“Os cartórios historicamente funcionam como se fossem capitanias hereditárias. A Proclamação da República é de 1889. Foi proclamada por um alagoano, então tem que fazer a república aqui” CREDITO: ROBERTO NEGREIROS_2022
No reino dos interinos
Como (e por que) políticos e desembargadores dominam os cartórios de Alagoas
Thais Bilenky | Edição 186, Março 2022
Numa rua estreita, quase sem movimento, uma fila começou a se formar às dez da manhã de uma quarta-feira de janeiro em frente ao cartório de Barra de São Miguel, uma pequena cidade no litoral de Alagoas. Fazia um calorão de 30ºC e quase todo o município de 8 mil habitantes estava sem energia elétrica. Na véspera, um caminhão batera em dois postes, danificando a fiação elétrica e, desde então, o problema não fora resolvido. Sem eletricidade, a rede de wi-fi tinha caído. “Quando era tudo no papel e no carimbo era mais fácil”, disse Flávia Andrade da Cruz, funcionária do Cartório do Único Ofício de Barra de São Miguel, nostálgica dos tempos pré-internet. Uma velha máquina de escrever enfeitava a bancada ao lado da recepção. As paredes estavam cobertas por dezenas de pastas cinza com documentos. Sobre o balcão, um borrifador de álcool em gel 70%.
Eliane Andrade da Cruz é mãe de Flávia e, desde 1984, é a dona do cartório. Naquela quarta-feira, enquanto Flávia fazia a triagem dos serviços para o pessoal que estava na fila, sua mãe, uma senhora baixinha, de cabelo escuro e curto, óculos de grau e voz potente, entrava e saía do cartório, atarefada, dividindo-se entre ajudar a resolver o problema da energia elétrica e socorrer um cliente que, acamado, precisava de uma procuração. Eliane é conhecida por todos em Barra de São Miguel. Além de dona do cartório da cidade, ela foi vereadora por quatro mandatos. Em 2020, apesar da boa votação, não se elegeu devido ao coeficiente eleitoral, consequência de uma troca recente: ela deixara o PSDB, partido ao qual fora filiada por quase vinte anos e vencera as quatro eleições, para aderir ao PP, a sigla do momento em Alagoas.
“Opção minha”, defendeu-se a ex-vereadora, quase em tom de irritação, ao comentar a troca malfadada. “Estamos numa democracia, a gente vai para onde a gente acha que é melhor.” O melhor, no caso, era aderir ao PP, que vem a ser o partido de Benedito de Lira, um senhor mirrado, de 79 anos, que se tornou uma celebridade local desde que dançou forró ao som do jingle de uma campanha eleitoral em 2010. Ninguém leva Benedito de Lira, o Biu, muito a sério – a não ser pelo fato de que é pai do deputado Arthur Lira, a estrela local do PP, atual presidente da Câmara e dono da batuta que rege o maior tesouro parlamentar da temporada – o orçamento secreto que, na surdina, distribuiu 16 bilhões de reais no país inteiro apenas no ano passado. Dos nove vereadores de Barra de São Miguel, nove são da base de Biu, que, com sua fama de forrozeiro desengonçado, se elegeu prefeito com 54% dos votos.
Movida por uma fartura de recursos, a força dos Lira na região só cresce. No ano passado, Barra de São Miguel, que fica a cerca de 30 km da capital alagoana, recebeu 4 milhões de reais do orçamento secreto – o que equivale a 13% do orçamento anual da cidade. “Nós somos um município pequeno e dependemos totalmente de recursos federais”, diz a vereadora Maria Quitéria dos Santos Paula, do PL, que preside a Câmara Municipal. “A gente vem em busca de angariar o máximo possível pela relação do atual prefeito com o presidente da Câmara dos Deputados”, explica Santos Paula, falando em pé, dentro de um almoxarifado abafado da Câmara que, além da falta de energia elétrica, estava em reformas. A conversa se dava entre uma martelada e outra, enquanto ela fazia uma aposta: Arthur Lira será o deputado federal mais votado em Barra de São Miguel em outubro próximo. (Em 2018, ele ficou em oitavo lugar, com apenas 3,2% dos votos, contra os 25,3% do campeão local, o deputado Sergio Toledo, hoje no PL.)
