com um celular colado à orelha ou o olhar aprisionado na sua tela. Uma variante dessa dislexia da comunicação ininterrupta é o dedilhar nervoso para uma última chamada já no interior da cabine, até que se receba a ordem de encerrar os últimos fiapos de conversas pessoais/públicas e desligar os aparelhos.
A cabine de um avião comercial costuma ter seu momento de pasmaceira geral e relativo sossego somente quando o voo se alça à velocidade cruzeiro. Uma vez encerrado o último dos avisos de bordo – são anunciadas nada menos que oito opções de sucos e refrigerantes oferecidos, com nome, marca e teor calórico (light, zero, normal, diet) –, o passageiro do curto trajeto entre Rio–São Paulo pode, enfim, apaziguar seus castigados tímpanos.
Ou melhor, podia.
Considerando-se que a população do Brasil é de 190,756 milhões de habitantes e estes acumulam 227 milhões de celulares, tornamo-nos a pátria com mais celulares do que bípedes. Com o crescimento da telefonia móvel ao ritmo de 16,6% ao ano (dados de 2010), só perdemos para a Índia em voracidade de hiperconectividade 24 horas por dia.
Portanto, era inevitável que a última bolha onde ainda podíamos nos comportar como seres que apreciam o som rarefeito do quase silêncio seria extinta sem misericórdia ou complacência.
Para o dependente desse cordão umbilical sem fio, celular mudo equivale ao cigarro apagado em mãos de um fumante desesperado. Coube a Emirates Airlines, de Dubai, utilizando tecnologia da empresa AeroMobile, a primazia em autorizar chamadas quando a aeronave ultrapassava os 20 mil pés de altitude. A partir daí, a demanda tomou conta dos ares.
O serviço OnAir oferecido no Brasil existe em apenas sete aviões da TAM: seis A319 concentrados na rota São Paulo–Rio de Janeiro e Vitória, e um A321 que liga capitais nordestinas a São Paulo e Porto Alegre. Mas há uma previsão de ampliação para 31 unidades neste início do período de férias, cobrindo boa parte da malha nacional.
O susto do usuário com o alto preço da ligação se explica pela complexa infraestrutura de satélites e cabos que norteiam as chamadas. A antena instalada na fuselagem e que capta o sinal de telefonia e internet de um dos satélites, o repassa a um provedor localizado em Mônaco. É este provedor que faz a ponte com o telefone discado pelo passageiro em voo.
Os próprios órgãos internacionais de tráfego aéreo retiraram do passageiro chegado a uma quietude o argumento mais forte para manter a cabine livre dos grilos falantes: a segurança dos passageiros. A Agência Federal de Aviação Civil dos Estados Unidos jamais chegou a uma conclusão definitiva quanto ao perigo real do uso do celular a bordo.“Não há evidência para afirmar que esses aparelhos não possam interferir nas comunicações de uma aeronave, assim como não há evidência em sentido contrário”, resume, cripticamente, o porta-voz da agência, Les Dorr. Até hoje, nenhum acidente aéreo teve como causa comprovada a interferência de um celular usado a bordo.
A proibição tende a ser, essencialmente, uma precaução. “Todos os dias aparecem aparelhos novos com funções diferentes, e é praticamente impossível testar cada um deles para garantir que não interfeririam na comunicação. Como o início e o final de um voo são os momentos de maior troca de informações entre cabine e torre de comando, é apenas mais seguro proibir tudo”, explica o professor Claudio Jorge Pinto Alves, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica.
Nada impede, porém, que quando todos os aviões tiverem se transformado em pandemônios acústicos ocorra a alguma empresa aérea reinventar o silêncio. A matriz já existe: o vagão mais concorrido e exclusivo do trem que liga as cidades de Boston a Nova York proíbe o uso de celulares e conversas em tom alto. Leva o nome de “Quiet Car” (Compartimento Silencioso) e é considerado chiquérrimo.
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