Mari Ferrer, em imagem de sua rede social: hoje, ela se trata para depressão, síndrome do pânico, estresse pós-traumático e ansiedade CRÉDITO: REPRODUÇÃO DE REDE SOCIAL
A noite que nunca terminou
O calvário do caso Mari Ferrer
João Batista Jr. | Edição 182, Novembro 2021
Quando o Land Rover preto estacionou na sede do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho aguardou seu motorista abrir a porta traseira, colocou o pé para fora do carro e pisou firme no chão – usava um sapato preto, com o monograma LV em prata, e não vestia meias. Em passos decididos, saiu carregando sua pasta de couro marrom, também da Louis Vuitton, e caminhou em direção à porta de vidro do tribunal. De gravata de seda azul-bebê, da mesma grife francesa, e Rolex de ouro no pulso, parou diante do engraxate, postado na entrada principal. O engraxate lustrou-lhe os sapatos até que reluzissem. Gastão então cruzou a porta de vidro e entrou na corte convicto de que aquele 7 de outubro de 2021 seria o grande dia de sua carreira de quase três décadas.
Pouco mais de quatro horas depois, era um homem triunfante. Por três votos a zero, seu cliente, André de Camargo Aranha, de 45 anos, estava absolvido da acusação de estupro de vulnerável contra a jovem Mariana Borges Ferreira, de 24 anos, que o país conhece como Mari Ferrer desde que seu rosto encharcado de lágrimas apareceu num vídeo divulgado pelo site The Intercept. Nas imagens, feitas durante o julgamento do caso ainda em primeira instância, Ferrer recebe um tratamento tão humilhante da parte de Gastão que, a certa altura, em prantos, ela se dirige ao juiz “implorando por respeito”, “pelo amor de Deus, gente! Que que é isso?”.
Passado um ano da divulgação dessa cena, que causou comoção e levou centenas de pessoas à Avenida Paulista com faixas denunciando o machismo da Justiça, Gastão, um catarinense de 51 anos, alcançara uma vitória que considerou tão brilhante quanto seus sapatos. Depois de ouvir a defesa e a acusação, o desembargador Ariovaldo da Silva leu as 48 páginas de sua decisão. Absolveu André Aranha por “falta de provas”. A decisão do desembargador referendava a sentença de absolvição prolatada na primeira instância no ano passado. Os outros dois desembargadores, Ana Lia Carneiro e Paulo Sartorato, seguiram o voto do relator. Por unanimidade, André de Camargo Aranha, um empresário do ramo esportivo que negocia passes de jogadores de futebol, estava livre da pena de 8 a 15 anos de reclusão pelo crime de estupro de vulnerável.
Gastão deixou o Tribunal de Justiça às 13h27 daquela quinta-feira. Seus olhos estavam levemente marejados. Seu motorista abriu a porta do Land Rover, Gastão acomodou-se no banco traseiro e dirigiu-se para seu escritório, no segundo andar de um edifício comercial, no Centro de Florianópolis. Ali, trancou-se numa sala, onde conversou por telefone com Aranha, que aguardara a sentença ao lado de amigos, em sua casa, em São Paulo, depois de passar parte da manhã em orações numa igreja das redondezas. Encerrada a conversa no escritório com seu cliente, Gastão reservou o dia para saborear seu triunfo. Recebeu múltiplos cumprimentos. Em ligação com sua filha, a adolescente Maria Vitória, festejou: “Acabou, filha. O papai venceu.”
No dia 15 de dezembro de 2018, a mineira Mari Ferrer, então com 21 anos, vestiu-se de branco da cabeça aos pés para mais um dia de trabalho no Café de La Musique, um restaurante com balada, na Praia de Jurerê Internacional, ao Norte da Ilha de Florianópolis. Havia algumas semanas, Ferrer fora procurada por Jéssica Weiss Raulino Ramos, coordenadora de divulgação do clube e responsável pela seleção das embaixadoras, nome dado às jovens que têm a missão de ver, ser vistas e, acima de tudo, postar fotos do local nas redes sociais. Modelo com quase 100 mil seguidores no Instagram, Ferrer foi contratada por 150 reais por evento, com direito a consumação de 200 reais. Naquele dia de verão, o Café faria a festa Sunset, para a qual as quinze embaixadoras foram orientadas a vestir branco e caprichar no visual.
Ferrer chegou no Café às 15h30, acompanhada de uma vizinha, a arquiteta Vanessa Caparica Souto. Pouco depois, encontrou ali o promotor de eventos Sidiney Macedo, seu amigo de balada, e outras três modelos e embaixadoras – Sabrina Camargo, Alizandra Camargo (sem parentesco entre as duas) e Fernanda Gonçalves de Souza. Naquela hora avançada, resolveram almoçar. Ferrer quis estender seu direito ao almoço de graça para o promoter Sidiney Macedo, mas foi alertada de que as normas da casa limitavam a cortesia às mulheres. Quando percebeu que o promoter dividia a comida com Ferrer, Jéssica Ramos foi até a mesa e repreendeu-a. Sidiney Macedo, então, concordou em pagar por seu almoço. Por causa desse contratempo, soube-se depois, Ferrer seria demitida.
No almoço, Ferrer se recorda de ter pedido uma água sem gás e, pouco afeita ao consumo de álcool, bebeu muito lentamente um drinque de gim com energético. Em torno das 19h30, a embaixadora Sabrina Camargo chamou Ferrer para fazer fotos num camarote frequentado por sócios e amigos dos sócios do Café. É o Bangalô 403, um espaço exclusivo, localizado entre a cabine do DJ e a praia. Ferrer aceitou – e apagou. Desse momento em diante, ela não se lembra de mais nada. Sua memória sumiu.