O balneário – um pequeno paraíso de águas cristalinas, areia clara e coqueiros tortos – passou a ser uma espécie de gabinete extraoficial de Arthur Lira. Em Maceió, comenta-se que, quando o deputado se instala na casa do pai em Barra de São Miguel, há uma romaria de parlamentares, prefeitos e até desembargadores em busca de um dedo de prosa com o poderoso presidente da Câmara dos Deputados. E o prefeito Biu, por sua vez, quando chega a Brasília tem sido muito bem recebido na Esplanada dos Ministérios, o que não é nada mal para um município – nas palavras do próprio Biu – “sem expressão política em Alagoas ou no Brasil”.
Eliane Cruz, a dona do cartório, apesar da derrota em 2020, está decidida a continuar no PP e apoiar Lira em outubro. Faz sentido, e não apenas pelas relações partidárias. Tabeliães como ela, que não foram aprovados em concurso público, precisam de apoios importantes para se manter no posto – apoio dos desembargadores do Tribunal de Justiça, que os indicam para os cargos, e apoio de políticos influentes, que costumam ter ascendência sobre os desembargadores. É uma questão de sobrevivência em que os apoios se entrelaçam e se retroalimentam. Flávia, sua filha, é funcionária da Prefeitura de Barra de São Miguel. Flávio, seu filho, é o número 2 do cartório e, caso a mãe não seja aprovada em concurso público – se um dia houver um concurso público –, ele pode assumir seu lugar.
A conexão entre tabeliães e políticos é uma teia que aparece em todo o país, mas tem relevância especial nas terras de Arthur Lira por uma singularidade nacional: Alagoas é a única unidade da federação que até hoje não realizou um único concurso público para tabeliães. Nos termos da Constituição de 1988, quando o titular de um cartório deixa o cargo – por qualquer razão –, seu substituto precisa ser escolhido por meio de concurso público, a ser realizado em até seis meses. É a forma que os constituintes encontraram para acabar com as sucessões hereditárias que transformaram os cartórios em feudos familiares. Mas em Alagoas, passadas mais de três décadas da nova norma constitucional, quase todos os oficiais de cartórios ainda são indicados pelo Tribunal de Justiça, sem critérios específicos, e com o aval tácito dos políticos locais.
A família Lira deu grande contribuição para tornar Alagoas um caso peculiar. Em 1993, quando era presidente da Assembleia Legislativa, o então deputado estadual Biu de Lira assumiu o governo do estado interinamente por alguns dias – e aproveitou para dar uma canetada. Contrariando o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que os interinos dos cartórios devem ser considerados servidores públicos e, portanto, devem receber remuneração limitada ao teto do funcionalismo, Biu converteu um interino em titular. Com isso, na prática, abriu a brecha para que os demais interinos em Alagoas passassem a ser tratados como titulares efetivos.
Com o butim armado, Alagoas foi dividida em áreas de influência de determinados grupos de políticos e desembargadores, que disputam entre si a expansão de seus territórios, abocanhando votos e cartórios onde for possível. O presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Klever Loureiro, por exemplo, tem um sobrinho à frente do cartório da cidade de Joaquim Gomes, a 75 km de Maceió. A história começou em 1988. Nesse ano, Herber Loureiro, irmão do desembargador, assumiu o cartório. Oito anos depois, ele nomeou Hilton Loureiro Neto, seu filho e sobrinho do desembargador, como número 2 do cartório. Em 2014, quando Herber Loureiro morreu, seu filho assumiu como titular. Deu-se exatamente o que a Constituição proíbe: uma sucessão hereditária porque, até hoje, não se fez o concurso exigido.
