Em Seropédica, na Baixada Fluminense: Quando Lula venceu a eleição, espalhou-se no templo da Igreja Universal do Reino de Deus da cidade o discurso de que o fim do mundo está próximo CRÉDITO: CAIO BORGES_2022
No império das fake news
Um passeio pela cidade mais evangélica da Baixada Fluminense
Camille Lichotti | Edição 195, Dezembro 2022
Nos dias anteriores ao segundo turno da eleição presidencial, a piauí fez plantão em Seropédica, cidade de 90 mil habitantes, na Baixada Fluminense. Cortada ao meio pela BR-465, a antiga Estrada Rio-São Paulo, Seropédica é poluída pela atividade mineradora e por um imenso lixão, dominada pela milícia e abarrotada de templos evangélicos das mais diversas denominações. Desde o início da década passada, 44% dos moradores se identificavam como cristãos evangélicos. A cidade tem uma lei que confere a Jesus Cristo o título de Guardião Espiritual de Seropédica. No primeiro turno da eleição, 56,76% dos seropedicenses votaram em Jair Bolsonaro, e 36,29% preferiram Lula. No segundo turno, Bolsonaro ampliou sua votação, batendo em 62,06% dos votos, contra 37,94% de Lula. A piauí percorreu muitos quilômetros, de uma ponta a outra da cidade, entrevistando dezenas de moradores, e colheu histórias que mostram a relevância que os temas religiosos e morais adquiriram entre os eleitores locais, em meio à disseminação arrasadora de fake news.
O FEIRANTE E O PROFESSOR
Todo dia, Edivan Batista Siqueira monta sua banca na altura do km 49 da rodovia, no Centro de Seropédica, para vender laranjas e abacaxis. No fim de outubro passado, ele se preparava para repetir seu voto em Jair Bolsonaro no segundo turno. Um professor de física aposentado estava determinado a dissuadi-lo.
Siqueira, de 39 anos, votou três vezes seguidas em candidatos do PT em eleições presidenciais. Em 2018, optou por Bolsonaro porque queria uma mudança no cenário político. “Quando a Dilma [Rousseff] estava tentando a reeleição, já tinha um esquema de corrupção no governo. O único jeito de mudar isso era tirar as peças do tabuleiro e botar outras”, disse. Para ele, Bolsonaro entregou a renovação. “Você quase não ouve mais falar de corrupção. A mídia bate tanto no presidente que, se tivesse corrupção, a gente só iria ouvir falar disso.” Siqueira normalmente se informa pelo Facebook e YouTube, nos canais da Jovem Pan e da BandNews. Em defesa do seu ponto de vista, diz que o “orçamento secreto” foi votado pelo Congresso – e, portanto, o presidente não tem nada a ver com o assunto.
“Mas o orçamento secreto foi coordenado pelo Bolsonaro, pelo líder do governo”, interveio Américo Sansigolo Kerr, o professor aposentado de física da Universidade de São Paulo que mora em Seropédica, onde sua mulher é professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Siqueira sorriu e desviou o olhar para a rodovia. Kerr continuou: “Se você quer saber o que um governo vai fazer tem que olhar o orçamento. O Bolsonaro vai cortar 12% do orçamento das universidades. De 2019 para cá, cortou 30%. A merenda está congelada desde que entrou. O salário mínimo só é corrigido pela inflação.” Kerr, um senhor de cabelos grisalhos, usava um adesivo de Lula sobre a blusa azul estampada com o nome da ilha grega de Santorini, uma recordação de viagem.
O vendedor, que vestia uma camisa de manga longa para se proteger do Sol forte, perguntou se era responsabilidade do presidente cuidar de toda a verba. “Não, mas a União deve ter programas para suprir isso nos municípios mais carentes. O que está acontecendo agora é que os programas estão se estrangulando. A situação das universidades é brutal”, respondeu Kerr. “Entendi”, disse o vendedor, rindo, sem rebater o argumento.
Siqueira se converteu ao cristianismo evangélico em 2021 e passou a frequentar a Igreja Batista Renovada Peniel, no km 54, longe do Centro, num trecho ainda mais pobre de Seropédica. “Eu falo com o pessoal da igreja: nosso pior erro foi nos omitir e não querer participar da política antes. Já que são todos ladrões, a gente é que deveria estar lá. Nós, que somos pessoas do bem e não praticamos o mal”, diz, citando uma parábola sobre plantas que buscam uma árvore para reinar sobre elas. “Tudo que está aí é espinheiro. Eles que estão fora da religião, eles querem dizer que são cristãos para conseguir se eleger. A Bíblia diz que quando os bons deixam de governar, os maus vão governar. Por isso, um cristão deveria estar lá na Presidência, uma pessoa que não fosse do mal.” Para ele, Bolsonaro não é um cristão de verdade porque foi flagrado num templo maçônico, imagem que viralizou na internet às vésperas do segundo turno. Mas isso não mudou seu voto. As questões religiosas só são levadas em conta quando confirmam seu posicionamento político. “Ele está em comunhão com as trevas, mas o Lula está mais nas trevas que ele. A Bíblia fala que esquerda não é uma coisa boa.”
Para o professor Kerr, a religião é uma cortina de fumaça. Ateu convicto, ele se recusa a desistir do amigo feirante, com quem conversa sobre política desde o início do ano. “A gente não deveria estar discutindo aborto porque tem gente morrendo de fome. Tem criança morrendo de Covid, sem vacina até agora.” Siqueira rebate: “Mas, gente, tipo, eu vou falar aqui na minha ignorância. Eu não terminei meu ensino médio porque tive que parar para trabalhar. A gente tinha que discutir projetos, mas a questão do banheiro unissex já existe. Um exemplo que apareceu para mim foi num restaurante do McDonald’s em São Paulo. Na minha ignorância eu não procuro, mas eu vi.”
Além do banheiro unissex, o vendedor introduziu outro tema. Disse que não ouviu da boca de Lula que ele iria perseguir os cristãos, mas no Sul do país “um [vereador] petista entrou fazendo protesto na Igreja Católica”.[1] “A Bíblia diz que seremos perseguidos”, continua Siqueira. “E eu digo que vai ser a partir de agora, já está sendo nos meios de comunicação e redes sociais.” Como exemplo, ele cita um amigo que posta conteúdos cristãos no Facebook e “o algoritmo” remove suas postagens. A moderação de conteúdo, na sua visão, é a prova da perseguição e de como sua opinião não é bem-vinda “do outro lado”.
Quando a conversa versava sobre questões econômicas, orçamentárias, a política de preços da Petrobras e a falta de investimento público, o vendedor se calava ou desconversava. Quando a pauta moral entrava em cena, ele se mostrava mais disposto ao debate. Siqueira não ficou sabendo da Carta aos Evangélicos que Lula publicou para tranquilizar os fiéis. “Mas [ler a carta] também não faria diferença porque eu não votaria no Lula por causa da religião. Até banhozinho de pipoca ele recebeu. A gente sabe que isso é um culto de adoração a Satanás, não é cristão. Eu nem gosto de falar dos demônios, mas ele fala alguma coisa de satanista lá.” (O banho de pipoca é um ritual de purificação de religiões afro-brasileiras, que não tem nenhuma conexão com “adoração a Satanás”.)
“Segundo a minha Bíblia, quem não é por nós é contra nós. Então essas religiões são do Demônio. Se você não é cristão, você está contra o cristão.” A informação foi prontamente corrigida pelo professor de física. O trecho da Bíblia a que o feirante se refere diz o contrário. No versículo 40 do capítulo 9 do Evangelho Segundo Marcos, um Jesus apaziguador diz que “quem não é contra nós está a nosso favor”. O vendedor ignorou a correção.