Nas 2 245 páginas do inquérito, os depoentes dizem que, no Bangalô 403, tudo transcorreu com normalidade. Ferrer ficou boa parte do tempo com uma taça de gim nas mãos, usou o celular ocasionalmente, conversou com os presentes. Vanessa Souto, a vizinha arquiteta, fora embora mais cedo, pois tinha outro compromisso. As demais amigas, ouvidas pela polícia, contaram que não perceberam nada de estranho com Ferrer, nem a viram com nenhum homem. Sabrina Camargo, em seu primeiro depoimento, chegou a dizer que Ferrer estava embriagada, mas, na segunda vez que depôs, voltou atrás.
Às 22h25, uma câmera do sistema de segurança do Café captou uma imagem de Ferrer, já fora do Bangalô 403. Ela aparece subindo uma escada que dá acesso ao camarim, um local destinado apenas aos artistas que se apresentam no Café e aos amigos mais próximos da casa. A imagem mostra Ferrer subindo de mãos dadas com André Aranha. Seis minutos depois, às 22h31min26s, Ferrer desce a escada, agora sozinha, apoiando-se suavemente no corrimão. Em seguida, dezenove segundos depois, às 22h31min47, Aranha desce a mesma escada.
Ferrer também não tem lembrança do que aconteceu depois disso, mas o registro de suas mensagens por WhatsApp mostra que, ao descer, ela não encontrou mais ninguém do seu grupo de amigos no Café, que, a essa altura, já se preparava para encerrar o expediente. Das 22h33 em diante, ela ligou seis vezes para o amigo Sidiney Macedo e lhe enviou mensagens crivadas de erros de digitação. Uma delas: “Amigonts; Ta aomfe; Me sjuds; Cd bv; Cvd vccccc.” Outra: “Porbfavor; Eu não sei q q qta acomtecendod; Me fira daqui.” Macedo não respondeu. Ela também tentou falar com a amiga Vanessa Souto, que tampouco atendeu o telefone. Mandou mensagem para Sabrina Camargo: “Amiga; Cade vc; Amiga to no cafw.” Camargo responde: “Hahahaha; Indo pro 300.” Era uma menção ao 300 Cosmo Club, outro beach club, a uns 800 metros do Café de la Musique. Ferrer, então, fez um pedido: “Pelon amoende eus; Me espera; Eu n quero esse boy; […] Eu Wu n sei q q qta contevendod.”
Em seu depoimento, Camargo não foi indagada se ficou espantada com a escrita embaralhada nem se suspeitou que a amiga estivesse em apuros. Nas imagens captadas pelas câmeras da segurança pública, Ferrer aparece caminhando até o 300 Cosmo Club. Está de salto alto e aparenta andar com desenvoltura sobre a calçada de pedras portuguesas. Ao chegar no 300, ela não encontra ninguém. Às 23h15, Sidiney Macedo finalmente responde a mensagem que recebera: “Eiii, não podemos sair agora; Ta chegando a comida amor.” Ferrer, que ficou cerca de vinte minutos sozinha no 300, dispara algumas mensagens:
Vlw ro undo embora
To aqui sozinha
Sidiney pergunta onde estão as amigas, Ferrer diz que não encontrou ninguém:
Seila to sozinha
Pedi um uber
Ro inso embora
To mto chateada
Eu to sozinhaa
Nem sei xomo eu cim
Mais uma vez, ela responde que está sozinha:
Seila
Bwm sei
Cqde vc???
To bq porta
To mto trostw
Por fim, Ferrer faz um desabafo:
Vcs me largaram
Apenas
Eu jamais fqria isso
C minhqs amigas
Em nenhuma mekonwnto
Lqrguei vcs
to mto chatwda
Eu bem Sej q q eu to fqzebdo
Em outras mensagens, volta a desabafar:
Eu to Eozinha cara
Sem ning
Bem sei q q to fazendo
[…]
Lembrarei disso
Eu já pedi uber tosiznha
Szoinhas
Nem sei q q ta acontecemdo
Eu ro chorando
Nuncq psseo por isso
No dia 10 de janeiro de 2019, quase um mês depois daquela noite, Sabrina Camargo prestou depoimento à polícia e contou que todos estavam indo para o 300, mas mudaram os planos no meio do caminho e acabaram jantando no Shack, um restaurante nas proximidades do Café de la Musique e do próprio 300. À mesa, além dela e de Sidiney Macedo, estavam o próprio André Aranha e seus amigos, entre eles o empresário Roberto Marinho Neto, herdeiro da Globo, a modelo Nicole Feuser e o empresário Roger Rodrigues, sócio do Café de la Musique, entre outras pessoas. Convocados para depor, os convivas disseram que o jantar correu sem qualquer contratempo.
Sem saber onde os amigos estavam, Ferrer pediu um Uber para voltar para casa. Esperou por quase nove minutos, de pé, na frente do 300, até a chegada do motorista Waltton Souza Rabbib. Em seu depoimento à polícia, o motorista contou que, ao entrar em seu carro, Ferrer estava maquiada, com a roupa intacta e não parecia ter consumido bebida alcoólica, mas, ao mesmo tempo, afirmou que “aparentava estar sob efeito de alguma substância entorpecente, não sendo somente uma embriaguez”. A descrição do motorista acabou servindo tanto para a defesa de Ferrer (que alegou que ela foi estuprada enquanto estava vulnerável) quanto para a acusação (que sustentou que ela estava em perfeito “estado físico”).
Durante o percurso, o celular de Ferrer registrou suas reiteradas tentativas de falar com sua mãe, Luciane Borges, uma dona de casa que até então vendia na internet bijuterias que ela própria confeccionava. A mãe estava em outra ligação e, como o nome da filha não apareceu no identificador de chamadas, ela não se preocupou em atender. Mas, diante da insistência, encerrou a conversa com a amiga e retornou. Ferrer chorava copiosamente. Disse que estava decepcionada, que não tinha amigas, que não podia confiar nas pessoas e falou insistentemente que queria seu pai, Eusébio Ferreira da Silva, que vive em São Paulo. A mãe e o motorista, em seus depoimentos, fizeram descrição muito semelhante da conversa.
