O piauiense Elizeu Aguiar ainda está longe de sonhar em impor silêncio no plenário, mas já não acha esquisito tratar “o presidente Michel Temer” de “Michel” FOTO: © ORLANDO BRITO
O aprendiz
Elizeu é o cara: os 100 primeiros dias de um novo Vossa Excelência na Câmara dos Deputados
Dorrit Harazim | Edição 32, Maio 2009
“Subi à tribuna geladinho, muito receoso. No meu primeiro momento ali em cima, confesso que tremi”, conta o piauiense Elizeu Aguiar, catapultado de segundo suplente em Teresina a deputado federal em Brasília. Ele relembrava sua estréia no microfone do plenário da Câmara, em março passado. “Treinei o discurso antes, sozinho aqui no meu gabinete, para controlar o tempo da fala. Mas o friozinho na barriga não passou.” Aguiar, do PTB, é um dos onze suplentes que assumiram a vaga dos deputados que se elegeram prefeitos em outubro do ano passado. Empossado em janeiro, quando o Congresso ainda se espreguiçava no recesso parlamentar, o piauiense passou a integrar a galeria das 513 Suas Excelências que representam o povo brasileiro em Brasília.
A cerimônia de posse desse pingado de suplentes não teve grandes pompas. Não ocorreu no plenário da Casa, como na graduação em massa de titulares, mas no gabinete de Arlindo Chinaglia, cujo mandato de presidente da Câmara já estava em vias de extinção. Ainda assim, para Elizeu Aguiar, a posse en petit comité teve sabor dulcíssimo. Um mês mais tarde, ao narrar o evento durante um jantar, desenhou a cena na toalha da mesa do restaurante. “Na sala do presidente tinha uma mesa enorme assim. Uma parte dos novatos sentou desse lado aqui, a outra parte do lado de lá. Eu era o último, na ponta de cá”, apontou com o garfo. “Pela norma, apenas um dos empossados presta juramento. E o que acontece? O presidente chama um nome e ninguém se levanta. Chama outro, também nada – os dois tinham dado uma saída da sala. O terceiro, por ordem nominal, era eu. Já pensou? Eu, Elizeu Aguiar! Prestei juramento em nome dos demais e liguei correndo para a minha esposa em Teresina. ‘Minha filha, Deus está nesse negócio conosco. Assiste ao Jornal Nacional de hoje!’, avisei.”
Não foi o primeiro empurrão extra do vereador piauiense que se diplomou deputado. A cadeira que agora ocupa pertence a um parlamentar licenciado há dois anos (José Medeiros, PT/PI), que já tinha sido preenchida?por um primeiro suplente, Benedito de Carvalho Sá, mais conhecido como B. Sá. Mas com a vitória de Sá para prefeito de Oeiras, no ano passado, a fila voltou a andar abrindo caminho para Elizeu. “É a primeira vez que um filho da terra chega direto de vereador a deputado federal”, festejava o aprendiz. “Posso dizer que entrei para a história política do Piauí.”
O pouso de um calouro no ninho parlamentar nunca é fácil. “A primeira impressão que se tem, ao chegar aqui, é que você nem vai saber andar”, constatou o calouro. E andar em linha reta, numa legislatura em que pecados capitais e veniais brotam por todas as frestas, é ainda mais espinhoso. “Aqui você tem a maior concentração de malvadezas por metro quadrado”, ensina o deputado Miro Teixeira (PDT/RJ), que há oito legislaturas esgrima a arte de evitar armadilhas e chutar cascas de banana. Miro tinha 26 anos quando estreou como deputado federal no longínquo ano de 1971. Hoje, aos 64, conhece cada entranha das alvas cúpulas – côncava e convexa – imortalizadas por Oscar Niemeyer.
Enquanto, do lado de fora, a silhueta do Congresso sugere leveza, limpidez, quase inocência, é no seu bojo que se revela o emaranhado de desvios possíveis. Para começar, há os descaminhos puramente geográficos: como não se perder num labirinto de 1 436 salas, gabinetes, salões, anexos, elevadores, túneis e corredores mal iluminados? Na véspera da sessão inaugural da 53ª Legislatura, marcada para 3 de fevereiro, Elizeu Aguiar tratou de ensaiar o percurso que deveria fazer. Pregou na lapela o recém-conquistado distintivo dourado e verde de deputado federal, e percorreu umas três vezes o sinuoso trajeto entre o seu gabinete e o plenário. Não queria fazer feio logo no dia da eleição do novo presidente da Casa e da Mesa Diretora.