A certa altura, o professor mudou sua estratégia e embarcou no argumento religioso. “Se você segue o Novo Testamento, se você segue a Jesus, nós estamos juntos. Ele diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha que um rico entrar no reino do Céu. Jesus é um bom companheiro”, proclamou o ateu. “Quando perguntam a Jesus o que é maior, a fé ou o amor, ele diz que é o amor”, afirmou Kerr, referindo-se ao versículo 13 do capítulo 13 da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios. Siqueira apenas sorriu e olhou para a rodovia à frente.
O recurso do professor de física, de usar a religião na discussão política, retrata o tom das eleições presidenciais de 2022, em que Lula foi acusado de falar com “demônios”, fazer pacto com o Diabo, e Bolsonaro, além de canibal e pedófilo, apareceu como um maçom ligado a “rituais satânicos”, envolvido em “práticas de bode, de sangue”. Mas apesar do esforço de levar a discussão para a seara religiosa – na qual ele nem sequer acredita –, o professor não convenceu seu interlocutor durante mais de uma hora de conversa. É o que costuma acontecer: no universo do pensamento mágico, não há contra-argumentos, razão pela qual Deus e o Diabo foram tão invocados no curso da campanha.
O PEDREIRO
A poucos metros da banca de frutas fica a principal praça da cidade de Seropédica, no km 49. O lugar é modesto: bancos de concreto, aparelhos para exercícios de idosos, uma floricultura, uma banca de sorvete e um bar. Perto das árvores que separam a rodovia da praça, há um pequeno monumento: um púlpito de mármore preto com o desenho de uma Bíblia, onde se lê a frase: “Examinai as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna.” Trata-se de um presente à cidade de igrejas evangélicas.
Na penúltima semana de outubro, a praça estava cheia. Desde a manhã, uma fila de virar o quarteirão se formava na agência da Caixa Econômica Federal. Debaixo de um Sol implacável, os moradores aguardavam para sacar a parcela do Auxílio Brasil, atualizar o registro para receber o benefício ou resolver questões burocráticas. O pedreiro Edilson Pinheiro, de 51 anos, que recebe auxílio-doença, estava debaixo da sombra quente de uma árvore, esperando sua mulher voltar da fila do Auxílio. Ele não gosta de falar de política. Sorri e olha para os lados antes de falar em quem decidiu votar. De início, faz um preâmbulo sobre fraude eleitoral – mentira compartilhada exaustivamente por grupos bolsonaristas. Depois, diz que não é a favor da “ideologia de gênero”.
“Eu vi que o Lula é a favor do aborto, e eu discordo da pessoa abortar a hora que quiser. Não sou a favor da ideologia de gênero, o mesmo banheiro para homem e mulher. Nem tampouco de um homossexual usar banheiro de mulher”, diz. “A gente acompanha reportagens da Jovem Pan e vários vídeos no TikTok e no Kwai [redes sociais de compartilhamento de vídeos curtos] que mostram isso. E tem vários vídeos lá, casos concretos.” Fazendo eco aos discursos do presidente, ele acredita que a eleição de 2022 é uma disputa do bem contra o mal, uma luta espiritual.
Edilson Pinheiro se identifica como evangélico, mas está afastado dos templos. Frequentava a Assembleia de Deus, mas abandonou a denominação por discordar da cobrança de dízimos e da interpretação sobre o batismo. O pedreiro teve a experiência mais marcante de sua vida religiosa quando perdeu um de seus filhos num acidente perto daquela mesma praça. A roda de um caminhão que passava pela estrada se soltou e atingiu a criança de apenas 5 anos, que não resistiu aos ferimentos. “Ninguém procurou saber e investigar o que aconteceu, mesmo depois de feita a ocorrência, com processo aberto [contra a empresa de transporte]. Só Deus agiu por mim quando meu filho morreu. Se não fosse por Ele…”, diz, sem terminar a frase. Mudou de assunto para segurar o choro.
A religião nunca havia sido importante para definir seu voto, mas agora é diferente. “Desta vez está sendo fundamental porque o Diabo está querendo tornar muitas coisas explícitas, coisas que vão prejudicar muita gente”, afirma ele, mencionando a destruição da família e dos valores conservadores. “Onde ficam os pais nisso tudo? Se vai ter uma lei que vai proibir um pai de dizer o que é certo ou errado para seu filho, quem vai mandar é o Lula? Eu não posso mais bater no meu filho para corrigir ele, mas na hora de sustentar eu tenho que dar tudo para ele? O que mais eles vão fazer para destruir a população?”
Se o campo moral é notoriamente refratário a considerações racionais, o pânico moral é ainda pior. É nesse universo que se cristalizaram invenções como a “ideologia de gênero” e qualquer contra-argumento tende a cair no vazio.
A troca de acusações no campo religioso entre Lula e Bolsonaro não mudou em nada a visão política de Pinheiro. Para ele, a imagem de Bolsonaro numa loja maçônica é uma jogada de marketing. O vídeo de Bolsonaro dizendo que “pintou um clima” entre ele e adolescentes de 14 anos foi tirado de contexto. A fala de Bolsonaro propondo comer uma pessoa – compartilhado como se o presidente fosse “canibal” – só aconteceu “porque ele é militar”. “No quartel tinha um período de sobrevivência em que eles eram soltos no mato sem ter o que comer. Tem que comer o que aparecer. Igual um filme aí que mostrou um grupo preso em uma geleira e eles tiveram que comer os próprios colegas para não morrer de fome”, diz ele.
“Estão inventando fake news para descredibilizar Bolsonaro, e Lula ganhar votos. Você pode ver que eles só pegam uma parte e usam como querem.” Indagado se a estratégia bolsonarista fazia a mesma coisa, o pedreiro aposentado disse que não.
Pinheiro relata que viu “vários satanistas no Kwai fazendo trabalhos para que Lula ganhasse”. “Um desses satanistas está ganhando fama aí, sendo chamado para várias entrevistas. Ele apareceu enrolado num pano vermelho dizendo que Exu [orixá cultuado nas religiões de matriz africana, que não tem nenhuma relação com o satanismo] mandou fazer um trabalho para dar a eleição para Lula. Mas isso é um ponto que ninguém fala, né?”
Passava das três da tarde quando sua mulher, recém-operada, finalmente conseguiu atualizar o cadastro no Auxílio Brasil. Ela estava na fila desde as sete da manhã. Edilson Pinheiro voltou para casa naquele dia com a convicção de que Lula perderia as eleições, porque a Luz deveria prevalecer sobre as Trevas. “Se ele ganhar, aí eu digo que Deus não existe.”
AS IRMÃS REAL
O kit gay, lorota inventada há mais de uma década, sobrevive até hoje como um dos principais argumentos para o voto em Bolsonaro. “Não tem candidato perfeito, né, mas o menos pior para a gente é o Bolsonaro. Eu acho muito bom o jeito como ele defende a família”, diz Rebeca Real, dona de casa de 29 anos e mãe de quatro filhos. Apesar do dia quente, ela usava um vestido roxo que cobria braços e pernas. Depois de tanto esperar na fila do Auxílio, a dona de casa resolveu comprar um lanche para almoçar com a irmã.
“Quando o PT estava no poder era uma dor de cabeça muito grande para nós.” Ela conta que precisava “intervir” no que era ensinado na escola. “Eles ensinavam nossos filhos a serem lésbicas e homossexuais. Eu tenho que ensinar ao meu filho a minha religião. Eu respeito qualquer ser humano, mas eu tenho que ensinar os meus filhos de acordo com o que eu aprendi. O Senhor fez homem e mulher. Esse negócio de um banheiro só para todo mundo usar, por exemplo, eu não concordo.”