Mãe e filha conversaram no telefone até o carro chegar ao destino, no bairro de Cachoeira do Bom Jesus, no Norte da Ilha de Florianópolis. Ferrer não tinha os 48,45 reais do valor da corrida. Sua irmã caçula, então com 13 anos, pegou o dinheiro que tinha em casa e conseguiu reunir 47 reais. Finalmente em casa, Ferrer encerrava um dia difícil – e começava a trilhar um calvário que dura até hoje.
Luciane Borges tem 56 anos e é separada do pai de Ferrer. É profundamente evangélica, fiel seguidora do Velho Testamento. Sabia que sua filha prezava certos valores morais, entre os quais aguardar a hora mais apropriada para a sua primeira relação sexual. Assim que Ferrer entrou em casa naquela noite, Luciane desconfiou de que algo estava errado, pois sua filha parecia alterada, embora não tivesse o hábito de beber. Ajudou-a a despir-se para tomar banho e notou que as roupas – a calcinha, o body e o vestido – estavam molhadas, com vestígios de sangue e exalando forte odor de esperma.
Perguntou à filha o que acontecera, mas Ferrer não conseguia responder e não tinha nem forças para ficar de pé. Alarmada, Luciane intuiu que precisava preservar as roupas e colocou a calcinha e o body dentro de um saco plástico, mas não incluiu o vestido de renda. Ligou para o serviço de emergência, o Samu, e pediu socorro. Explicou que a filha não se sentia bem e parecia embriagada. O Samu informou que tinha prioridades mais urgentes e não mandou nenhuma ambulância.
Naquela mesma noite, Luciane começou a investigar o que havia se passado nas últimas horas. Entrou no WhatsApp da filha para checar com quem ela havia trocado mensagens. Já passava da meia-noite quando ligou para Jéssica Ramos, a coordenadora de divulgação do Café de la Musique. Nessa ligação, pela primeira vez, a mãe deixou claro do que estava suspeitando: “Minha filha está desfigurada e foi abusada dentro do Café de la Musique”, disse, completando com um pedido: “Quero as imagens.” Em seu depoimento, Jéssica Ramos disse: “Eu não entendi nada.” E contou: “Ela só falava que a filha dela foi abusada, foi drogada. Que nós, embaixadoras, éramos meretrizes.”
Na manhã do dia seguinte, às 11h07, mãe e filha registraram um boletim de ocorrência numa delegacia perto de onde moravam. O documento faz um resumo sumário, sem apontar nomes: “Conta que estava trabalhando como embaixadora naquele estabelecimento comercial, e foi chamada por uma amiga para fazer fotos em um dos bangalôs, e lá bebeu um pouco de vinha [sic] e após isso sentiu-se diferente, não se lembra do que aconteceu por um espaço de tempo. Depois saiu de um local diferente, desceu correndo daquele local, saiu e foi até o estabelecimento 300 procurar seus amigos, mas não os encontrou. Tentou de diversas formas procurar seus amigos através do celular, mas também não conseguiu, então pegou um Uber e foi para a casa. Em casa, continuou a sentir-se muito mal e sua mãe a ajudou. Suspeita que foi drogada e abusada sexualmente, mas não se lembra de nada. Suas roupas íntimas que estava usando estão sujas de sangue, com um odor forte, e a comunicante é virgem.”
Registrado o boletim, Ferrer foi encaminhada ao Instituto Médico Legal (IML) para fazer exame de corpo de delito e entregou aos peritos a calcinha e o body que usava na ocasião – mas não o vestido de renda. Também se submeteu ali a um swab vaginal para a coleta de material genético. Cumprida essa etapa, foi ao Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago para colher três tubos de sangue e três de urina para exame toxicológico e de álcool. (Às 17 horas, Ferrer voltou a colher a urina porque a primeira coleta deu-se sem a presença da polícia.) Saiu dali tomando medicamentos retrovirais pelos trinta dias seguintes, conforme o protocolo para evitar a contaminação por HIV em vítimas de violência sexual.
Em seguida, o caso deixou a delegacia em que foi registrado. Por se tratar de uma investigação de violência sexual contra a mulher, foi transferido para a Delegacia de Proteção a Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI). Ali, Ferrer voltou a dar sua versão dos acontecimentos dizendo “que por volta das 18h50 consumiu um sorvete e uma bebida alcoólica (gim); que demorou muito tempo para consumir a bebida, pois não é de beber; que pediu apenas um drink; que foi chamada por Sabrina Camargo para ir com ela até um dos bangalôs para fazerem uma foto; que se recorda de Sabrina Camargo ter dito que um dos filhos do dono da Rede Globo estava no local e que ele estava próximo (…) Que ainda sente-se um pouco ‘lesada’, demorando bastante para recobrar seus sentidos; que tenta lembrar do que aconteceu no dia 15/12/2018, mas não consegue”.
De novo, Ferrer narra os fatos sem apontar nenhum culpado.
Sua mãe, no entanto, começa a se incomodar com o que julga ser estranho. Na mesma época, em meados de janeiro, ela presta um depoimento dizendo estranhar o silêncio dos amigos quando a filha lhes enviou mensagens naquela noite. Diz que sua filha foi “puxada” pela amiga Sabrina Camargo para fazer fotos no bangalô 403, um local ao qual apenas gente “bambambã” tem acesso. Diz estranhar que o IML estivesse postergando o resultado dos exames por falta de insumos e estranhar que o primeiro delegado do caso, André Moretzsohn Portella da Costa, tenha ido à sua casa para ouvir Ferrer. Entendeu o gesto como uma “intimidação”. O delegado diz que recebeu telefonema da mãe, reclamando que o caso não andava, e pediu autorização na delegacia para ir à casa e tentar colher mais detalhes.
Luciane começa a desconfiar de um complô.
André de Camargo Aranha estava em São Paulo, onde mora, quando recebeu a notícia de que o boletim de ocorrência fora registado em Florianópolis. Como sabia que subira ao camarim na companhia de Ferrer, pressentiu que a política chegaria a ele. Para fazer boa figura, pediu ao seu advogado, Gustavo Francez, que viajasse a Florianópolis para dizer que estava à disposição da polícia. Ao longo da instrução criminal, quando os depoimentos são colhidos, o nome de Aranha não demorou a aparecer. Roger Rodrigues, sócio do Café e amigo de Aranha, ao ser confrontado com as imagens da escada do camarim, identificou que o rapaz que acompanhava Ferrer era André Aranha.