Solon Braga, um bacharel em direito com dezesseis anos de assessoria parlamentar no currículo, ajudou-o nesse desbravamento inicial. E veio a se tornar o primeiro contratado da cota do deputado. “O que eu mais preciso aqui é de informação. Preciso aprender como encaminhar emendas, como chegar aos ministros, e rápido”, percebeu logo de cara. “Sobretudo porque tenho só um ano e três meses [até a próxima eleição legislativa] para mostrar a que vim.” Como Solon – porte de atleta, voz de barítono e ternos de quem há muito deixou o Piauí – também sabe deslizar pela Esplanada dos Ministérios, a parceria acabou dando certo. Em apenas 100 dias de Brasília, o segundo suplente, agora deputado, já foi recebido por três ministros, o que não é frequente. E Solon, que já era assessor parlamentar do senador João Vicente (PTB/PI), passou a receber um complemento de 3 mil reais pelo trabalho extra no gabinete do conterrâneo.
O contato inicial da revista piauí com Elizeu Aguiar deu-se na sua sala ainda depauperada do Anexo III – além do mobiliário básico, havia apenas prateleiras vazias, dois monitores sem CPUe três telefones inúteis. Um mês depois, quatro computadores de mesa, um laptop, acesso à internet, frigobar e uma tevê funcionavam a contento. Elizeu mostrou-se surpreso com o interesse de uma publicação do Rio de Janeiro, como a piauí, pela adequação de um recém-chegado à cena parlamentar – havia tantos veteranos do poder à disposição dos holofotes… Não foi arredio, apenas cauteloso. Indagado onde gostaria de jantar para a primeira entrevista, escolheu o restaurante do Hotel Nacional, o menos eletrizante dos endereços públicos da capital. Tradicional e velhusco –, ocasionalmente apelidado de “Ácaro Nacional” –, o hotel erguido cinquenta anos atrás era território conhecido seu. Fora ali que escolheu se hospedar até o final do mandato, consumindo sua cota de auxílio-moradia – 3 mil reais por mês para quem prefere não ocupar um dos apartamentos funcionais da Câmara.
O aprendiz não compareceu sozinho à entrevista. “Quero lhe apresentar o patrão a quem devo muito, e de quem hoje sou amigo”, anunciou Elizeu, apontando para um senhor de cabelos brancos, beirando os 80 anos, sentado a seu lado. Era o português Manoel Palhares, que na década de 80 chegou a ter 22 restaurantes da rede Choppizza espalhados pelo Brasil, perdeu todos, e hoje olha para seu ex-funcionário com satisfação sincera.
“A senhora permite eu lhe contar minha história de vida?”, propôs o deputado a seguir. “Assim vai ficar mais fácil me conhecer melhor. E o seu Palhares, aqui ao lado, pode confirmar o que precisar.” O jantar teve quatro horas de duração. Manoel Palhares aguentou até o final, cansado e calado.
A memória de Elizeu Aguiar para números, datas, detalhes e diálogos revelou-se notável. Seu olhar, acentuado por uma ligeira exotropia, é de curiosidade permanente. Não parece preocupado com as entradas de calvície nas têmporas, nem cogita candidatar-se a um implante de cabelo, tão básico no plenário da Câmara. Seu par de sobrancelhas espessas tampouco deverá sofrer correções cromáticas, à moda de tantos cabelos, barbas e bigodes no Senado. Aos 43 anos, o mais novato dos representantes do povo brasileiro mantém uma curvatura ascendente nos cantos da boca, o que costuma ser indicativo de pessoa de bem com a vida.