Rebeca Real é evangélica e frequenta a igreja Obra da Restauração de Tudo. Quando conversa sobre política, não demora para citar o kit gay. “Na escola dos meus filhos chegaram livros que tinham um buraquinho ensinando a criança a enfiar o dedo para poder ter relação com a mulher”, conta ela. (Pela descrição, ela se refere ao livro Aparelho Sexual e Cia, escrito pela autora francesa Hélène Bruller e ilustrado pelo cartunista suíço Zep. O Ministério da Cultura comprou apenas 28 exemplares para abastecer bibliotecas públicas, não escolares.)
Rebeca Real garante que o livro foi distribuído na escola de Campo Grande, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde seus filhos estudavam. A situação só melhorou quando ela conseguiu transferi-los para uma escola municipal de Seropédica que, segundo ela, tinha uma diretora evangélica que “não deixava essas coisas entrarem”. Mas Real ainda não está satisfeita. “Hoje mesmo eu estava ali falando com a diretora para a gente ver um meio de eu ir na Secretaria de Educação ou procurar a assistente social para tirar nossos filhos [os seus e os de sua irmã] da escola e ensinar em casa. Está muito perigoso para eles na escola”, diz.
A essa altura, sua irmã, Rute Real, dona de casa de 31 anos, intervém: “A gente preza muito por nossos filhos. A gente fica com medo, medo de muita coisa. Nós, cristãos, nos sentimos ameaçados. Estava rolando esses dias um vídeo de uma professora obrigando um menino a passar batom. Está errado isso. Eles estão abrindo muito o leque para o homossexualismo [sic] na escola.” (O vídeo é um boato de 2017. Trata-se de um caso de maus-tratos ocorrido no Distrito Federal, em que uma professora forçou um aluno a ingerir uma cápsula de Ômega 3. A mãe da criança ganhou um processo judicial contra a escola.)
“Vou votar no Bolsonaro por ele ser a favor dos cristãos. Eu não sou a favor de nada que o Lula é a favor, aborto, essas coisas”, diz Rute Real. “Se tivesse um cristão, a gente votava num cristão, né, Beca?”, continua ela, que duvida da religião de Bolsonaro. “Disseram que ele era satanista, mas eu não sei. Tanto faz, desde que respeite a religião e seja a favor da família tradicional, sem botar nas escolas essa coisa de banheiros tudo junto.” Sua posição é um indicador de que a associação de candidatos a seres malignos só tem relevância no voto quando confirma a opção do eleitor – em caso contrário, é desprezada.
A irmã concorda. “É, se Deus tivesse aqui e se elegesse, eu iria votar no Senhor, com certeza”, diz, soltando uma risada. “Mas como Ele não está, temos que votar no menos pior.” Rebeca Real não ficou sabendo da Carta aos Evangélicos, assinada por Lula. Mas ela tampouco se importa com o conteúdo. Diz que Lula não é confiável nas suas promessas. “Eu vi ele falando coisas boas pros evangélicos. Só que tem vídeos dele falando o contrário. Eu sinceramente não sei mais no que acreditar”, diz. No mundo das fake news, o que mais importa é criar um clima de incerteza, que leva a um desejo por “ordem”. Na dúvida, Real prefere acreditar no que lhe parece mais ordeiro e tradicional.
A MANICURE E AS CLIENTES
No segundo turno, as campanhas miraram em eleitores indecisos ou da chamada “terceira via”, como a manicure Grazielle de Azevedo Costa, de 38 anos. Criada na igreja evangélica, hoje ela frequenta a igreja da Comunidade Missionária Kadosh, mas só vai “de vez em quando”. No primeiro turno votou em Simone Tebet. Achava a candidata inteligente e gostava de suas propostas. No segundo, decidiu não votar em ninguém, porque se revoltou com o tom – “nojento” – da campanha.
“As pessoas estão confundindo política com outras coisas, principalmente religião. Para elas, os candidatos só prestam se for isso ou se for aquilo. A gente precisa de tantas outras coisas, mas os interesses dos brasileiros não estão sendo pautados”, disse, enquanto tirava as cutículas das unhas do pé de uma cliente. “Os candidatos também, pra mim, não estão valendo nada. Ficam usando redes sociais e meios de comunicação para acusar um ao outro. Está insuportável essa campanha. Embora eu esteja no barco também, não quero participar dessa escolha.”
Naquela quarta-feira de outubro, a quatro dias da eleição, a manicure estava prestando serviço em domicílio na loja de incensos de Alba Lima, uma comerciante de 62 anos, no Centro de Seropédica. O estabelecimento, com chão de cimento queimado, também vende estátuas usadas em religiões de matriz africana, velas para rituais e livros de espiritismo. Três quadros grandes decoram a parede dos fundos: um desenho de Jesus com a frase “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, um retrato de Iemanjá, orixá de religiões de matriz africana, e uma réplica da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.
“As pessoas acham que eu sou macumbeira por causa da loja, mas é uma fonte que a gente achou para sobreviver”, diz Alba Lima. A loja originalmente era uma papelaria, mas, com a chegada da informática, as vendas despencaram. Vender os novos produtos foi o que a salvou da falência. Numa cidade de maioria evangélica, uma loja de artigos religiosos para umbanda e candomblé não é uma opção muito rentável. “Mas dá para sobreviver”, diz a comerciante. Preso no batente da porta, um mensageiro dos ventos – muito usado no budismo e outras religiões asiáticas para afastar os maus espíritos – tocava seus sinos sem parar.
Assim que o assunto voltou para a política, uma senhora com cabelos grisalhos curtos, que estava apoiada no balcão, se retirou resmungando: “Eu não vou falar nada porque moro no Rio de Janeiro, isso aqui tá cheio de miliciano, e o chefe da milícia está sentado na cadeira de presidente.” Mas a manicure, com os pés da cliente em seu colo, estava sem papas na língua. “Bolsonaro acha que se ele falar que é evangélico, o povo vai votar nele. Para mim ele não é nada, ele é o que convém. Na eleição todo mundo é católico, evangélico, é maçom, é amigo de todo mundo. O prefeito aqui também finge que é evangélico quando quer voto e ganhou expressão com isso.” Josefa Lourenço, aposentada de 75 anos carinhosamente apelidada de dona Zezé, interveio: “O que mais tem aqui nessa cidade é crente falso.” Ela estava sentada nos fundos da loja e só de vez em quando abria a boca para soltar um comentário ácido. “Mas Jesus vai botar na cabeça desses crentes que é para votar no papai Lulinha”, disse.
Naquele mesmo dia, Grazielle Costa recebeu uma mensagem de um cliente em seu WhatsApp, dizendo que Lula era a favor do aborto e “não sei o que lá de gênero”. “Meu cliente manda várias colagens com tudo que Lula vai fazer e uma mensagem de ‘bom dia, Nação’. Eu nem respondo.” O mesmo cliente já disse que Lula reduziria a comunicação na internet. “Com que direito ele faria isso, gente? É cada lavagem cerebral que o povo tenta fazer.” Na família da manicure, todos são eleitores de Bolsonaro. “Minha mãe agora quer me convencer que Bolsonaro é de Deus, que é o pai do Auxílio, que se fosse com Lula eu ia passar fome. Uma palhaçada”, disse ela, lixando a sola do pé da cliente com força. “Minha mãe é cabeça-dura, fala que o Bolsonaro é a favor da família, que não vai deixar a minha filha entrar no banheiro com um homem dentro, que sem ele vai ter aquela ideologia lá que o Lula inventou de banheiro unissex”, diz.
Dona Zezé, uma senhora de 1,5 metro que anda descalça na loja para se sentir mais confortável, ficou curiosa para saber o que era um banheiro unissex. Quando a manicure explicou que seria um banheiro comum, em que pessoas de todos os gêneros poderiam entrar, dona Zezé gargalhou.
– Então quando eu vou à clínica o banheiro é unissex também. Minha filha, é um banheiro só mesmo porque a vida tá cara.