Passados quase quatro meses, Ferrer e sua mãe estavam inquietas com a lentidão das investigações. Das imagens das câmeras do Café, restaram apenas aqueles parcos quarenta segundos em que Ferrer e Aranha sobem e descem a escada do camarim. E havia 37 câmeras no Café. O promotor Alexandre Piazza começou a suspeitar de que o Café estivesse ocultando imagens para beneficiar Aranha, amigo dos donos do lugar. O advogado do Café, Leonardo Pereima, diz que a polícia esteve no local dois dias depois do episódio, ficou quatro horas e levou o HD para copiar todas as imagens. Devolveu o HD dez dias depois.
Supondo que as imagens tivessem sido todas copiadas, o Café não as preservou, nem recebeu pedido da polícia para fazê-lo. A polícia, por sua vez, não explica por que inseriu no inquérito apenas quarenta segundos de imagens. Um investigador, convocado para testemunhar no julgamento, disse que “por volta de oito, nove da noite, não dá para ver nada, fica tudo preto”. O fato é que um episódio que durou pelo menos três horas, das 19h30 às 22h30, resultou em apenas quarenta segundos de imagens – que, ainda assim, não são contínuas. São três cenas separadas. Uma dos dois subindo juntos para o camarim, outra de Ferrer descendo e uma terceira em que Aranha desce as escadas. As imagens trazem o horário em que ocorreram.
Incomodada com a aparente paralisia do caso, Ferrer resolveu falar do assunto publicamente pela primeira vez. No dia 20 de maio, usando seu perfil no Instagram, fez um desabafo. “Não irei me calar mais. Esse sigilo que está protegendo apenas o estuprador acaba agora”, começou o texto dirigido aos seus quase 100 mil seguidores. “Não é nada fácil ter que vir aqui relatar isso. Minha virgindade foi roubada de mim junto com meus sonhos. Fui dopada e estuprada por um estranho em um beach club dito seguro e bem conceituado da cidade. […] Sempre tive boa índole e postura, e isso ninguém tira de mim. ninguém tira de mim. A verdade é única. Estou horrorizada com a justiça de Florianópolis e em como eles se empenham em encobrir crimes e passar uma falsa imagem da cidade.” A essa altura, sem trabalho e renda, Ferrer e a mãe atrasaram o aluguel, foram despejadas e fazia pouco que haviam retornado para Uberaba, em Minas Gerais.
Três dias depois do desabafo de Ferrer, Aranha prestou seu primeiro depoimento, numa sessão presencial, em Florianópolis. Admitiu apenas o óbvio. Confirmou que era ele mesmo nas imagens do Café, mas disse que subira as escadas com Ferrer apenas para ir ao banheiro do camarim. Afirmou que, lá dentro, não aconteceu nada entre eles. Nenhuma relação de cunho sexual. Nenhum “ato libidinoso”, como consta nos autos. Ocorre que o exame de corpo de delito já tinha trazido novidades consistentes. O laudo constatara presença de material genético na calcinha de Ferrer. Era uma primeira prova de que houve, sim, um “ato libidinoso”, só não se sabia com quem. O laudo não mencionara nada sobre o sangue nas roupas, mas também comprovara que Ferrer era mesmo virgem. Seu hímen fora rompido recentemente – entre 24 e 48 horas antes do exame –, embora não houvesse presença de esperma na vagina. A “lesão himenal” era, por si só, outra prova de “ato libidinoso”.
Desconfiadas de que Aranha escondia alguma coisa, as delegadas Caroline Monavique e Eliane Chaves perguntaram se ele se disporia a fazer um teste de DNA para comparar com o material genético encontrado na calcinha. Aranha disse que faria o exame voluntariamente, dispensando ordem judicial. Ao final do depoimento, as delegadas pediram então que se dirigisse ao Instituto Geral de Perícias (IGP) para colher o material. Nesse momento, o advogado intercedeu. Afirmou que seu cliente não faria o exame. Disse que era desnecessário, pois o laudo não encontrara esperma na vagina de Ferrer, e, além disso, Aranha não queria que suas informações genéticas ficassem armazenadas num banco de dados da polícia.
Despediram-se, mas não sabiam que Aranha caíra numa armadilha – bebera o copo d’água que as delegadas lhe ofereceram de caso pensado. Acionados, técnicos do IGP correram à delegacia para colher o material assim que Aranha e seu advogado foram embora. Com a saliva deixada no copo, fez-se o exame cujo resultado saiu no dia 11 de junho: o material genético na calcinha de Ferrer – no caso, o líquido prostático que antecede à saída do esperma – pertencia a Aranha. O caso estava praticamente resolvido. Aranha mentira em seu depoimento ao dizer que não houve “nada” no camarim. Mais tarde, seu advogado disse que ele mentiu porque tinha certeza de que seria preso na hora como estuprador se admitis-se qualquer relação com Ferrer. E completou: “Você sabe o que acontece com estupradores na prisão.”
Quando Ferrer reclamou da lentidão das investigações no Instagram, as delegadas convocaram uma entrevista coletiva na sede da Polícia Civil. Explicaram que a demora decorrera da falta de insumos – “importados e caros” – para concluir os laudos periciais. Desde novembro de 2018, o Instituto Geral de Perícias vinha enfrentando uma escassez, mas mantinha os exames por ordem de chegada, sem priorizar nenhum caso. As delegadas, porém, não deram publicidade ao fato de que os exames toxicológico e de álcool foram finalmente concluídos quase dois meses antes, no dia 3 de abril. E o resultado não respaldava a versão de Ferrer: dizia não ter encontrado no sangue e na urina a presença de álcool, nem de alguma substância que pudesse justificar um apagão de memória. Podia ser um indício de que Ferrer não estava vulnerável no momento em que subiu ao camarim.