Em 2020, um membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão que fiscaliza os cartórios em todo o Brasil, foi destacado para analisar a situação do município de Joaquim Gomes. Concluiu que era um salto duplo twist carpado de nepotismo, que começou entre pai e filho, e se prolongou entre tio e sobrinho. Determinou que Hilton Neto fosse afastado e que o Tribunal de Justiça indicasse um interino até a realização de um concurso público. Ele recorreu contra essa determinação e aguarda uma decisão final do CNJ. No ano passado, o cartório do sobrinho faturou 665 mil reais.
Os políticos brasileiros gostam muito de ser amigos dos titulares de cartórios. Com os serviços que prestam, os tabeliães têm fluxo de caixa constante e são, hoje, os maiores doadores do país, como pessoa física, segundo a Receita Federal. A autarquia federal menciona apenas “doadores”, e não especifica se são doações assistenciais ou eleitorais. Mas, por estarem no topo da categoria, os tabeliães costumam ser tratados como grandes fornecedores dos caixas de campanha. As vantagens das boas relações entre políticos e cartorários, no entanto, podem transcender as contribuições eleitorais. Para políticos inidôneos, o apoio de tabeliães igualmente inidôneos serve para fraudar registros de imóveis, ocultar patrimônio e outros desvios.
Em Alagoas, não é incomum que políticos e tabeliães apareçam fundidos na mesma figura. A família do deputado Sergio Toledo, o recordista de votos em Barra de São Miguel, está à frente do mais lucrativo cartório do estado – desde 1955. Seu pai é dono do 1º Registro de Imóveis e Hipotecas de Maceió, que fatura 1,5 milhão de reais por mês. Seu irmão, o empresário e fazendeiro João Toledo de Albuquerque, é o número 2 do cartório do pai. O próprio deputado responde pelo 3º Registro de Imóveis e Distribuição de Títulos para Protesto da capital, que foi desmembrado da serventia do pai em 1990. Com quase 450 mil reais mensais, tem o quinto maior faturamento do estado. A filha do deputado, Lara, é a número 2 do cartório do 3º Registro.
O imbricamento entre juízes, políticos e oficiais de cartório é notável e está em toda parte. Japaratinga, município do litoral Norte alagoano, é um cluster da família Loureiro, aquela do nepotismo duplo. Bruno Loureiro, um dos filhos do presidente do Tribunal de Justiça, foi prefeito de Japaratinga entre 2005 e 2012. Klever Loureiro Júnior, outro filho do desembargador, também comandou a prefeitura a partir de 2016 – e contou com ajuda financeira na campanha da parte de Hilton Loureiro Neto, o primo que dirige o cartório. Segundo registros da Justiça Eleitoral, foram 8 mil reais.
Em 2019, no fim do seu mandato na prefeitura, Loureiro Júnior decidiu migrar do MDB para – é claro – o PP. Na ocasião, explicou que a mudança se dava “por reconhecimento e gratidão a tudo que o senador Biu de Lira e o deputado federal Arthur Lira fizeram por nossa Japaratinga”. Na campanha à reeleição para a prefeitura, Loureiro Júnior teve apoio de Lira, o deputado. “Conta com o seu amigo aqui em Brasília para que a gente continue abrindo as portas, carreando recursos”, disse Lira, num vídeo de campanha. Apesar de tudo, a jogada não deu certo. Júnior perdeu.
Os Lira e os Loureiro também têm advogados em comum. Klever Loureiro, o presidente do Tribunal de Justiça, já foi defendido em mais de um caso por Fábio Ferrario, que também representa os Lira. Como assessor jurídico nas campanhas eleitorais, Ferrario já recebeu 100 mil reais do deputado Arthur Lira em 2018 e outros 250 mil reais para atender o PP em 2020. Diante dessas ligações, ninguém se surpreendeu quando o veterano jornalista alagoano Ricardo Mota, do jornal Cada Minuto, informou que o favorito para assumir como desembargador na vaga destinada a advogados no Tribunal de Justiça de Alagoas chama-se Fábio Ferrario.