– Até pacto com o Diabo me falaram que o Lula fez.
– E fez mesmo, é?
– Fez nada, dona Zezé, isso é invenção do povo. Mas ele também não é santo, não. O PT teve mais de dez anos no poder e bagunçou tudo. Se a gente está nessa desordem é culpa deles. Por isso eu não vou votar em nenhum.
Dona Zezé revirou os olhos e acendeu um cigarro. “O Lulinha pode ser ladrão, pode ser tudo, mas eu sou Lula na cabeça, no pé e na mão. E se me perguntar, eu só vou falar mal do Bolsonaro. Quando ele aparece na televisão, eu até troco de canal para não olhar para a cara dele”, disse.
A comerciante Alba Lima comentou o comportamento de Bolsonaro de forma breve e direta. “Ele ataca muito o Lula porque é mal-educado e grosseiro. É só você ver no debate da tevê que ele não sabe se expressar, ele não tem assunto. Por isso fica falando essas babaquices, é coisa de gente sem assunto”, disse ela. Lima explica que a melhor época da loja foi durante o governo Lula. “No tempo do PT eu não achava tão difícil a sobrevivência como está sendo agora. Isso aqui tá igual a época do Collor: quem tem dinheiro, tem. Quem não tem se lasca.”
Para ela, Bolsonaro é o candidato dos ricos – e ele só teve maior expressão na cidade por causa do alto número de funcionários públicos. “Aqui em Seropédica é metade na pobreza extrema e metade funcionário público”, define ela. De fato, o maior empregador local é a prefeitura. O modesto comércio da cidade, à beira da BR-465, não é capaz de absorver a mão de obra local. Seropédica ainda é uma cidade-dormitório de quem trabalha no Rio, apesar de ficar a 68 km de distância. Uma viagem de Seropédica ao Centro do Rio pode durar mais de 4 horas. “Quem tem seus salários da universidade e de cargo na prefeitura vota no Bolsonaro porque tá com o salário garantido e não tem que botar a marmita debaixo do braço e ir trabalhar. A fonte de renda aqui é pouquíssima, só sobrevive mesmo quem é teimoso.”
Lima mora na cidade desde quando o único asfalto era o da BR-465. “A cidade cresceu, mas podia estar bem melhor. Itaguaí [cidade vizinha] foi para a frente, aqui continuou igual. Abre uma coisa e logo depois fecha. Nada evolui. Continua o mesmo mundinho que era quarenta anos atrás, só que com mais comércio e mais gente.” A mesquinharia política, com a qual a população local já está acostumada, sempre foi um entrave. “O antigo prefeito funcionava assim: na rua que morasse um inimigo político ele mandava arrumar e sanear, mas na frente da casa do desafeto ele parava. Só voltava com o asfalto lá na frente. Na rua da minha tia tinham dois inimigos dele e naquele trechinho ele não arrumou.” Ao lembrar da ocasião em que encontrou o antigo prefeito na porta de sua loja, ela conta: “Eu falei para ele: ‘Pelo amor de Deus, para com essa covardia, homem, assim você não vai a lugar nenhum.’ O que minhas tias têm a ver com isso? Elas vão ficar com lama na rua por causa de política?” E conclui: “Dizem que isso é uma cidade, mas é um lugarejozinho.”
A RESIGNADA DA LANCHONETE
Quanto mais pobre o bairro, mais igrejas aparecem. O km 40 fica a quase vinte minutos do Centro de Seropédica, perto do Rio Guandu. As ruas são empoeiradas e a praça conta com alguns bares, lojas de açaí e um coreto que precisa de reforma. Na rua principal da região, perpendicular à BR-465, numa extensão de cerca de 2,5 km, há pelo menos dez igrejas evangélicas de diversas denominações. Algumas estão construídas em frente a outras, algumas ficam próximas a terrenos baldios. Quase todas são de fundo de garagem: pequenas, modestas, improvisadas. Uma delas, que faz parte da Assembleia de Deus, ainda está em construção, com apenas a estrutura de tijolo montada e vigas saindo do teto. Quatro faixas na entrada indicam o horário dos cultos e o nome do templo: Ministério Jesus Cristo É a Única Esperança.
A rua principal liga a BR aos areais onde a mineração modifica a paisagem. A principal atividade econômica de Seropédica é a extração de recursos naturais – areia, pedra, brita – para abastecer outras cidades do estado. Por causa do vento, a areia se espalha pelo ar e se acumula na beirada das ruas. Quanto mais longe da rodovia, mais precárias as condições de vida. Logo depois de uma ponte inútil – sob a qual não há um riacho, mas apenas mato – Zenilda Vieira, de 46 anos, assistia à televisão numa lanchonete enquanto folheava uma revista de cosméticos. O programa matinal falava sobre os benefícios da cúrcuma (planta com propriedades medicinais que ela não conhecia) na prevenção do câncer. “Quando eu ouço falar de câncer eu lembro logo do Mateus fumando”, comentou ela com a atendente da lanchonete. “Eu não consigo entender essa coisa sem lógica. Cerveja você ainda está sentindo algum sabor, mas cigarro? Jesus tem que ter misericórdia.”
Zenilda Vieira é católica, mas não frequenta a igreja. Para ela, a eleição presidencial deste ano foi “a pior em todos os tempos”. “É confusão o tempo todo porque o povo não se conforma. As pessoas estão com ódio no coração. Eu fico sem falar do meu candidato por causa desse problema.” Às vésperas do segundo turno, ela presenciou uma briga na fila da lotérica, no km 40. Quando chegou lá, os brigões estavam falando de aborto, Diabo e satanismo. “Isso só assusta as pessoas fracas e sem opinião”, diz. Ela fica sabendo das fake news pelas conversas que escuta no bar onde trabalha, não muito longe dali.
“Mas isso são as pessoas que escolhem um candidato e ficam espalhando essas coisas para defender. Eu acho que a gente não está na vida dos outros para saber o que eles passam. É fácil você ver um drogado e dizer que é vagabundo. Ver uma garota que abortou e dizer que ela é safada. Ajudar, ninguém ajuda”, diz ela, inconformada. Por isso, ela prefere não se orientar politicamente com base nesses temas. “A religião para mim é Deus. Se você ensina o caminho de Deus, pode liberar a droga e fazer tudo que é você que vai escolher.”
Para ela, o principal problema do Brasil hoje é fome e desemprego: “Aqui está como o Brasil todo. As pessoas estão comendo só arroz, feijão e ovo.” Mas ela não acredita que isso se resolverá com a eleição. Resignada, acha que a situação do país continuará igual, seja quem for o presidente. “Toda eleição é a mesma coisa: eles sabem todas as dificuldades e têm todas as soluções, mas depois esquecem de tudo.” Na avaliação dela, Bolsonaro e Lula têm pontos positivos – e vários pontos negativos. “Eu só escolhi um porque sou obrigada mesmo. Eles não têm plano de governo, eles têm plano de fazer o povo brigar e ter ódio”, diz.
Fiel ao seu silêncio, ela não disse em quem votaria.
O SERVIDOR PÚBLICO
Cláudio Eduardo Fernandes é servidor público, tem 44 anos e se identifica como católico apostólico romano. Em 2018, votou no Bolsonaro porque queria mudança. “Em parte, ele entregou na questão da economia, mas se perdeu quando começou a atacar a imprensa. Foi a pior coisa que eu já vi num presidente. Eu não quero ditadura, quero democracia. Quero ser livre pra ir e vir, ir na praça, tomar cerveja, torcer pro Flamengo, fazer o que eu quiser”, diz. Ele acredita que nem Lula nem Bolsonaro são bons para o país. “O Lula já esteve lá e está ligado ao maior esquema de corrupção do mundo. Eu não vou julgá-lo, mas essa foi a imagem que passaram para nós. O outro está aí há quatro anos com um monte de coisas que eu não consigo concordar.”