Além do álcool, os testes deram negativo para diversas drogas, entre elas anfetaminas, antidepressivos, opiáceo, barbitúricos, benzodiazepínicos, buprenorfina, canabinoide, cocaína, fenciclidina, fentanil, meprobamato, metadona, metanfetamina, opioides genéricos, oxicodona, tricíclicos, tramadol e zolpidem. A ausência de álcool se devia ao fato de que Ferrer bebera, comprovadamente, havia mais de 18 horas antes do exame, tempo suficiente para desaparecer do seu organismo, mas a delegada Monavique estava intrigada com o resultado das demais substâncias. Então, pediu explicações ao IGP dez dias depois. Em um ofício, perguntou se era possível que houvesse a presença de alguma outra substância, não pesquisada pelo IGP, que fosse “capaz de causar lacunas de memória e alterações sensoriais”.
A resposta chegou no dia 30 de abril. Explicava que a demora não afetara o resultado, já que o material fora armazenado de forma correta, e informava que a hipótese da delegada Monavique fazia algum sentido. “É provável que existam substâncias que causam estas alterações de percepção, além das pesquisadas rotineiramente por este instituto”, dizia o ofício. Acrescentava que o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNOCD) estima que “surja uma nova droga sintética por semana no mundo, o que dificulta a pesquisa de todas elas”, mas ressaltava que “na absoluta maioria dos casos semelhantes a este, as substâncias utilizadas constam das rotineiramente pesquisadas por este instituto”. Com essa explicação, a defesa de Aranha passou a dizer que o laudo era “negativo”, enquanto a acusação passou a dizer que era “inconclusivo”.
A essa altura, os investigadores já tinham certeza de que acontecera um “ato libidinoso” no camarim. E acreditavam – e esse era um aspecto central – que Ferrer estava vulnerável pelo efeito de alguma substância. Por isso, a delegada Monavique entendeu que havia elementos suficientes para indiciar Aranha por estupro de vulnerável, com base em provas testemunhais (o motorista do Uber e a mãe da vítima), provas periciais (rompimento do hímen e presença de material genético na calcinha), contradições flagrantes em depoimento (Aranha havia mentido) e, por fim, um laudo toxicológico que, no seu entender, ficara inconclusivo.
Duas semanas depois da confirmação de que a saliva de Aranha deixada no copo d’água conferia com o material genético na calcinha de Ferrer, o promotor Alexandre Piazza pediu a prisão do acusado. No dia seguinte, o pedido foi acatado pelo juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. A delegada Monavique, ela própria, foi a São Paulo para prendê-lo, mas Aranha, alertado pela inclusão do pedido de prisão no inquérito, não estava em seu apartamento.
Daquele momento em diante, ele passou a ser considerado um foragido da polícia.
Com o cerco se fechando, André Aranha tomou uma providência: contratou um advogado em Florianópolis. Ao entrar em cena, Gastão Filho tentou revogar a ordem de prisão. Alegou que seu cliente tinha endereço fixo, não representava risco ou ameaça nem estava de posse de seu passaporte, então sob custódia da Justiça. A prisão foi revogada. Em seguida, Gastão Filho começou a esboçar sua linha de ataque contra Ferrer. A partir daquele momento, a jovem mineira, que mudara para Florianópolis e tinha uma vida extremamente modesta, passaria a ser retratada como uma golpista voraz, que estava numa balada colocando-se à venda, tentando atrair algum milionário. Gastão diria, inclusive, que ela errou de alvo: seu objetivo não era fisgar André Aranha. “Era Roberto Marinho Neto”, afirmou.
Na audiência do caso realizada no dia 27 de julho de 2020, Gastão orientou seu cliente a “contar toda a verdade” no depoimento. Afinal, os laudos e os fatos provaram que ele mentira ao falar com a polícia. Aranha, então, contou que estava pagando a conta do Bangalô 403, já pronto para ir embora com os amigos, quando Ferrer se aproximou dele, fez carinho em sua nuca e no seu cabelo e disse então que precisava ir no banheiro. “Eu também”, Aranha respondeu, segundo sua versão. Ali ao lado do caixa ficava a entrada para o camarim, cujo acesso era exclusivo para artistas e amigos da casa. Roger Rodrigues, o sócio, autorizou que o casal subisse – como mostram as imagens da câmera captadas naquela noite.
No camarim, de acordo com Aranha, Ferrer lhe fez sexo oral e trocaram carícias. Quando ele se preparava para retribuir o sexo oral, diz que sentiu um odor incômodo nas partes íntimas de Ferrer e, para disfarçar seu desconforto, disse que precisava ir ao banheiro. Nesse meio-tempo, ele conta que Ferrer desceu as escadas. Logo depois de lavar as mãos no banheiro, ele fez o mesmo. Nas imagens da câmera, Ferrer desce 21 segundos antes dele. Aranha afirmou que, ao se despedirem, Ferrer disse: “Tchau, Robertinho.” Com isso, Aranha quer dizer que Ferrer o confundira com o herdeiro da Globo – a tese de seu advogado de defesa.
Em seu depoimento, a modelo Franciely Amaral, que fazia parte do grupo de amigos, conta que estava com a turma no restaurante Shack, para onde foram quase todos – exceto Ferrer. Ali, à mesa do jantar, Aranha falou sobre “uma menina” e disse que ela estava “muito louca” e “bêbada”. E que, por isso, resolveu fugir dela. Na audiência, Aranha fez questão de explicar o uso da palavra “louca”, para não deixar aberta a interpretação de que ela não estava plenamente consciente. Isso poderia fortalecer a tese de que ela estava vulnerável. Aranha, então, disse que usara a expressão para se referir apenas à confusão que Ferrer teria feito entre ele e Marinho.
Com a nova versão de Aranha, Gastão Filho começou a tentar caracterizar Ferrer como uma golpista. Tratou-a de modo tão humilhante que, com a divulgação do vídeo da audiência quatro meses depois, criou-se um escândalo nacional. Na sessão, por meio de videoconferência, travaram o seguinte diálogo:
– Eu não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus – começa o advogado. – E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. E não dá para dar o teu showzinho. Teu showzinho tu vai lá dar no Instagram depois, pra ganhar mais seguidores.