Motivos para isso não lhe faltam. Nascido em família pobre mas estruturada – e evangélica –, Elizeu, quando criança, começou a lavar todos os sábados o Fusca 74 de um pastor americano. Tinha 8 anos de idade. Andava 1 quilômetro e meio na ida, outro tanto na volta. “Meu irmão menor e eu começamos a ver ali um mundo de oportunidades”, conta, animado. “É que nesse trajeto havia vários carros a serem lavados, jardins precisando de trato, árvores a podar, sapatos para serem engraxados. A gente começou a bater de porta em porta e não demorou para termos trabalho também nos feriados.” O empreendedorismo ele assegura ter herdado da mãe, zeladora de colégio. “Lembro da manhã em que ela anunciou que íamos comprar uma geladeira. Ela explicou que íamos fazer da geladeira um negócio. E assim foi. Deus foi tão bom conosco que colocou três colégios num raio de 100 metros de nossa casa. A gente passou a vender o dindin [suco ensacado] na hora do recreio. Aos domingos ampliamos para os campos de futebol e fomos diversificando – dindin, laranja, bolo, muita cocada. Assim foi comprada nossa televisão e colocamos cerâmica no piso de casa.”
Elizeu quando jovem completou o ensino médio e fez vestibular para física. “Eu tinha me apaixonado pela idéia de poder calcular coisas incríveis”, explica. Foi reprovado. Também quis ser agrônomo, mas não deu. Começou a trabalhar na primeira indústria de gelo de Teresina. “Sabia que era apenas o primeiro degrauzinho. Cada cliente novo que entrava eu ia cumprimentar na esperança de ele vir a ser meu próximo patrão. Esta era a minha visão.”
Passados três meses, entrou no estabelecimento um português de nome Manoel Palhares, vindo do Maranhão. Quis contratar o jovem Elizeu por um salário três vezes maior, além de pagar o aluguel de uma casa. O pai desaconselhou mudança tão brusca e o filho concordou. Mas em 1985 a proposta veio totalmente reformatada: Elizeu poderia fazer estágio de gerente em Brasília. Sem qualquer garantia. Caso não fosse aprovado, o mesmo ônibus que o levaria à capital o traria de volta. Elizeu aceitou. Estava com 18 anos e era a primeira vez que saía do Piauí. “Minha mãe me deu uma mala amarela de 1 metro por 1 metro, quadradona, e com ela peguei dois dias e meio de Transbrasiliana”, relembra. “Desembarquei na rodoviária e era apenas mais um nordestino sentado na calçada com uma mala 1 x 1.”
Pena que nenhum dos 181 diretores do Senado descobertos em 2009 tenha passado por estágio semelhante. A filosofia da empresa de seu Palhares era simples: “Quer aprender a mandar? Vai ter de aprender a fazer.” Elizeu teve de aprender a lavar louça, cozinhar, fazer pizza, trabalhar no balcão, de garçom, no escritório, no almoxarifado, em tudo. Foi despachado para Uberaba como fiscal de produção, onde aprendeu a controlar o desperdício. Aos 19 anos, virou gerente da loja mais bagunçada de Brasília. “Caí nas graças do patrão quando, em pouco tempo, a loja se reergueu. Mas foi então – o senhor me permite falar isso, seu Palhares? – que ele cometeu um erro grande: passou o comando das pizzarias para os filhos, que não tiveram o mesmo carinho para com a empresa.” Um a um, os estabelecimentos foram falindo. Elizeu, já casado e com duas filhas, migrou para Natal, tornou-se sócio de uma distribuidora de frios, e aos 26 anos retornou a sua Teresina com o equivalente a 6 mil reais no bolso e uma idéia fixa na cabeça: comprar e reabrir o Choppizza da cidade. Em menos de dois anos zerou as contas atrasadas e acertou as dívidas trabalhistas de 27 antigos funcionários do restaurante.
Hoje, Elizeu Aguiar é dono de um conjunto de três empresas de alimentação e tem 78 funcionários. Seu patrimônio inclui uma caminhonete Mitsubishi, um apartamento financiado de 130 mil reais (ainda em construção), um carro Corolla 2009 com o qual capotou no início de abril, um terreno de 40 x 30 metros em nome da esposa e uma casa própria financiada. A soma dos bens declarados em 2008: 126 226 reais. Pelo menos por enquanto, mansões brasilienses e castelos mineiros não fazem parte de seus propósitos. Tornou-se um empresário de respeito, benquisto pelos piauienses. A prova? O fato de ter sido reconduzido à presidência do River Atlético Clube, também conhecido como Galo, ou Tricolor de Aço, detentor do maior número de títulos (27) no Estado. “No ano passado conseguimos chegar à segunda fase da Copa Brasil, mas perdemos para o Botafogo por 2 a 0”, lamenta o presidente-torcedor.