O objetivo das campanhas no segundo turno era conquistar o voto de pessoas como Fernandes, que queriam uma terceira via. Para sua decepção, o envolvimento religioso definiu as eleições como um ponto fora da curva. Ele queria ouvir propostas, mas satanismo, maçonaria e ideologia de gênero viraram assuntos discutidos diariamente no trabalho. Fernandes acredita que religião e política devem ser coisas separadas. Quando não são, surgem cenas grotescas, como o alvoroço criado por Bolsonaro no Santuário de Nossa Senhora Aparecida, no interior de São Paulo, durante a campanha. “Minha esposa e eu ficamos chocados com essas cenas. Eles estão usando a religião para fazer politicagem sem nenhum constrangimento”, diz. Sua mulher, também católica, já tinha decidido votar em Lula porque não gostava da forma como Bolsonaro trata as mulheres.
Naquela mesma semana, pouco antes do segundo turno, um colega pastor, vice-presidente da maior Assembleia de Deus de Seropédica, tentou convencer Fernandes a votar em Bolsonaro. Seu argumento: o candidato era contra o aborto. “Eu respondi que países de Primeiro Mundo liberaram para que mulheres tenham acesso a isso num local adequado. Aí ele me respondeu que isso era contra os ensinamentos da igreja e eu, como católico, não deveria apoiar. Mas eu tenho que apoiar a vida e a decisão das pessoas, né? Eu não acho válido usar isso para atacar candidato, é um tema muito polêmico”, conta. (A piauí procurou o pastor, mas ele não quis falar.) Ele admite que muitas questões que a igreja defende vão contra as necessidades da sociedade. “Nós estamos em 2022, não em 1700. Algumas coisas que estão na Bíblia foram escritas para aquela época, para aquele contexto. Tem que interpretar”, pondera o servidor público.
A poucos dias do segundo turno, Fernandes ainda não tinha escolhido um candidato. Não quis ver os trechos dos debates na internet porque acredita que são enviesados. Preferia esperar o último debate, na TV Globo. “O que eu espero é que eles apresentem propostas para influenciar mais meu voto. Queria ouvir sobre saúde e a área de segurança”, disse. Também queria ouvir propostas de reajuste salarial para servidores públicos, ideias para acabar com o sucateamento das universidades e soluções para o saneamento e transporte no Rio de Janeiro. “É triste ligar o jornal de manhã e ver as pessoas se humilhando para chegar no trabalho.” Dias depois, dividido e decepcionado com o debate na Globo, Fernandes deixou para decidir seu voto na manhã do dia 30 de outubro, dia da eleição.
Acabou votando em Bolsonaro.
NA FILA DA CAIXA
Na praça central da cidade, no km 49, num outro dia de fila na Caixa Econômica, a cuidadora de idosos desempregada há oito meses, Miriamara da Silva Souza, de 58 anos, esperava para atualizar o cadastro no Auxílio Brasil. “Olha só, eu vou votar no Lula”, disse ela sem rodeios, mas diminuindo o tom de voz. Quase imediatamente, três senhoras que sentavam ao seu lado se levantaram do banco de concreto e se afastaram. “Sei que muitos vão me julgar, mas eu não vou mudar, não sou piolho para andar na cabeça dos outros.” Souza se declara evangélica e frequenta a Igreja Adventista do Sétimo Dia, mas não aquela grande e imponente que fica no Centro, frisa ela. Vai no templo menor, perto do conjunto habitacional onde mora.
A religião, diz ela, é uma coisa pessoal, que nada tem a ver com voto, muito menos com caráter. No boca a boca da cidade, ela ficou sabendo do boato de que Lula fecharia as igrejas, mas isso não mudou sua decisão de voto. “Eu entreguei na mão do Senhor. Se for da vontade Dele, o Lula não vai fechar igrejas”, disse, esperançosa. Souza achou os debates tumultuados e desistiu de acompanhá-los. Preferiu assistir à cobertura do Jornal Nacional, o telejornal da Globo.
“Nas redes sociais é pior que no debate. É um ofendendo o outro o tempo todo.” Ela dá como exemplo a história do banheiro unissex, que virou tema de brigas inflamadas no seu Facebook. “Esse negócio é uma palhaçada. Eu falei que lá em casa o banheiro também é para todo mundo. Eu, meu marido, meus filhos, todo mundo usa o mesmo banheiro”, diz, rindo.
O que definiu seu voto foram as condições materiais. “Quando o Lula estava no poder a gente tinha emprego, tinha mais acesso às coisas. Pronto, por isso que eu vou votar nele. Eu e minha família toda”, disse. Na sua opinião, os principais problemas do Brasil são a fome e a habitação. “Eu queria ver eles falando de habitação no debate, isso está muito ruim para nós.” Souza mora numa casa pequena num condomínio do programa Minha Casa Minha Vida, mas paga aluguel porque o imóvel não está em seu nome. “Quando teve o programa aqui as pessoas pegaram três, quatro casas, e teve gente que ficou sem nenhuma. Aí tivemos que pagar aluguel, e está muito difícil manter.”
Perto dali, sentada debaixo de uma árvore para se proteger do Sol, Creuza Francisca de Oliveira, de 64 anos, esperava uma carona do filho depois de sacar o dinheiro do Auxílio Brasil. Ela faz faxina quando aparece uma oportunidade e, se necessário, trabalha como babá. É assim que ganha a vida, “orando e pedindo ao Senhor para sobreviver”. Diz que mudou seu voto do primeiro para o segundo turno, mas não revela o nome dos escolhidos. “A gente vai vendo o que eles falam, analisando o que deixam de falar. Mas a decisão é do Senhor, só ele tem o poder da vida e da morte.” Oliveira é evangélica da Assembleia de Deus. “Só espero que o presidente eleito olhe pelo povo porque a população está muito carente.”
Ela reclama do preço dos alimentos, do desemprego e diz que os pobres estão vivendo pela misericórdia de Deus. Mas não é só isso: também quer um presidente que não persiga os cristãos ou feche as igrejas. Ela acredita que existe, sim, um candidato que quer perseguir fiéis. Oliveira ouviu que Lula perseguiria os cristãos em vídeos de YouTube, nas peças de divulgação das campanhas que passavam entre um vídeo e outro.[2] Ela usa o YouTube para ouvir louvores e aprender novas receitas de bolo. “Eu não tenho muita paciência para ficar acompanhando essas notícias”, admite. “A religião não pode estar no meio da política. A religião já existe desde o princípio do mundo. Uma coisa não se mistura com a outra, como o óleo não se mistura com a água.”
Ela não tem certeza sobre o que é mais importante na hora de definir o voto. “Eu só sei que Deus é o ar que nós respiramos e ele está no controle de tudo. Então que Deus venha a escolher o que for melhor, não só para Seropédica, mas para a nação inteira. Vamos esperar em Deus que ele vai escolher o melhor.” Mas o que ela acha que é melhor para a nação? “Ah, aí eu não sei”, diz, sorrindo e olhando para o chão.
OS MILITANTES
Rafael Schiavo, historiador, e Vanessa Rochstroks de Souza, concluinte do curso de ciências sociais, têm 41 anos e militam no PCdoB. Eles fazem parte do Comitê Popular Luta de Seropédica, em aliança com outros partidos de esquerda, e passaram todo o segundo turno tentando virar votos pela cidade.
Na avaliação de Vanessa Souza, a população mais pobre deixa de votar em Lula por orientação, não porque realmente acredita nas invenções e mentiras que são veiculadas. “O padre da Igreja Católica, no Dia de Santa Terezinha, falou para os fiéis que não era para votar na esquerda porque era um grande pecado”, diz ela. Em compensação, o que aconteceu na Basílica de Nossa Senhora serviu de contraponto para os militantes usarem na campanha local. Souza diz que prefere conversar sobre justiça social, desigualdade, pobreza e fome. Ela cita que diminuíram os casos de aborto em países que legalizaram a intervenção. Seus argumentos tendem a funcionar, diz ela, quando as pessoas estão indecisas. Fora isso, é como falar às paredes. “Eles não acreditam, pensam que é mentira. Não importa o que você mostre.”