Ferrer escuta, com uma expressão de desalento. Gastão, então, exibe uma foto de Ferrer, que não tem qualquer relação com o caso, numa tentativa de contestar a acusação dela de que suas fotos foram adulteradas para parecerem obscenas.
– Essa foto aqui foi extraída do site de um fotógrafo, onde a única foto chupando o dedinho é essa aqui. E com posições ginecológicas é só dela. Não tem nada de mais essa foto.
– Mas eu estou de roupa, não tem nada de mais mesmo – interrompe Ferrer – A pessoa que é virgem, ela não é freira, não, doutor. A gente está no ano 2020.
O advogado insiste:
– Essa foto não tem nada de mais. Mas por que você apaga essas fotos, Mariana? E só aparece essa tua carinha chorando, só falta uma auréola na cabeça.
Ferrer desaba e começa a chorar. Gastão segue no ataque.
– Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lágrima de crocodilo.
O juiz Rudson Marcos intercede.
– Mariana, Mariana, se quiser se recompor aí, tomar uma água, a gente suspende o ato, tá? Não tem problema, tá?
Em prantos, ela lhe faz um apelo:
– Eu gostaria de respeito, doutor, excelentíssimo. Eu tô implorando por respeito no mínimo – diz, com sua voz quase sumindo, sufocada pelo choro. Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma que eu estou sendo tratada. Pelo amor de Deus, gente. Que que é isso?
A cena resultou numa rara unanimidade: uniu petistas e bolsonaristas. A ministra Damares Alves pediu explicações sobre a brutalidade da audiência, enquanto Maria do Rosário, a petista a quem Bolsonaro disse não merecer ser estuprada, compareceu com megafone em um protesto em Porto Alegre.
Os três homens presentes na cena estão sob investigação. O juiz Rudson Marcos responde a processo disciplinar no Conselho Nacional de Justiça sob a suspeita de ter se omitido. Ele explicou que, por inúmeras vezes, deu tempo para que Ferrer se recompusesse. A conduta do promotor Thiago Carriço de Oliveira, sob a acusação de não ter zelado pela integridade da vítima, é investigada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, que não informa se a defesa já foi apresentada. A seção local da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) abriu um processo contra Gastão Filho, providência tomada antes que as imagens da audiência viessem a público. (O advogado é um veterano de processos na OAB. Responde a outros dois. Um pela publicação de uma reportagem que pode configurar propaganda dos seus serviços, o que é proibido. Outro pela suspeita de conluio com um procurador que perdeu o cargo por produzir peças que os advogados subscreviam.)
Em Brasília, um grupo de deputadas lideradas por Tereza Nelma (PSDB-AL) propôs a Lei Mari Ferrer, que pune advogados, promotores e juízes que deixem de zelar pela integridade física e psicológica das mulheres durante audiências e julgamentos. Depois de passar pela Câmara, a lei foi aprovada pelo Senado no dia 27 de outubro, quase um ano após a divulgação do vídeo em que Ferrer foi humilhada. Falta a sanção presidencial para que a lei entre em vigor.
O desrespeito a Ferrer naquela sessão repercutiu ainda mais porque, no final, André Aranha saiu absolvido da acusação de estupro de vulnerável com o apoio do promotor, que não pediu sua condenação. O site The Intercept, para descrever o resultado, usou a expressão “estupro culposo”, ou seja, um estupro sem intenção de estuprar. A sentença não usava essa expressão, de resto uma figura jurídica inexistente na legislação penal, mas ajudou a chamar atenção para o caso.
Na audiência, o advogado de Ferrer, Julio César da Fonseca, sustentou que havia provas cabais do estupro de vulnerável. Ele lembra: “Há imagens mostrando a Mariana descendo e subindo do camarim. Ela não conseguia escrever corretamente no WhatsApp, clamava por socorro às amigas. Há a voz da vítima, dizendo que foi abusada. Há um laudo comprovando o rompimento do hímen. E ainda há um laudo dizendo que foi encontrado material genético do Aranha na roupa íntima dela”, diz ele. “O que mais é preciso para provar o estupro, se nem imagens nem laudos bastam?”
Alexandre Piazza, o promotor anterior do caso que pedira a prisão temporária de Aranha no ano anterior, pensava do mesmo modo, mas ele havia deixado o caso para ocupar outra promotoria. Em seu lugar, entrou Tiago Carriço de Oliveira. Enquanto Piazza achava que o episódio era um caso claro de estupro de vulnerável, Oliveira tinha outro entendimento. Para ele, houve, de fato, um ato libidinoso no camarim do Café, mas ele entendia não haver provas de que Ferrer estava dopada – vulnerável, no vocabulário jurídico – naquele momento.
O promotor disse que as testemunhas – todas elas ligadas ao Café de la Musique por trabalho, amizade ou sociedade – não confirmaram embriaguez ou alteração de percepção de Ferrer. Suas roupas, segundo o motorista do Uber que a levou para casa naquela noite, não estavam rasgadas. As imagens das câmeras externas mostram que Ferrer, ao se dirigir para o 300 Cosmo Club, caminhava de salto alto e em plena normalidade. O exame toxicológico não comprovou a presença de drogas em seu organismo e, por fim, o material genético na calcinha e o rompimento do hímen, por si só, provam relação sexual ou ato libidinoso, mas não que Ferrer não tivesse consciência do que estava acontecendo. Poderia ter sido apenas um encontro consensual entre dois adultos. Na sua argumentação, portanto, não havia certeza para culpar Aranha. Pediu a absolvição, concordando com o advogado de Aranha. (Em tese, um juiz pode condenar um réu, mesmo contrariando a defesa e a acusação, mas é uma atitude raríssima e pode lhe render um processo por parcialidade.)
Na certeza do ato libidinoso, mas na dúvida da vulnerabilidade da vítima, inocentou-se o réu.