Para a vaga destinada a juízes de carreira, o mais cotado é o juiz Ivan Brito, titular da 16ª Vara Cível, de Maceió. Brito é conhecido por ter inocentado Arthur Lira no processo em que era acusado de enriquecimento ilícito à custa da Assembleia Legislativa, quando era deputado estadual. Lira, nesse caso, foi defendido pelo mesmo Fábio Ferrario. Mais curioso é que, meses depois da sentença de absolvição, a Assembleia aprovou um projeto criando três novas vagas para desembargador do Tribunal de Justiça – e uma delas, agora, está prestes a cair no colo de Brito.
O cartório do 2º Registro de Títulos e Documentos – Pessoa Jurídica e Notas fica no Centro de Maceió, numa rua sem saída, de paralelepípedos. É uma região malcuidada da cidade. Com ar-condicionado no talo, a sala de atendimento aos clientes tem um ambiente só, luz branca, baias impessoais e poucos funcionários, que respondem às perguntas que lhes são dirigidas sem tirar os olhos do computador. O banheiro nos fundos é um muquifo mal ventilado, com tubulações aparentes e artigos de cozinha e de higiene empilhados num canto. O cartório, que fatura em média 130 mil reais por mês, é comandado pelo principal líder da categoria dos tabeliães: Rainey Marinho, justamente o interino que se beneficiou da canetada de Biu de Lira, em 1993.
Conhecido pelo bom trânsito político, Marinho é católico praticante, poeta e autor de livros infantis. Comanda duas entidades: o Instituto de Títulos e Documentos e Pessoa Jurídica do Brasil e a seção alagoana da associação dos notários e registradores. Tem amigos no Judiciário, na Assembleia Legislativa, no governo do estado e, especialmente, no Congresso Nacional, em Brasília. E, dentro do Congresso Nacional, sua relação mais próxima é com Arthur Lira. Tanto que Marinho fez o caminho de Santiago dos alagoanos de poder: filiou-se ao PP.
Com sua ótima lábia, Marinho diz que não tem pretensões eleitorais, mas não apresenta os motivos que o levaram a abandonar o DEM, depois de duas décadas de um casamento harmônico. “Não sou candidato a deputado nem a síndico do prédio”, respondeu à piauí, por meio de mensagem de texto. “Não tive uma intenção objetiva [com a filiação ao PP].” Ele não quis receber a reportagem da revista em Maceió. Disse que estava com Covid. Também não quis se demorar numa conversa telefônica. Disse que tossia muito.
Marinho não gosta de demonstrar proximidade com Lira. No ano passado, depois que se noticiou que ele agradecera Lira “pela confiança” nas suas contas nas redes sociais, Marinho tornou seu perfil privado. Em mensagem à piauí, ele escreveu: “Postei uma foto no dia da entrada na agremiação. E talvez outra, não sei… Somente!!!” Em seguida, comentou: “Conheço o Arthur, mas não tenho intimidade. Acho que a última vez que estive com ele pessoalmente foi na reunião do partido, quando entrei na agremiação. Se não estiver enganado, foi em 2020.” Estava enganado. Ele se filiou ao PP na mesma semana da postagem da foto, em julho de 2021, seis meses depois de Lira assumir o comando da Câmara. “Nunca fui ao gabinete dele”, escreveu, e despistou: “Quando foi a posse na presidência da Câmara?”
Em outubro passado, a ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Maria Thereza de Assis Moura, corregedora do CNJ, foi a Alagoas para inspecionar alguns cartórios. Flagrou irregularidades na prestação de contas de três, inclusive o de Marinho, que, somadas, causaram um prejuízo de 60 milhões de reais aos cofres públicos. Para o CNJ, os três cartórios subfaturaram o número de atos que realizaram para reduzir as taxas devidas ao Poder Judiciário. O cartório de Marinho, por exemplo, declarou ter realizado 235 mil atos em 2014 e, no ano seguinte, apenas 12 mil.