O aparato do Estado na cidade também tem lado. “No posto de saúde aqui tem panfleto do Bolsonaro, mas a gente não pôde levar panfleto do Lula. O prefeito trouxe Cláudio Castro [reeleito governador do Rio pelo pl] aqui duas vezes, mas o Marcelo Freixo [candidato pelo psb] não pôde entrar para falar com a população, só pôde ficar na universidade”, conta Souza.
Rafael Schiavo é ateu e, tal como o professor de física que tentou virar o voto do feirante, acredita que a pauta religiosa é uma cortina de fumaça. “Quando eu vou para a rua, eu não posso falar de economia, eu tenho que falar que o Lula não vai fechar igreja. Tenho um pouco de dificuldade com isso”, diz. Ao conversar com a população, ele tenta apontar contradições nas políticas do governo, dialogando com evangélicos na condição de trabalhadores que cumprem uma jornada precarizada, pegam ônibus e trem, e não têm acesso a direitos básicos. “Mas não adianta. A forma com que eles compreendem a política é pelo lado imaterial”, diz Schiavo.
O argumento de que a esquerda defende toda uma rede de proteção social aos mais vulneráveis, enquanto a direita de Bolsonaro desmantelou as estruturas estatais voltadas para essa população, não surte efeito para quem nunca teve acesso à proteção social. Na década de 1990, Seropédica registrava um dos piores indicadores de saúde do Rio, incluindo casos de hanseníase. Foi nesse ambiente hostil, agressivo, com uma população entregue à própria sorte, que os grupos de extermínio, considerados benfeitores locais, começaram a operar. De outro lado, operavam as igrejas evangélicas, que compreenderam as aflições das famílias e as ajudaram a ter seus próprios projetos de vida. Naquele início dos anos 1990, enquanto a Igreja Católica levava meses para estruturar uma comunidade religiosa, os evangélicos abriam várias igrejas por semana na Baixada Fluminense.
O discurso religioso, na avaliação de Schiavo, se alimenta do sofrimento como salvação, cura e libertação, o que impede que as pessoas se radicalizem contra o sistema. “Qual o lazer da população? Ir para a igreja. Onde ela vai sentir conforto? Na igreja. Esse indivíduo é anulado, sem acesso a nada. Aqui não tem shopping, não tem cinema, não tem teatro, não tem parque. Só bar e igreja. São as duas instituições que disputam o território”, brinca Schiavo.
Superar essa situação é um projeto para décadas, diz o historiador. “O que eu vou falar para uma pessoa que diz que é uma batalha espiritual? Não existe argumento para isso.” O jeito é entrar na onda religiosa. Com outros militantes, Schiavo e Souza distribuíram materiais destinados ao público evangélico na cidade. Uma frase reforça que “Lula não é a favor do aborto” e um aviso em letras vermelhas no centro do panfleto diz que Lula é cristão.
OS VENDEDORES
“Nada disso faria eu mudar meu voto”, diz o vendedor de produtos eletrônicos Wagner Macário, de 49 anos, referindo-se às estratégias de convencimento religiosas. Em sua banca, ele também vende pen drives carregados com playlists separadas por gênero, incluindo música gospel. “Eu me moldei, né? Não tem como você moldar uma coisa que já está moldada”, diz ele, enquanto ao fundo se ouve o louvor Momentos, do cantor gospel Marcos Antônio, que adotou como nome artístico “Negrão Abençoado”. “Para você fazer uma pessoa mudar de ideia você tem que pegar ela molinha, aí você consegue persuadir a mudar. Mas agora eu já tô seco.”
Macário se declara evangélico, mas está afastado da igreja. Apoiado na porta lateral de seu Corsa 1999 branco, à venda por 5 mil reais, coberto por uma bandeira do Brasil, ele explicou por que gosta tanto de Bolsonaro. “Não teve nenhum presidente que passou pelo que ele passou. Pegou o país quebrado e uma pandemia”, diz. “Se ele tivesse roubado ou tivesse alguma acusação de corrupção, ainda assim eu votaria nele porque ele é carismático. Ele é a cara do meu pai.” Seu pai, diz, também “fala errado”, é “brincalhão” e faz “ironiazinhas quando quer agradar”.
“No meu tempo, os caras fumavam maconha. A gente nem sabia que o que eles fumavam era maconha. Ou eram homossexuais e a gente não sabia. Hoje a coisa está muito desleixada. Eu respeito todo mundo, mas acho que não precisaria o Lula querer fazer um homem ir ao banheiro das meninas. Cara, isso aí pra mim não funciona.” Ele garante que, eleito, Lula sancionaria uma lei permitindo que os bandidos roubem até 2 mil reais sem que isso seja considerado crime.
O vendedor só não vê tudo que Bolsonaro publica nas redes sociais porque não tem tempo para tanto conteúdo. “Eu tenho o Bolsonaro no meu Facebook, a gente é amigo no Facebook. Então eu só aperto lá para botar que visualizei.” Além disso, usa grupos de WhatsApp para se informar. “Mas antes da gente falar qualquer coisa tem que ver se não é fake, né? Tem que se informar. Se me faltar uma palavra aqui eu já abro o telefone e procuro. Graças a Deus com esse negócio de internet acabou a burrice”, diz.
Ele votou em Lula em 2002. Acreditava que Lula representaria os trabalhadores, mas, segundo ele, o petista se corrompeu. “Foi muito lixo para botar debaixo do tapete. Foi o governo que emprestou milhões para a Venezuela e para aquele outro país lá.” Ele então se dirige a um colega vendedor: “Ô, Shane, qual o outro país mesmo que o Lula mandou dinheiro? Cuba, né? Porra, eu não entendo nada de economia, mas se eu for emprestar dinheiro, eu vou emprestar para os Estados Unidos, para a Austrália, porque são países de Primeiro Mundo que têm condição de pagar, não para Cuba.”
Macário não assistiu aos debates presidenciais. Nos dias de debate, os vendedores locais se reuniam para assistir à televisão num trailer atrás de sua barraca. Mas ele nem chegava perto porque as coisas ficavam “acaloradas”. “Aqui atrás é tudo Lula”, diz, apontando para outros ambulantes. “Infelizmente no Brasil tem muita ignorância”, disse, decepcionado. No caso de vitória de Lula, Macário pretende se mudar para “os Estados Unidos ou Canadá”. “Eu sou mecânico, motorista, posso fazer qualquer coisa. Vai dar para ficar aqui, não.” Depois de alguns segundos em silêncio, ele gritou para um homem que terminava de fumar um cigarro do outro lado da rua:
– Ô, Bracinho, tu vai votar em quem?
– Em mim mesmo.
O colega é vendedor ambulante nos trens e ganhou o apelido de Bracinho porque seu braço esquerdo é menor que o direito. Ele atravessou a rua rindo e se aproximou de Macário.
– Chega aí, pô. Tô falando sério, tu vai votar em quem?
– Pra mim é Lula, pai.
– É Lula, é?
– Temos que ser Lula, né. Porra, eu não tenho capital, meu irmão. Tem que lutar pelo partido trabalhista, pô.
– É mermo? É só isso?
– Tem que ser.
– Informou, informou e não informou nada.
– Dá tua força aí, então.
– Beleza, pô. Perguntei para sair uma faisquinha só de leve. Aqui é Bolsonaro sempre.
– Então o negócio é andar armado?