Revisitar o deputado Elizeu Aguiar após sua primeira semana de trabalho confirma o que Brasília toda já sabe: parlamentar novo não tarda a ser farejado e rondado. “Até agora devo ter recebido a visita de umas vinte pessoas”, contabilizou o piauiense. “Seis vieram me parabenizar. Os outros catorze vieram pedir.” O novato se surpreendeu com o número de gente “sobrando” nos corredores do Congresso. “Geralmente são deputados que se tornaram prefeitos e depois não conseguiram se reeleger. Noto que há um bater de ponto constante de gente com quinze, vinte anos de experiência na Casa, à espreita de alguma chance.” Elizeu se refere à casta dos ex-políticos já enraizados no Planalto Central. No primeiro e segundo mandatos, todo parlamentar vai e volta a seu estado de origem transportado pela até então inesgotável cota de passagens aéreas. No terceiro mandato, alguns deles já trazem a família, se desenraizam e deixam de retornar com frequência ao curral eleitoral. Acabam por não se reeleger, ficando à deriva na capital. São os dalits de Brasília. Como diz o ex-vereador, ex-deputado estadual, ex-prefeito, ex-governador, ex-sem mandato e hoje novamente deputado Wilson Braga (PMDB/PB), “em político sem mandato ninguém encosta, é como leproso”. A língua afiada de Miro Teixeira fala em almas penadas. “Um ex ficar vindo à Casa costuma ser malvisto. Da primeira vez ainda tem o oba-oba do reencontro. Depois o parlamentar no exercício se esquiva.” Alguns casos extremos já fazem parte dos anais do Congresso, como o do político capixaba João Calmon. Comportou-se como senador até morrer aos 82 anos, apesar de ter perdido o quarto mandato três anos antes. Chegava ao plenário de distintivo de parlamentar na lapela, tomava assento, aplaudia um ou outro orador, confabulava. Só não votava.
Embora sendo mero debutante na vida parlamentar, Elizeu já sentiu que o caciquismo partidário está de olho na sua atuação. Por seu potencial eleitoral. Seis anos atrás, quando um companheiro de torcida do River convidou-o a se filiar ao PTB, o empresário chegou a achar graça. “Mas eu não entendo nada de política, nunca fui filiado a partido algum!” Foi convencido a pelo menos tirar a carteirinha, podendo decidir mais tarde o que fazer com ela. Incentivado pelo entorno social e evangélico, e empurrado pelo time do coração, ele começou a se articular, a conversar, a circular. Surpresa geral: entre os três candidatos a vereador do PTB em Teresina, ficou no topo da lista, com 21 mil votos – quando 6 mil votos já é uma média considerada boa. Foi o sexto nome mais votado na capital do estado. Caiu nas graças do partido e foi instado a se candidatar a deputado federal na eleição seguinte, a de 2006. “Mas eu só tenho um ano e seis meses de vereador, vai ser uma eleição dificílima”, ponderou. Ainda assim, foi em frente. “Minha estrutura era um carro de som e uma Kombi. Quando as urnas foram abertas, eu tinha 31 435 votos, o sexto deputado mais votado na capital. Caí ainda mais nas graças do partido e passei a segundo suplente.”
A grande virada dessa carreira atípica ocorreu no ano passado. Concorrendo novamente a vereador, Elizeu foi o único candidato do PTB a se eleger. No mesmo pleito, o primeiro suplente de deputado, B. Sá, conquistou a prefeitura da cidade de Oeiras. Elizeu se viu diante de uma escolha arriscada: exercitar por quatro anos o mandato pleno de vereador que acabara de conquistar, ou assumir a rabeira (apenas os últimos dezoito meses) da cadeira de deputado deixada vazia por B. Sá. Optou por abrir caminho em Brasília.