“Isso não é uma conta reta”, reagiu Marinho, ao ser indagado sobre a tremenda variação de produtividade. “Você pode ter mais emissão de certidões e outros atos que são mais baratos. De casa fica difícil de dizer. Mas deve ter sido isso”, resumiu, falando, segundo disse, do quarto onde estava isolado em sua casa. Pediu que a piauí procurasse sua defesa. A princípio, o advogado João Acioli sugeriu que o questionamento fosse feito diretamente ao próprio Marinho, mas, depois, encaminhou uma nota. Disse que a cobrança da corregedoria era indevida e que seu cliente seguira o procedimento previsto pelo Fundo Especial Para o Registro Civil de Alagoas, do Tribunal de Justiça. Disse que submeteu as contas ao órgão, que o aprovou. Eles recorrem da cobrança na Justiça.
Em 2014, depois de 26 anos da promulgação da Constituição, o Tribunal de Justiça de Alagoas lançou o seu primeiro edital de concurso público para cartórios. Naquele mesmo ano, a título de comparação, o estado de São Paulo já fazia seu nono concurso. Alagoas parecia que começaria enfim a regularizar uma situação que já passava de qualquer limite. Mas não seria dessa vez. Uma série de empecilhos e manobras foi adiando o concurso até que, quatro anos depois, em 2018, tentou-se marcar uma data para, finalmente, realizá-lo. Deu-se então uma cena própria do teatro de Eugène Ionesco: os quinze desembargadores do Tribunal de Justiça – todos eles – se declararam impedidos ou suspeitos para presidir a comissão do concurso.
Cada um a seu modo, eles foram alegando que, entre os candidatos a ocupar um cartório, havia parentes ou subordinados. Para resolver o impasse, o CNJ escalou o desembargador Marcelo Berthe, de São Paulo, que tem vasta experiência na área e excelente reputação. A missão de Berthe seria presidir a comissão. Assim, em 2019, finalmente os exames foram aplicados. A prova de remoção, destinada aos oficiais de cartório de outros estados que quisessem ser transferidos para Alagoas, ocorreu no sábado, 7 de dezembro. A outra prova, a de provimento, destinada aos novatos que quisessem entrar no mundo dos cartórios, aconteceu no dia seguinte. Tudo parecia caminhar bem quando, no final da tarde, o espírito de Ionesco reapareceu. A prova de domingo, para os novatos, havia sido anulada.
A explicação: por um erro do sistema, a prova de sábado foi exatamente igual à de domingo. Em geral, as duas provas – a de remoção e a de provimento – são aplicadas com uma semana de intervalo. Naquele dezembro, no entanto, os organizadores resolveram aplicar as duas provas no mesmo fim de semana para evitar gastos adicionais com viagem, já que os membros da comissão eram de São Paulo. Mas o sistema da Vunesp, a fundação pública que realiza concursos em São Paulo e estava encarregada das provas em Alagoas, não reconheceu a mudança e aplicou a mesma prova nos dois dias. “Foi um erro absolutamente técnico, um erro de sistema”, diz enfaticamente, Marcelo Berthe.
Há quem desconfie, não de Berthe, mas de uma mão peluda. “A prova foi sabotada, não foi erro”, afirma Igor Rosa, que preside uma entidade cuja missão pode causar alguma perplexidade, mas, diante do exemplo de Alagoas, percebe-se que faz sentido: é a Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartório (Andecc). “A banca é respeitadíssima, experiente, faz todos os concursos em São Paulo”, diz Rosa. “Pelo histórico em Alagoas, no mínimo é de se estranhar que tenha sido apenas um erro, que um estagiário tenha trocado o envelope. Isso tinha que ser investigado.”
Marcelo Berthe reagendou a realização das provas para o dia 20 de março de 2020. Uma semana antes, numa sexta-feira, ele viajou a Maceió para inspecionar os prédios onde os exames seriam aplicados. No dia seguinte, sábado à noite, retornou para São Paulo e o aeroporto estava deserto. A pandemia de Covid tinha acabado de aterrissar no Brasil, inúmeros voos foram cancelados – e, até hoje, com os avanços e recuos do vírus, o CNJ não conseguiu restabelecer a agenda de concursos no país. Berthe não desistiu da missão de preencher o cargo de titulares de mais de duzentos cartórios de Alagoas. Está à espera de uma boa hora para fazer o concurso. “Eu nunca comecei uma coisa e não acabei. Não vai ser essa que não vai acabar”, diz, com um sorriso discreto.