Os dois riram. Bracinho seguiu em direção à praça da cidade. Nenhum deles estava disposto a brigar por política naquele dia ensolarado.
O INSTRUTOR DE ACADEMIA
Carlos Roberto de Freitas, instrutor de academia de 30 anos, cresceu na Igreja Universal do Reino de Deus. Frequentava os cultos de domingo e sentava sempre nas primeiras fileiras do templo, localizado à beira da rodovia que corta Seropédica. Sua mãe foi obreira da Universal – nome que se dá aos trabalhadores voluntários da igreja – por mais três décadas.
Segundo ele, a igreja sempre jogou com a política, especialmente quando se aproximavam as eleições. “Eles fazem reuniões para mostrar candidatos a deputado, vereador, prefeito e até os candidatos ao Conselho Tutelar da cidade.” Dependendo do objetivo almejado, o discurso do pastor é ajustado. Antes de Bolsonaro, os pastores da Universal, segundo Freitas, apoiavam a esquerda. “Eles diziam que a direita iria vender a Amazônia, que era para a gente votar na esquerda.” A partir de 2016, os pastores viraram a casaca.
Em 2018, Freitas comentou com um amigo da igreja que votaria em Fernando Haddad, do PT. Nessa época, ele estava estudando sobre política brasileira por meio de vídeos de influenciadores de esquerda no YouTube. “Comecei a acompanhar os jornais, vi que o Sergio Moro não tinha prova nenhuma do que acusava o Lula. E Lula foi o responsável por favorecer os trabalhadores.” De alguma forma, o pastor ficou sabendo de seu voto e o confrontou dentro da igreja. “Ele disse que eu era comunista, que eu estava errado, falou um monte de grosseria. Minha vontade era denunciá-lo para a direção da igreja, mas eu sabia que não ia fazer diferença”, diz o instrutor.
No seu ponto de vista, ao contrário das igrejas, Jesus foi neutro na política. “O que está acontecendo é o que acontecia quando a Igreja Católica não deixava o povo ter acesso às leituras bíblicas. O povo agora não pode ter acesso à informação. Eles bloqueiam qualquer crítica ao Bolsonaro falando que é mentira, que a mídia mente, essas coisas”, diz. Freitas percebeu que algo estava errado quando, depois da eleição de Bolsonaro, o pastor disse que o presidente da França, Emmanuel Macron, era o anticristo. “Eu fui procurar na internet e vi que não, ele não era anticristo coisa nenhuma.”
Em agosto deste ano, já certo de que votaria em Lula, ele parou de ir aos cultos para evitar a pressão do pastor. Freitas conhece amigos petistas da Universal e não entende como eles conseguem permanecer na igreja nessas condições. “Eles falam que permanecem lá por Deus. Mas tudo que a igreja pede em questão de política, eles fazem o contrário”, diz. Depois das eleições deste ano, Freitas decidiu abandonar a Universal. Pediu desculpas à mãe e disse que iria procurar outra igreja.
A uma semana do segundo turno, a Igreja Universal distribuiu seu jornal, a Folha Universal, com um texto intitulado Por que Lula Tem Fama de Ladrão. Em Seropédica, Freitas conta que viu o pastor, com outros obreiros da igreja, fazendo propaganda de boca de urna no dia da eleição em sua seção eleitoral.
Quando Lula venceu a eleição, espalhou-se no templo de Seropédica o discurso de que o fim do mundo está próximo.
A PASTORA
A piauí conversou com uma pastora da região que pediu para não ser identificada para não sofrer represálias. Ela comanda uma igreja pequena, de denominação independente, numa vizinhança pobre. As eleições presidenciais a atropelaram como um trator, e ela ainda está tentando entender o que aconteceu. “Eu demorei para me manifestar, não declarei o voto, mas fui altamente atacada nas redes sociais”, diz a pastora. “As pessoas sabem que eu não sou Bolsonaro, mas elas criaram um novo pecado: o pecado de não ser bolsonarista.”
Para ela, essa situação é resultado da influência de grandes lideranças evangélicas que atuam nas redes sociais. “Esses grandes pastores têm uma vantagem financeira na questão de impostos. Nós somos uma igreja pequena, mas as grandes são empresas. Elas têm tudo”, diz ela, para quem é aí que reside o interesse no jogo político. “Ou é isso ou estão construindo um projeto de poder. Tomar o poder mesmo, colocar alguém da igreja na Presidência da República. Se isso acontecer, eu não sei, mas vamos ter um governo autocrático, né?”
O racha é mais visível nas redes sociais. Ali, os fiéis mostram a insatisfação com a pastora que não quer declarar apoio a Bolsonaro. Neste ano, queriam que ela falasse sobre aborto e questões de gênero durante os cultos. “Eu já perguntei muito para Deus se eu estou errada. Essa situação toda me deixa apavorada porque eu já estou pensando em como vou lidar com o ódio que as pessoas vão ficar depois das eleições”, desabafa. “As pessoas procuram a igreja buscando uma cura, um apoio, um milagre, um direcionamento, não isso.”
Sua igreja lida com a pobreza e tudo que vem com ela. A população não procura apenas ajuda financeira, diz a pastora, mas também emocional. Ela própria já levou alguns fiéis para fazerem tratamento com psicanalistas, ou para o hospital. Com a ajuda da comunidade, ela auxilia os mais necessitados com remédio, leite, fralda. Cuida de crianças abandonadas quando os pais são presos ou acabam viciados em drogas. É para a pastora que as mães ligam quando seus filhos são espancados pela polícia. Nesse canto do mundo, Jesus é mesmo a única esperança, como diz a placa da Assembleia de Deus do km 40.
“Os pastores têm a confiança dessas pessoas. Agora imagina ele pedindo só um voto para você, a quem ele ajudou tanto. Eu não faço isso, mas você acha que não tem quem faça?”, questiona ela.
Antes do primeiro turno, um casal de fiéis a procurou para uma orientação. Disseram que sempre votaram no Lula e no PT, mas morriam de medo da ideologia de gênero e da liberação do aborto. “Era o que os impedia de votar no Lula. Eles reconhecem que o governo Lula foi o que mais fez programas sociais, fez mais inclusão social. Mas a barreira deles era moral, era isso que os angustiava”, diz a pastora. “Eu expliquei para eles o que eu penso. Não indiquei nome de ninguém, mas falei que aborto e ideologia de gênero não estão na alçada de um presidente da República. Como que vai passar um negócio com uma bancada evangélica daquele tamanho?” O casal, aliviado, tomou a decisão de votar em Lula.
A pastora acredita que os membros da igreja se incomodam com esses assuntos porque são uma afronta à fé, praticamente o único bem valioso de que eles dispõem. “Eu não sou a favor do aborto. Eu não sou crente progressista”, ela faz questão de dizer. “A gente que tem o conhecimento da Palavra pode ser contra o aborto. Mas existem outras pessoas no mundo. Eu conheço mulheres que fizeram aborto, apesar de nunca ter sido legalizado no Brasil. É igual a droga, não precisa ser legalizado para as pessoas fazerem. Então eu não acho que essa é a forma de resolver.”
De uns tempos para cá, o diálogo com os fiéis tornou-se difícil. “Uma vez um membro [da igreja] falou para mim que não queria comunismo. Aí eu perguntei para ele o que era comunismo. Ele me respondeu que era comer cachorro”, conta. “Isso é potente porque é um discurso fácil. O Bolsonaro trouxe um negócio fácil, que as pessoas conseguem entender rápido e sair falando. E as redes sociais ajudaram a disseminar essas coisas.”
A pastora recentemente recebeu um vídeo, enviado por um fiel, que mostra como age uma “entidade de esquerda”. Na filmagem, o suposto Demônio manifestado numa mulher diz que já fez com que ela perdesse seu salão de beleza. O pastor, com a mão sobre a cabeça da mulher possuída, pergunta se o Demônio é de direita ou de esquerda. O Demônio responde que é de esquerda. O pastor, então, pergunta para onde o Demônio vai andar, e a mulher dá alguns passos para a esquerda. “Isso é armação”, diz a pastora, indignada.