Dessa vez, a chegada a Brasília foi macia. Em vez da maleta amarela de 1 x 1 com que desembarcara na capital pela primeira vez, agora os cofres públicos o recebiam com o até então generoso kit-deputado: quinze salários de 16 512,09 reais ao ano, uma verba indenizatória de 15 mil mensais e outros 4 268,55 para despesas com correio e telefonia. E tinha mais: 50 800 reais para contratar até 25 assessores (seja no gabinete de Brasília, seja no escritório da base eleitoral), a famosa cota para passagens aéreas e plano de saúde familiar ilimitado. Era tanta coisa em termos de infra-estrutura, materiais e serviços à disposição de cada Excelência, que Elizeu Aguiar levou várias semanas até destrinchar o que era politicamente radioativo e o que considerava legítimo. Por via das dúvidas, antes mesmo de o benefício ser oficialmente banido, limitou a compra de passagens aéreas para terceiros a um único vôo da esposa para Brasília, por ocasião da convenção do PTB na capital. Localizado por telefone num fim de semana recente, em uma cerimônia de casamento em Belo Horizonte, foi logo botando as cartas na mesa: o seu bilhete correra por conta da verba oficial, mas o da senhora Aguiar saíra do próprio bolso.
Desde que o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB/PE) deu nome à voraz rapinagem parlamentar do dinheiro público, o Congresso Nacional saiu de compasso. Durante onze semanas e meia de legislatura – até a tarde de 28 de abril, quando Michel Temer anunciou, solene e sem um fio de melena fora do lugar, um freio na farra das passagens aéreas – a Câmara conseguiu aprovar apenas quatro projetos de lei. Consumida por um escândalo intestino atrás do outro, e abarrotada de medidas provisórias que atravancam seu trabalho regular, a Casa ficou exposta ao achincalhe da opinião pública.
Para Elizeu, ainda é vital preservar o respeito cívico que aprendeu a nutrir pela instituição. Impedir que a indiferença dos veteranos e as maracutaias à sua volta lhe roubem a lembrança de seus primeiros grandes momentos na Casa, que considera sublimes. Igual a todo deputado de primeira viagem, para Elizeu o maior deles continua sendo a estréia na tribuna do plenário. Difícil encontrar um parlamentar que não se lembre da abissal carga de ansiedade prévia, seguida de um alívio quase entorpecedor. Isso vale tanto para empresários multimilionários como Camilo Cola (PMDB/ES), como para o ex-camelô Antonio Carlos Chamariz (PTB/AL), um dos onze suplentes empossados em janeiro último.
“Seu Camilo”, como é chamado o deputado mais idoso (85 anos) da atual legislatura, é dono de 26 empresas, entre as quais a Viação Itapemirim. Pela sua declaração de bens, que lista 114 itens e soma 260 milhões de reais, é também o parlamentar mais rico da Câmara, além de ser o maior reflorestador de Mata Atlântica do país. E, como se não bastasse, é vice-rei da Cachoeiro do Itapemirim de Roberto Carlos. Pois bem, este cidadão que pode tanto e mantém o hábito de trazer uma marmita para o seu gabinete na Câmara também foi conhecer o plenário ainda vazio na véspera de adentrá-lo pela primeira vez como deputado, em fevereiro de 2007. Ensaiou o tradicional discurso de estréia em seu gabinete, para uma platéia de cinco pessoas – seus assessores –, com pedido de aplausos do coro, ao qual se seguiu o choro do autor. “Isso aqui é uma escola, estou aprendendo tudo de novo”, observou ao circular sozinho pelo plenário.
No caso do novato Antonio Chamariz (PTB/AL), não houve preparação possível para o seu batismo oratório. Quarenta e oito horas após tomar assento como deputado, o alagoano foi visto pela repórter sentado em um gabinete ainda deserto, olhando fixamente para uma única folha de papel. Dela constavam algumas frases curtas. Sobre a mesa, outro papel recebido na véspera, assinado pelo secretário-geral Mozart Vianna de Paiva, comunicando-lhe que pela ordem de sorteio seu pronunciamento estava previsto para o dia seguinte às 14h40. “Minha esposa me ajudou na inspiração, enviando sugestões por e-mail”, contou com naturalidade, exibindo as anotações. “Primeiro vou saudar a todos com a paz do Senhor. Dar boa-tarde e agradecer a Deus. E vou navegar pelo coração pois vinte minutos é muito tempo, e o que eu tenho aqui não dá nem para preencher dez. Para dizer a verdade, quando vi a convocação pensei em pegar o primeiro vôo para Maceió”, confessou. Às 8h45 do Dia D, o deputado, integrante da bancada evangélica, assistiu ao culto das quartas-feiras e chorou muito – “Chorei de alegria, pois aconteceram duas salvações aqui na Câmara.” Depois aguardou. Às 15h18, com o painel do plenário acusando 193 presenças, que na realidade estavam reduzidas a meia dúzia de parlamentares que conversavam entre si, Chamariz foi chamado a fazer seu pronunciamento. A voz saiu forte, falou de improviso sobre a dívida milionária que contraiu com o fisco, fato que o deixou, ao final, extremamente empolgado, com o vigor dos que exorcizam o peso de uma culpa através de uma confissão pública.