Em geral, um estupro tem apenas duas testemunhas, a vítima e o agressor. Por isso, nos crimes sexuais, a palavra da vítima tem um valor probatório, desde que não contrarie as demais provas do caso. A favor de Ferrer, registre-se, está o fato de que ela nunca mudou seu relato sobre o que aconteceu. Teve a honradez de manter sua versão inicial, e nunca acusou ninguém, nem mesmo Aranha. Jamais recuou da informação – que, no final, acabou lhe sendo prejudicial – de que não lembra de detalhes daquela noite.
Luciane tem certeza de que sua filha foi vítima de uma quadrilha, que inclui os sócios do Café de la Musique e as embaixadoras, que, na sua visão, recrutavam meninas virgens para entregá-las ao deleite de milionários. Desconfia que foram adulterados os horários impressos nas imagens de sua filha e Aranha subindo e descendo as escadas de acesso ao camarim. Acha que os próprios investigadores foram cooptados pela quadrilha. Ela critica a delegada Monavique, que indiciou Aranha e tentou prendê-lo, por não ter quebrado o sigilo telefônico de todos e não ter pedido exames de DNA de outros homens do grupo de amigos. Acredita, ainda, que os peritos do IGP e os legistas do IML integram o complô. Diz que não zelaram pela preservação correta do material recolhido e manipularam o resultado dos exames, porque o laudo não apontou nem a presença de álcool no organismo de Ferrer.
As desconfianças de Luciane chegaram aos seus próprios advogados. Primeiro, ela contratou o catarinense Fabio Lopes de Lima. Quatro meses depois, optou por um escritório de advocacia de Brasília, que escalou Valter Bruno Gonzaga, Paulo Roberto de Alves Pimenta, Carolina Rezende Moraes e Fernanda de Mello Goss. Três semanas depois, trocou o escritório de Brasília pela advogada catarinense Jackie Anacleto, que ficou cinco meses no caso, até ser substituída pela curitibana Thayse Pozzobon, que, por sua vez, defendeu Ferrer por oito meses. Entre fevereiro e agosto do ano passado, o caso ficou a cargo da Defensoria Pública, que acabou substituída pelo criminalista mineiro Julio César da Fonseca. Ele ficou no caso até o julgamento em segunda instância. Com seus múltiplos advogados, Luciane sempre insistiu na tese da quadrilha e do complô, mas os profissionais nunca acharam que fosse um bom caminho.
“Mãe e filha estão doentes, então saíram procurando pessoas e apontando o dedo”, diz Jackie Anacleto, que trabalhou no caso de maio e setembro de 2019. “Quem faria diferente com uma filha quase vegetando em casa?” Anacleto lamenta como o caso foi conduzido e seu desfecho. “A dona Luciane é bolsonarista da cabeça aos pés, tinha teses conspiracionistas sem provas, que acabaram dando margem para o outro lado implantar a tese machista do golpismo. E isso, infelizmente, pegou porque a Justiça é, sim, machista.” Ainda assim, do tempo em que esteve trabalhando com a causa, Anacleto saiu convencida de que houve estupro de vulnerável, crime que, para ela, ocorreu com a conivência das embaixadoras e dos sócios do Café.
“Temos de relevar a situação da família, uma filha estuprada mexe demais com a cabeça”, diz o advogado Julio César da Fonseca, que também evitou trabalhar com a tese de que Ferrer foi vítima de uma organização criminosa que atuava dentro do Café, com ramificações no Ministério Público, na Justiça, na Polícia Civil e no IML. “Isso é desespero de mãe, que não conseguiu fazer um raciocínio certo”, diz ele. “Agora, a tese de ser golpe não encontra amparo na realidade. Mesmo com 2,5 milhões de seguidores hoje no Instagram, Ferrer nunca pediu um centavo para ninguém. Eu trabalho pro bono, fizemos vaquinha entre amigos e parentes para pagar minhas passagens para Florianópolis.”
A desconfiança de que vinha enfrentando poderosos ocultos levou mãe e filha a suprimir do caso uma peça importante: o vestido branco de renda, que a mãe afirma que estava rasgado, com vestígio de sangue e cheiro de esperma. Luciane jamais entregou o material à polícia alegando receio de que a prova fosse adulterada. Ferrer diz que o vestido foi enviado para os Estados Unidos, onde está em lugar seguro. Para os advogados que passaram pela defesa, nunca fez sentido esconder uma prova que poderia ter peso relevante numa sentença favorável. “Elas foram mal orientadas no passado”, diz Fonseca. Até hoje, o vestido não apareceu.
O advogado de Ferrer não consegue mais reverter a absolvição em segunda instância porque foi uma decisão unânime. Poderá, no máximo, discutir no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou no Supremo Tribunal Federal (STF) se houve violação de alguma lei federal ou da Constituição, mas não pode reexaminar provas, rever depoimentos. Seu consolo é que a vitória de Aranha não foi completa. “Ele [Gastão Filho] queria tirar a absolvição de Aranha por ‘falta de provas’. Queria que fosse por ‘ausência do fato’. Não conseguiu”, diz o advogado. Agora, a defesa de Ferrer está pedindo a anulação da sentença. Alega parcialidade da Justiça porque o juiz Rudson Marcos solicitou acesso aos autos do caso antes do julgamento pelos desembargadores do Tribunal de Justiça. “Penso ser curioso esse contato. Não sabia que juiz de primeira instância se comunicava com desembargador”, ironiza Fonseca. O juiz pediu acesso ao processo para organizar sua defesa junto ao Conselho Nacional de Justiça, mas o tribunal não informa se atendeu ao pedido.
Ferrer move uma ação por danos morais contra o Café de la Musique no valor de 1 milhão de reais. Desde o ano passado, por ordem judicial, o Café paga seu tratamento psicológico, de 2 mil reais por mês. Agora, estuda se pedirá a revogação do pagamento. Nos últimos quase três anos, o estabelecimento vem enfrentando uma publicidade negativa com o caso Ferrer, mas continua adotando o mesmo marketing datado desde sua criação, há quinze anos: contrata mulheres lindas, que circulam com bebida em uma mão e cigarro eletrônico em outra, para atrair clientes abonados.