Quando foi indicado por um desembargador para assumir o 4º Ofício de Notas e Registro de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas de Maceió, Lucas Pituba entendeu aonde chegava: “É o ápice da minha carreira profissional.” Pediu exoneração como assessor jurídico do desembargador e virou oficial de cartório. Assumiu em 2019. Na inspeção de outubro passado, realizada pelo CNJ, a corregedora Maria Thereza de Assis Moura considerou que desembargadores não podem nomear subordinados – e determinou que Pituba fosse substituído. Ele não arredou pé. Em dezembro, faturou 130 mil reais. Até hoje, na porta do cartório, na avenida à beira-mar, uma placa estampa o nome do titular em letras vistosas: “Lucas Barros Pituba de Carvalho.”
Em janeiro, ele recebeu a piauí para uma entrevista em seu gabinete, nos fundos do cartório. “Repare bem”, começou. “Só tem dois RTDPJ em Alagoas”, disse, referindo-se à sigla que identifica seu tipo de cartório. Um é o dele, o outro é de Rainey Marinho, o líder dos tabeliães. Como a regra permite que um interino afastado seja substituído por um cartorário da cidade, desde que responda por um ofício da mesma natureza, Pituba aproveita para provocar: “A ministra condenou Rainey a devolver quase 10 milhões de reais”, lembrou ele e, em seguida, simulou que argumentava diretamente com a corregedora do CNJ: “A senhora vai botar ele aqui, no meu cartório?” A exemplo de Marinho, Pituba também recorre contra a determinação do CNJ. Com seu linguajar direto, ele descreve como as coisas funcionam para manter os interinos onde estão: “Imagine só uma decisão mandando o Rainey sair. Aí, ele recorre dessa decisão no CNJ. O CNJ tem conselheiro representante da Câmara dos Deputados, um amigo do Lira. Tem representante de senador, um amigo do Renan [Calheiros]. Então você vai costurando.”
A própria precariedade do interino – que, ao contrário do tabelião concursado, não tem estabilidade – estimula os conchavos. “A continuidade do interino no cargo em grande medida depende dos apoios que ele tenha. Por isso, é suscetível a vínculos políticos com lideranças ou chefes locais ou estaduais, é da natureza”, diz o desembargador Tutmés Airan, que presidiu o Tribunal de Justiça alagoano entre 2019 e 2020. No seu gabinete, Airan não pendurou o retrato oficial do presidente da República, como é comum nas repartições públicas. A foto é de Airan ao lado do ex-presidente Lula. É a sua forma de mostrar que não esconde suas preferências político-ideológicas. “Os cartórios historicamente funcionam como se fossem capitanias hereditárias. Precisa acabar com isso. Está mais do que na hora. A Proclamação da República é de 1889. Lá se vai mais de século. Interessante que a República foi proclamada por um alagoano, então tem que fazer a República aqui”, prosseguiu. “O concurso é talvez a experiência republicana mais marcante do cotidiano. Se passo num concurso, concurso sério, não devo favor a quem quer que seja a não ser à minha própria inteligência.”
Airan não especificou que tipo de influência os políticos exercem sobre chefes de cartórios. A Receita Federal, mais uma vez, dá algumas pistas. O relatório sobre o Imposto de Renda de 2020 informa que titulares de cartórios são recordistas em dois itens: são os que mais abatem despesas de seu faturamento no Imposto de Renda – em média, mais de 50%, o dobro dos dentistas, que aparecem em segundo lugar – e, mesmo com abatimento tão alto, conseguem ser a categoria que mais ganha no país, quando se considera a pessoa física. É muito mais do que procuradores e promotores, que estão em segundo lugar. São dois privilégios que os parlamentares nunca se empenharam em eliminar.