Já Elizeu Aguiar tratou de se precaver. “Afinal, é para o Brasil inteiro”, comentou, referindo-se à transmissão ao vivo pela TV Câmara. Consultou várias vezes as 395 páginas do Regimento Interno para entender melhor a coreografia dos apartes e do pronunciamento, e optou por se dirigir essencialmente a seus conterrâneos/eleitores potenciais do Piauí. No dia em que completava trinta dias de vida parlamentar, o piauiense subiria à tribuna no início da tarde. Sentou sozinho num plenário que ia se esvaziando à medida que o tempo se esvaía. Amargou duas horas e quarenta minutos de espera, ciente de que a família toda, em Teresina, também estava imóvel em frente à televisão. Anunciado o seu nome pelo presidente da sessão, Elizeu subiu à tribuna e falou de improviso por dezoito minutos. Retornou ao assento que ocupara e foi checar se alguém no Piauí tinha assistido à sua fala. “A primeira mensagem no meu celular era de um deputado estadual: ‘Valeu, deputado. Não votei em você pois já estava compromissado, mas estamos acompanhando. É isso aí.'” A esposa ligou em seguida, dizendo: “Foi lindo, você estava perfeito.” Outros familiares tinham montado platéia no interior do Maranhão. Duas semanas mais tarde, Elizeu ainda estava engasgado. “Ali eu me senti orgulhoso. Tantas pessoas nobres deste país, tantos políticos que fizeram história passaram pelo mesmo momento! Dá o que pensar”, comentou.
No Congresso brasileiro, como na vida, uma coisa é falar. Outra, mais rara, é se fazer ouvir. A mais rara de todas é se fazer ouvir calando o plenário. Ulysses Guimarães costumava dizer que quem não se projeta na primeira legislatura morre. E o carioca Miro Teixeira acrescenta que quem não tem estratégia para ocupar na hora certa um dos seis microfones instalados no corredor central do plenário dificilmente vai decolar. Tampouco pode prescindir da arte de saber ouvir – por sabedoria, interesse ou dever. Valéria Albuquerque, um dínamo da Casa, cujo apelido carinhoso é pit bull, há dez anos exerce a função de assistente de plenário – cinco anos para o PDT e os últimos cinco para a liderança do Partido da República (PR). “É um pouco como ser jogador de futebol, você veste a camisa do último time que te contratou”, explica ela. “Todo partido político com liderança constituída tem direito a colocar dois assistentes no plenário – os demais assessores de gabinete têm acesso vetado no salão. A função primordial desses dezesseis operadores que, como Valéria, trabalham sempre de pé, em meio ao burburinho do corredor central, é evitar que a bancada cometa erros durante as sessões. Estão sempre visíveis de forma a poder responder de imediato às duvidas e consultas dos deputados sentados. Usam o seu afiado conhecimento regimental como peça de xadrez, ora para acelerar, ora para atrasar, ou alterar o curso de uma votação, dependendo do interesse do partido. Por atuarem constantemente em tempo real, aprenderam a admirar o parlamentar que sabe calar um plenário. Tanto Valéria como o professor Francisco Afonso Castro, que este ano completa quase duas décadas como assistente de plenário para o Partido Popular (PP), um mesmo nome vem logo à memória no quesito falar para calar os demais: o deputado cassado Roberto Jefferson. “O Ciro Gomes é outro que você pára de contar piada para ouvir”, acrescenta o professor Francisco, “ao contrário de oradores que estão sempre de microfone na mão mas ninguém aguenta – nem as suas próprias bases”. Para a pit bull Valéria, preparo, clareza e objetividade nas intervenções colocam numa classe à parte o veterano Miro Teixeira, o paulista José Eduardo Cardozo, do PT, e o maranhense de primeiro mandato Flávio Dino, do PCdoB. Todos eles de olho nos mesmos eleitores potenciais a serem garimpados entre aposentados, garçons e funcionários públicos que assistem à TV Câmara com maior assiduidade.