O lugar já foi frequentado pelo jogador Neymar e pelo surfista Gabriel Medina. Oferece onze bangalôs, onde os clientes podem se esbaldar – dançar sobre os sofás, por exemplo – e, se quiserem privacidade, basta fechar a cortina de linho cru. No centro de tudo, à vista de todos, há três piscinas, com capacidade para vinte pessoas cada. Na alta temporada, reservar uma piscina custa 16 mil reais – dos quais 12 mil podem ser usados em consumo de bebida e comida. Os bangalôs competem em esnobismo. O vizinho pediu dez garrafas de Veuve Clicquot? O outro vai pedir quinze. “Já vi cliente pagar 200 mil reais numa noite”, diz Karen Marins, que trabalhou como recepcionista por três anos e estava no Café a noite de 15 de dezembro de 2018. (Marins, que se diz “ex-feminista”, testemunhou contra Ferrer, apontando contradições no caso. Ferrer move um processo contra Marins por ter sido atacada por ela nas redes sociais.)
Num sábado nublado de outubro, a piauí esteve no Café à tarde, mais ou menos na hora em que Mari Ferrer chegou ali na noite que nunca terminou. Havia pouco movimento, um músico cantava a capela, e as embaixadoras começavam a chegar. Uma delas, 20 e poucos anos, cabelo preso, batom vermelho, calça jeans justa, top preto e barriga trincada à mostra, é parada por um senhor de 50 anos. “Você está de parabéns”, diz ele, segurando as duas mãos da garota e examinando-a da cabeça aos pés. Ela sorri e agradece, os amigos riem, e uma mulher da mesa registra a cena com seu celular e compartilha o vídeo com o grupo pelo WhatsApp.
Outra turma de homens celebra uma despedida de solteiro, passando de mão em mão uma lata de Red Bull. Cada um recebe a lata, chacoalha, encosta a boca no orifício onde se bebe – e não toma nada. Todos caem na gargalhada. “Costumo dizer que o lança-perfume é o crack dos ricos, quase todo mundo usa”, diz Karen Marins. “O Café é totalmente contrário ao consumo de drogas”, diz o advogado Leonardo Pereima, que trabalha para o estabelecimento. “Se é constatado que algum cliente está fazendo uso de substâncias ilícitas, ele é retirado, e são imediatamente tomadas as medidas legais.”
Assim que o último voto no Tribunal de Justiça foi anunciado, absolvendo Aranha por 3 a 0, o advogado Julio César da Fonseca preparou-se para dar a notícia à família. Ferrer e sua mãe estavam na casa de uma tia materna, em Uberaba. Fonseca ligou e pediu para falar com a mãe. “Enquanto eu falava com Luciane, escutei a movimentação e a menina entrando em crise. Ela precisou desligar às pressas para acudir a filha.” A mãe chamou a psicóloga de Ferrer, que a acompanha no tratamento para depressão, síndrome do pânico, estresse pós-traumático e ansiedade — conforme o último laudo com seu diagnóstico, emitido em setembro passado. Ferrer não melhorou com a chegada da psicóloga, a tia teve um pico de pressão, e uma ambulância foi chamada. Ferrer e a tia materna deram entrada num ambulatório da cidade. Ambas apresentavam um quadro de crise nervosa. Quando voltou para casa, Ferrer ficou três dias sem sair da cama, prostrada e sem forças.
Nas redes sociais, a absolvição de Aranha teve o efeito de gasolina em incêndio. A hashtag #JustiçaPorMariFerrer tornou-se o assunto mais comentado do dia no Twitter, com mais de 54 mil menções, a maioria em protesto contra o resultado. Richarlison, jovem atacante da Seleção Brasileira, postou: “180 mulheres são estupradas por dia no Brasil. Mais da metade são crianças de até 13 anos. E a punição? Cadê?” A deputada federal Sâmia Bomfim (Psol-SP) revoltou-se: “Inaceitável! O TJ-SC confirmou a absolvição do homem acusado de estuprar Ferrer. São fartas as provas das violências sofridas por ela, desde a sexual até a violência institucional. Hoje é um dia indignante para as mulheres brasileiras.”
Mas, como costuma acontecer nas redes sociais, o escândalo de hoje será substituído pelo escândalo de amanhã. Dias antes do julgamento no Tribunal de Justiça, já sabendo que eram altas as chances de absolvição, Aranha, que gastou 2 milhões de reais na sua defesa, contratou uma assessoria de imprensa para monitorar as redes sociais. Sabia que haveria um debate acalorado e queria estar preparado para o caso de dar alguma resposta. No dia, a equipe avaliou que não era preciso dizer nada.
Ferrer vem tentando se reerguer. Desde o início deste ano, está cursando faculdade de direito em Uberaba, pelo método de ensino a distância. Seu plano é advogar em favor de vítimas de crimes sexuais. Em julho passado, ela obteve uma pequena vitória na esfera civil. O Tribunal de Justiça de São Paulo voltou a autorizar que divulgasse em suas redes sociais assuntos ligados ao processo. O desembargador viu uma contradição no fato de o agora ex-réu ter pedido para suspender o sigilo da ação criminal e, ao mesmo tempo, ter solicitado que Ferrer fosse proibida de publicar sobre o caso.
No dia 16 de outubro, nove dias depois da absolvição de Aranha, Ferrer usou da liberdade de comentar o caso no Twitter. Escreveu a seguinte mensagem: “Uma jovem de 21 anos que se guarda por tanto tempo jamais em sã consciência perderia a virgindade do nada, em um muquifo, com um desconhecido velho, que n faz sequer seu tipo ideal, com risco de engravidar, pegar DST e ainda ficar suja de sangue e esperma. E se fosse sua filha?”
O inquérito policial informa que, desde aquela noite em 15 de dezembro de 2018, Ferrer já tentou o suicídio três vezes.
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