No final do ano passado, interinos de cartórios – de Alagoas, mas também de outros estados – corriam pelos corredores da Câmara. Passavam nos gabinetes, conversavam com assessores parlamentares, entregavam folhetos. Arthur Lira sinalizara que poderia colocar em votação uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que faz parte dos sonhos dos 7 mil interinos do país inteiro – anistia total. Ou seja: a proposta prevê que todos eles, mesmo sem concurso, passam a ser titulares legítimos dos cartórios.
Tramitando há mais de quinze anos, a PEC foi aprovada em primeiro turno em 2015 e não avançou mais desde então. Vira e mexe, ela volta a assombrar quem batalha por concurso público sempre que surge algum sinal de que será votada em plenário. Na prática, suspeita-se de que a PEC seja usada como pressão dos deputados sobre os interinos. Às vésperas de uma eleição, os parlamentares fazem de conta que vão votar, arrancam boas doações financeiras dos interinos mediante a promessa de aprovar a proposta e depois a colocam de volta dentro da gaveta, até a próxima eleição. Lira seguiu a bula: um ano antes da eleição de 2022, deu sinais de que votaria, fez declarações reservadas a favor do texto e gerou esperança à legião de interinos – dizia-se que, dessa vez passaria, porque o presidente da Casa é de Alagoas, a meca dos interinos. Virou o ano, e nada.
Não foi a única cenoura que Lira acenou para a categoria. Em agosto do ano passado, ele instalou um grupo de trabalho para discutir a legislação dos cartórios. Houve diversas audiências públicas. Marcelo Berthe participou e colocou o dedo na ferida: “Precisa ser corajoso aqui para dizer que os tribunais de Justiça, que acabam ficando com o excedente da renda dos cartórios, também resistem a promover os concursos.” Outro convidado foi o desembargador José Renato Nalini, ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Seu filho é o número 2 de um cartório na Rua Augusta, em São Paulo. Faturou uma média de 7 milhões de reais por mês em 2021.
Igor Rosa, o presidente da associação que defende os concursos, sempre aciona os concursados Brasil afora para pedir que deputados e senadores votem contra a PEC da anistia. “Não cabem mais apadrinhamento, trem da alegria”, diz ele. Os parlamentares tendem a aceitar seus argumentos. “Eles voltam atrás porque pega mal aprovar uma coisa desse tipo.” A bancada federal de Alagoas, porém, é um bastião contra o concurso público e não é de hoje. O deputado-tabelião Sergio Toledo, ele mesmo, perderia o cartório que recebeu do pai.
O próprio Arthur Lira, ao relatar um projeto de 2015, decidiu que, na prática, os desembargadores e titulares de cartórios deveriam poder definir, entre eles mesmos, como repartir o dinheiro faturado pelos cartórios. Quem se opunha à proposta dizia que seria a farra dos cartórios. “Se prevalecesse [o texto de Lira], os cartórios voltariam a ser como eram antigamente, um serviço péssimo, com mau atendimento. Não teriam a responsabilidade que têm hoje. Seria um absurdo”, diz o deputado Rogério Peninha (MDB-SC), ao frisar que votou “totalmente contrário e votaria mais mil vezes”. O relatório caiu.
No final de fevereiro, o CNJ começou a julgar os recursos em um processo iniciado em 2019. Neste caso, que não tem relação com a investigação realizada pela ministra Maria Thereza de Assis Moura em outubro passado, Rainey Marinho, o deputado Sergio Toledo e mais cinco interinos reivindicam a titularidade dos cartórios onde trabalham. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), adversário político de Arthur Lira, se empenhou para beneficiar o deputado Toledo, seu aliado. Chegou a visitar o ministro Luiz Fux, que preside o CNJ. A sessão em que os recursos foram analisados já tinha cinco votos contra os interinos, quando acabou interrompida. Falta ainda um voto para formar maioria. É pouco, mas ninguém está cantando vitória e garantindo que os interinos vão perder os cartórios. Quando se trata de cartorários, políticos e desembargadores em Alagoas, nada parece impossível.
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