O piauiense Elizeu ainda está a anos-luz de sequer sonhar em impor silêncio no plenário. Na penúltima quinta-feira de abril, sentiu-se um pirilampo só de ter sido chamado a subir à Mesa para presidir uma modorrenta sessão da tarde durante uma hora e trinta minutos. “Todo deputado sonha com isso”, garante ele, “e sentar naquela cadeira mais alta, com o Brasil inteiro te olhando, era o meu próximo alvo.” Haverá outras liturgias do poder de fácil sedução. Mas ele também já percebeu como é fácil ser seduzido por armadilhas menos aparentes. A primeira estocada lhe chegou três semanas após assumir o cargo. Estava no plenário assistindo a uma sessão vespertina quando recebeu uma ligação do colega e amigo Antonio Chamariz. Duas jovens e um rapaz estavam no gabinete do deputado alagoano oferecendo uma parceria para encaminhar pedidos do parlamentar junto aos ministérios. Não cobrariam nada, o gabinete indicaria uma pessoa que iria aprender o ofício, e citavam nomes de outros deputados que haviam aderido à proposta.
– Tu conhece esse povo? – perguntou Elizeu a Chamariz.
– Não.
– Pois eu acho que esse povo não deve ser ouvido. É o que chamam aqui de lobistas.
Elizeu foi até o gabinete de Chamariz e anotou discretamente todos os nomes mencionados pelo trio. Em seguida, foi tirar informação com o primeiro deputado que aparecia na lista. “Fica afastado, é gente perigosa. Já colocou um colega em dificuldade”, veio a resposta. “Falei pro Chamariz: ‘Por que eles vieram procurar logo a gente, que está chegando agora?’ No fundo, eles só queriam conseguir a nossa assinatura de deputado para abrir alguma vantagem do interesse deles.”
Uma estocada mais explícita bateu às portas de um dos onze suplentes empossados, que pediu que se resguardasse o seu anonimato. Foi abordado por outro grupo que também oferecia serviços de intermediação, mas detalhava não só o percentual da comissão que ficaria para o deputado, mas também a que iria para o prefeito da cidade contemplada com uma obra superfaturada. “O equilíbrio está em dizer não sem fazer muito alarde, pois você nunca sabe se está ou não desagradando à liderança do partido.”
Elizeu Aguiar completa seus 100 primeiros dias como membro titular de duas comissões parlamentares, e suplente em outras três. Já não acha mais esquisito ser chamado de Vossa Excelência pelo garçom do restaurante da Câmara, e encurtou o tratamento de reverência que reservava às lideranças. O “presidente Michel Temer” do início agora é “o Michel”. Não por intimidade e mais como consequência inevitável da barafunda geral e irrestrita desse início de legislatura. “A gente fica meio assustado com tanta coisa. Não temos condição de avaliar o tamanho real do que está ocorrendo”, argumenta Elizeu. “Também acho errado a Câmara ficar tomando decisões desencontradas, de um dia para outro, acertando tudo só com as lideranças. Eles estão saindo da racionalidade. O Michel tão perdido, tão telhado de vidro…”
Devido a um grave acidente de carro sofrido numa tarde de sábado na altura de Floriano, Piauí, durante uma visita de campanha ao interior, Elizeu ficou fora de combate por quase três semanas. O Corolla em que viajava com um irmão e um cantor evangélico capotou três vezes, imprensado por um caminhão, e nenhum dos alardeados airbags laterais funcionou. Decidiu acionar juridicamente o fabricante. “Justo quando aprovamos a obrigatoriedade das montadoras incluírem airbags entre os itens obrigatórios, acontece uma coisa dessas”, indignou-se o deputado, salvo pelo cinto de segurança.
– E no Piantella, o senhor já foi?
– Fui não, fica em que endereço?
Informado dos motivos que fazem do Piantella um dos pólos mais celebrados para conchavos, Elizeu Aguiar acha graça: “Não vou aparecer por lá tão cedo”, diz. Por enquanto continua jantando em churrascarias, shoppings e no restaurante do Hotel Nacional.