O beijo entre Brejnev e Honecker, estampado no Muro: o autor nunca recebeu direitos de imagem pelo grafite e sempre teve uma vida modesta CRÉDITO: FOTO DE JOACHIM THUM_ARTE DE DIMITRI VRUBEL
O beijo
Dmitri Vrubel eternizou sua arte no Muro de Berlim
Ana Clara Costa | Edição 192, Setembro 2022
Corria a primeira semana de outubro de 1979, em Berlim, quando o líder comunista Leonid Brejnev chegou à cidade para a celebração do 30º aniversário da República Democrática Alemã, então governada pelo camarada Erich Honecker. Brejnev era o convidado de honra e, ao cumprimentar Honecker, deu-lhe três abraços e um beijo nos lábios, uma saudação fraternal, tradição na Igreja Ortodoxa russa, que foi adotada pelos mandatários comunistas da antiga União Soviética. A imprensa registrava o evento. Mas um fotógrafo estava especialmente mal posicionado para a cobertura: o francês Régis Bossu, que trabalhava para a agência Sygma. Bossu estava atrás dos demais colegas, cujas cabeças atrapalhavam o enquadramento da cena completa, só lhe restando a opção de usar o zoom para captar uma imagem melhor. Direcionou sua objetiva para Brejnev e disparou quando os dois líderes se abraçaram e se beijaram. Foi o único a fotografar desse ângulo, com uma lente Nikon 80-200 mm. Não achou a imagem grande coisa.
A Sygma vendeu as imagens de cobertura do evento para a revista semanal Paris Match, e qual não foi a surpresa de Brejnev, Honecker e do próprio Bossu quando viram a demonstração de afeto estampada em duas páginas da publicação, com o título O Beijo, numa alusão à fotografia célebre de Robert Doisneau, O Beijo da Prefeitura, de 1950, em que um casal aparece se beijando em Paris. Em Moscou, o artista plástico Dmitri Vrubel, sem grande projeção na cena artística local, viu a foto e imediatamente expressou seu desejo de reproduzi-la num grande mural.
Dez anos mais tarde, o desejo de Vrubel se realizou. Um ano depois da queda do Muro de Berlim, quando Honecker estava no ostracismo e Brejnev, morto, 117 artistas de 21 países foram chamados para produzir obras em grafite no que propositalmente restara do muro. Naquela época, Vrubel participava de um grupo de arte em Moscou chamado Clube d’Avant-Garde (Klava, na sigla em russo) e organizava exposições clandestinas em seu apartamento. Ao chegar a Berlim, não teve dúvidas. Num espaço de 15 m2, reproduziu a imagem de Bossu, arrematada com a seguinte frase: “Meu Deus, ajude-me a sobreviver a esse amor mortal.” Posteriormente, Vrubel disse que a frase, que também era o título da obra, se referia a um episódio pessoal, não político.
O grafite repercutiu como hecatombe graças ao olhar sutilmente satírico e arguto que produzia sobre um sistema político em ruínas. Numa Alemanha reunificada, que atraía toda a atenção do mundo em razão do futuro promissor e do passado comunista pouco explorado pela imprensa, o “beijo fraternal” – que era como alguns jornalistas se referiam à obra – tornou-se parada obrigatória na East Side Gallery, nome que se dá à galeria a céu aberto em que o Muro se transformou. A imagem rapidamente foi absorvida e digerida pela cultura pop e pela publicidade. A fotografia já era famosa, mas reproduzi-la no Muro fez dela um símbolo histórico. Vrubel, que não ganhou um centavo pelo trabalho, voltou para Moscou e atingiu certa notoriedade trazida pela repercussão mundial da obra. Numa entrevista de 2013, o artista reafirmou seu desejo de que ela estivesse exatamente naquele local. “Quando vi o Muro de Berlim pela primeira vez, eu soube exatamente o que eu queria pintar: Brejnev e Honecker. Uma imagem para Berlim. Para os alemães”, afirmou.
Vrubel morreu no dia 13 de agosto, 43 anos depois de ter visto pela primeira vez a imagem que marcaria sua vida. Ele morava em Berlim desde 2010, para onde se mudou após repintar o muro, depois que a associação de artistas que cuida do local conseguiu patrocínio com autoridades alemãs para refazer as artes com tinta de melhor qualidade. Assim como os demais artistas, ganhou 3 mil euros pelo trabalho de repintar. Antes de aceitar o trabalho, ficou furioso com a destruição do anterior e reclamou que não havia sido consultado sobre o apagamento arbitrário de sua arte. Depois, reconsiderou. Disse à revista Der Spiegel, em 2009, que a segunda versão era melhor que a primeira porque, em duas décadas havia se tornado “um pintor melhor”.
O beijo estampado no Muro de Berlim foi sua obra mais célebre, embora ele tenha alcançado certo sucesso em 2001, quando produziu um calendário com doze imagens de Vladmir Putin. Vrubel jamais recebeu direitos de imagem pelo “beijo” e viveu uma vida modesta, mesmo depois de mudar-se para a Alemanha. Chegou a pintar um novo grafite na East Side Gallery, de repercussão muito mais discreta, em homenagem ao físico Andrei Sakharov, pai da bomba de hidrogênio soviética que se tornou um defensor perseguido dos direitos humanos.
O grafite de Vrubel inspirou outras representações de beijos entre figuras poderosas, como a campanha da marca United Colors of Benetton, em 2011, em que a ex-chanceler alemã Angela Merkel beija o ex-presidente francês Nicolas Sarkozy, e o papa Bento XVI é retratado em um beijo com o líder muçulmano Mohammed Ahmed al-Tayeb. A piauí também se inspirou na imagem de Vrubel em quatro capas ao longo dos seus dezesseis anos de vida. Todas as ilustrações foram produzidas por Nadia Khuzina, artista também russa, residente hoje nos Estados Unidos.
Casado com uma ucraniana de Odessa chamada Victoria Timofeeva, artista com quem ele divide a autoria de alguns trabalhos, Vrubel passou seus últimos meses em estado de profunda revolta com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Em entrevista ao New York Times, Timofeeva lamentou: “Ele estava tão furioso, tão triste, tão envergonhado.” Em julho, Vrubel sofreu uma parada cardíaca depois de ser infectado pela Covid. As complicações cardíacas pioraram em agosto, quando ele foi submetido a uma cirurgia para a substituição de um stent. Timofeeva pedia orações diárias em suas redes sociais. Ele tinha 62 anos, deixa mulher, quatro filhos e quatro netos. Foi enterrado em Berlim, a cidade que o tornou célebre. No dia seguinte à sua morte, flores foram depositadas em frente ao mural da East Side Gallery.
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