Mesmo tratando dos mesmos termos – satanismo, demônios, perversão – a ofensiva da esquerda não cola. “Essa história de maçonaria e canibalismo até abala fiéis, mas assim que sai uma situação dessas, o Silas Malafaia vai e solta um vídeo gritando e defendendo uma versão própria daquele fato. Não dá tempo para colar”, diz ela, referindo-se ao líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, obstinado aliado de Bolsonaro. “O perigo de ouvir tanta mentira é não saber reconhecer mais a verdade.”
A pastora agora se preocupa com a credibilidade da igreja depois das eleições. O bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal, fez um desafio antes do segundo turno. “Ele disse: ‘Vamos ver quem vai vencer, o Deus da esquerda ou da direita. Vamos saber quem é o Deus Vivo.’ Agora imagina se o Bolsonaro perde? Então o deus da igreja não é Deus? Isso que eles estão fazendo é muito perigoso”, avalia a pastora.[3]
OS SENHORES DE BRANCO
No último domingo antes do segundo turno, a feira na praça central de Seropédica, no km 49, virou palco de manifestações de apoiadores dos dois candidatos. Enquanto moradores da cidade comiam pastel, passeavam com seus filhos e sentavam em cadeiras de plástico para beber cerveja e ouvir pagode, uma Igreja Adventista do Sétimo Dia fazia seu bazar, com as portas abertas. Na frente do templo, dois senhores, vestidos de branco dos pés à cabeça, observavam a movimentação na praça em busca de interlocutores. Eucrésio Pedro Inácio, de 66 anos, e Oracino Cardoso, 87, são divulgadores da Cultura Racional, a mesma que inspirou Tim Maia em um dos álbuns mais aclamados da música brasileira.
Ambos têm a mesma opinião em relação ao segundo turno da eleição presidencial: trata-se de uma disputa de dois campos energéticos. Lula é uma “ferramenta magnética para o sofrimento da humanidade”. A esquerda representa uma “descida para a fase irracional”. A exemplo dos pastores evangélicos, Inácio também usa conceitos e vocabulário próprios de sua crença para embasar o posicionamento político. Lula, segundo ele, estaria com o “mal puro”. Bolsonaro, com “o bem aparente” – por estar “em prol da família, da organização, da justiça, sem ladrões e invasores de fazenda”. “É que agora acabou o tempo dessa parte que comanda o planeta, essa parte magnética. Mas eles não querem perder as ovelhas, né? Querem levar todos para baixo de novo. Se não subirmos, vamos virar animais irracionais”, disse Inácio.
O divulgador da Cultura Racional diz que estas eleições tiveram interferência de diversos grupos que atuam no campo superior. “Temos organizações secretas no mundo todo, ordens mundiais, Illuminati, maçonaria um, maçonaria dois, feitiçarias africanas, um monte de seres que estão por aí”, disse, antes de fazer uma breve pausa. “Olha, foi só eu falar que eles todos já chegaram aqui”, continuou, olhando e apontando para cima. No céu, via-se apenas o Sol naquela manhã quente. “Esses seres estão trabalhando em cima da humanidade, e a humanidade não tem consciência disso. Os seres querem carne, prato cheio e salário forte, como o Lula está prometendo. Isso é coisa da matéria orgânica. O animal quer comer né, está perdido nessa terra, é um boneco.” Para ele, o maior problema do Brasil é o “desenvolvimento da mecânica artificial, que impressiona até uma certa altitude, mas depois destrói”.
Para Inácio, antes de Bolsonaro tudo era “roubalheira e amizade com comunista”. “O Lula diz que se o ladrão roubar não é crime.” Cardoso, o senhor que estava quieto ao seu lado, interveio: “Falaram aí que um cara pode entrar na sua casa e você não tem direito de matar o cara. Quem quer dinheiro, que trabalhe. Esse povo brasileiro é analfabeto e são todos descendentes de analfabetos. Estão todos dopados pelo flúor, que é um veneno que deixa as pessoas dopadas. Todo país comunista é dominado pelo flúor na água. Se eles tomarem o poder, acabou.”
O APOSENTADO
Evangélicos, católicos e exóticos contam apenas parte da história. Não muito longe da praça de Seropédica, o aposentado Jorge Alves, de 70 anos, sentou-se num bar. Vestindo uma regata do Fluminense e bermuda de tactel, ele folheava o jornal Expresso da Informação – um dos mais populares na periferia do Rio, editado pelo Grupo Globo –, cuja edição dominical custa 1,80 real. Alves não tem muita paciência para mexer no celular, mas viu os debates na tevê entre Bolsonaro e Lula, acompanhou a troca de acusações e concluiu que a briga de fake news é a política como ela sempre foi.
“Política é isso, cada um está procurando seus votos. Se eles querem usar religião, é um direito deles”, opina. “Qualquer debate em qualquer governo é isso. Eleição de prefeito é a mesma coisa. Não tem como separar porque o Brasil tem muita religião. Mas para mim não faz diferença nenhuma. Alguém vai querer fechar a igreja? Claro que não, é o mesmo quando Bolsonaro foi eleito e falaram que ele ia matar os gays. É tudo história de política isso aí, sempre vai existir.”
Seu voto foi para Bolsonaro. “Nada sem continuidade vai para a frente. Ele não teve muita coisa para fazer porque a pandemia não deixou. Mas conseguiu segurar até agora, deixa ficar mais quatro anos para ver se faz alguma coisa direito”, disse Alves. Ele conta que poderia da mesma forma votar no outro candidato, como já fez anteriormente, se ele já fosse presidente. “O Lula já teve lá, né? Pra que quer voltar? Tem que ver o que os outros têm de bom também.”
O aposentado é católico, não odeia Lula, não acredita em pactos com o Diabo, não se importa com a questão do aborto e não acha que o fim do mundo está próximo – só pensa que seria melhor continuar o que já está. Para ele, Brasília é um tabuleiro de xadrez tão distante que pouco importa a movimentação das peças.
[1] Ele se refere a Renato Freitas, vereador negro do PT, cujo mandato foi cassado pela Câmara Municipal de Curitiba em agosto. A cassação foi aprovada com 23 votos a favor, 7 contra e 1 abstenção, ainda que o próprio padre da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São Benedito tenha defendido o parlamentar. Disse que a missa estava encerrada quando os manifestantes entraram na igreja e “não profanaram nada, apenas usaram o espaço para seu protesto e foram embora”. Freitas liderava um protesto contra a morte do imigrante congolês Moïse Kabagambe, espancado até a morte no Rio de Janeiro. A cassação está sob análise do Supremo Tribunal Federal.
[2] Entre os dias 19 e 25 de outubro, a campanha de Bolsonaro fez seu investimento mais pesado em propaganda no YouTube, gastando 15,4 milhões de reais. O valor é quatro vezes maior do que a quantia investida pela campanha de Lula no mesmo período.
[3] Em 3 de novembro, quatro dias depois da vitória de Lula, o bispo Edir Macedo gravou um vídeo pedindo aos fiéis que perdoassem o petista. “Não podemos ficar com mágoa porque é isso que o Diabo quer”, disse. Macedo informou que orou pela vitória de Bolsonaro, mas, concluída a apuração dos votos, Lula “supostamente ganhou segundo a vontade de Deus”. Acusado de mudar de posição para aliar-se ao vencedor, o bispo gravou um novo vídeo em que disse que não estava “virando a casaca coisa nenhuma”, que foi mal-entendido e não perdoou Lula, pois não tem “nada contra Lula”.
Leia Mais