Pesquisas apontam um segundo turno entre Marine Le Pen, da extrema direita, e Emmanuel Macron, um novato, na eleição francesa; analistas falam em “ruptura” entre políticos e eleitores ILUSTRAÇÃO: REPRODUÇÃO
O belo e a fera
Um novato nas urnas e uma extremista ofuscam os partidos tradicionais na eleição francesa
Bernardo Esteves | Edição 127, Abril 2017
No saguão de entrada do Zénith, uma casa de espetáculos em Dijon, no leste da França, há fotos de Charles Aznavour, Johnny Hallyday e outros artistas consagrados que passaram por ali. Na noite de 23 de março, porém, seria a vez de um novato subir ao palco: Emmanuel Macron, candidato à Presidência da República aos 39 anos.
Macron é uma das surpresas da eleição que aconteceria dali a um mês. Ex-ministro da Economia do presidente François Hollande, rompeu no ano passado com o governo socialista e criou um movimento político para viabilizar sua candidatura. Batizado com as mesmas iniciais do fundador, o En Marche! (“Em marcha” ou “Em funcionamento”) reivindica espaço no centro do espectro político. “As clivagens se tornaram obsoletas”, declarou o presidenciável em 2016.
Desde fevereiro, ele se mantém à frente das pesquisas numa situação de empate técnico com Marine Le Pen, do Front National. No fim de março, a intenção de voto em ambos oscilava em torno de 25%. Mas a rejeição à candidata de extrema direita é imensa, e os partidários do centrista contam com um possível segundo turno sem sobressaltos: as pesquisas projetavam sua vitória com 62% dos votos.
Uma funcionária da equipe de Macron exortou o público antes de ele entrar em cena em Dijon. “Lá vem ele, animem-se!” O coro que ela puxou teve vida breve. As bandeiras da França distribuídas na entrada se agitaram com mais convicção quando o candidato subiu ao palco. Macron anteviu uma reta final de campanha marcada por ataques pessoais, e disse que precisaria do poder de convencimento dos eleitores. “Nada está ganho ainda”, alertou.
O centrista reafirmou compromissos de renovação da política e moralização da vida pública e evocou os pilares econômicos liberais do seu programa de governo: prometeu simplificar as leis trabalhistas, implementar uma profunda reforma da previdência e reduzir em 60 bilhões de euros os gastos do governo durante o mandato.
Na plateia, muitos empunhavam a bandeira azul com doze estrelas que representa a União Europeia, hoje com 28 membros – incluindo o Reino Unido, que está de saída. A adesão à UE é um dos grandes temas da campanha. A questão divide o eleitorado francês de acordo com uma linha de corte que não se superpõe à divisão convencional entre esquerda e direita: nas duas extremidades do espectro político, há candidatos que pregam a ruptura da França com a Europa. Macron, talvez o presidenciável mais empenhado na defesa do bloco, disse que a UE torna a França mais forte para fazer frente ao terrorismo e à competição com a China. Ao fim do discurso, cantou A Marselhesa de olhos fechados.
Com olhos verdes, costeletas e os incisivos sutilmente separados, Emmanuel Macron tem o ar de bom moço dos galãs da tevê. Se for eleito o 25º presidente francês, será o mais jovem a ocupar o cargo. Desde 2007 é casado com Brigitte, uma mulher 24 anos mais velha por quem se apaixonou quando era seu aluno no ensino médio. O casal é presença cativa nas capas da Paris Match, uma tradicional revista que cobre celebridades.
Macron nunca disputou uma eleição. Ingressou na vida pública durante a administração Hollande. Antes disso, havia trabalhado no banco Rothschild & Cie. Sua candidatura conquistou o voto de eleitores desiludidos com a política. “É o único que propõe uma ideia nova de França”, disse-me uma professora de francês de 49 anos antes do comício em Dijon. “De uns anos para cá anda difícil se reconhecer nos políticos.” O centrista se beneficia também do voto útil dos eleitores temerosos da extrema direita. “Macron é o melhor candidato para derrotar Marine Le Pen”, garantiu uma enfermeira aposentada, acostumada a votar nos socialistas.
Já Marine Le Pen é uma velha conhecida dos eleitores franceses. Ocupou uma série de cargos eletivos a partir de 1998, e há treze anos representa a França como deputada no Parlamento europeu. Aos 48, é a principal herdeira política do pai, Jean-Marie Le Pen, que presidiu o Front National por quatro décadas, antes de passar o bastão à filha.
Jean-Marie Le Pen conquistou espaço político com um discurso nacionalista em torno do combate à imigração, colecionando declarações polêmicas e processos na Justiça. Surpreendeu a França ao passar para o segundo turno na eleição presidencial de 2002, a quarta em que concorreu, alcançando quase 17% dos votos. No segundo turno, praticamente todos os demais partidos se uniram em torno de Jacques Chirac, candidato da direita de filiação gaullista que se reelegeu com 82% dos votos válidos.
Marine Le Pen vem promovendo uma estratégia de naturalização do discurso do FN junto à opinião pública. Distanciou-se de algumas opiniões extremas do pai e não hesitou em afastá-lo do partido quando, em 2015, ele reiterou declarações antissemitas que dera no passado. E passou a dirigir seu discurso também a uma classe operária temerária da imigração e dos efeitos da globalização sobre o próprio emprego.
A estratégia vem rendendo frutos. Nas eleições regionais de 2015, o FN conseguiu seu melhor resultado nas urnas, com quase 28% dos votos – mais que qualquer outro partido. “Há três anos o Front National é a primeira força eleitoral francesa”, disse em janeiro, numa entrevista ao jornal La Croix, o cientista político Pascal Perrineau, estudioso da extrema direita francesa no Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencesPo).
Apesar disso, o formato das disputas eleitorais faz com que o partido esteja sub-representado em algumas esferas. Na Assembleia Nacional, onde os deputados são eleitos num sistema de voto distrital em dois turnos, o que costuma favorecer a polarização entre a esquerda e a direita tradicionais, o FN tem apenas dois representantes – incluindo Marion Maréchal-Le Pen, sobrinha de Marine*.
A maior novidade da eleição talvez seja o papel secundário das duas principais forças políticas francesas. Juntos, Partido Socialista e Les Républicains – nome atual do partido que encarna os ideais da direita gaullista – se alternaram na Presidência nas últimas quatro décadas. A ausência mais notável nas cédulas será a do atual mandatário, François Hollande, que anunciou em dezembro passado que não concorreria à reeleição – um fato raro na vida pública francesa. Com um índice de popularidade que chegou a meros 11% de apoio, Hollande se tornou um presidente tóxico para seus aliados. A 25 dias do primeiro turno, ainda não havia anunciado seu apoio a nenhum candidato.
Tanto no ps quanto entre os republicanos, os candidatos foram escolhidos em primárias nas quais podiam votar todos os eleitores franceses. Pelo caminho ficaram outros pesos-pesados da política francesa, como o ex-presidente republicano Nicolas Sarkozy e o ex-primeiro-ministro socialista Manuel Valls. Afinal, foram apontados candidatos o socialista Benoît Hamon, ex-ministro da Educação de Hollande, e o republicano François Fillon, premiê sob Sarkozy. “Foram azarões que venceram as primárias, ambos com programas de ruptura com as linhas dominantes em seus partidos”, disse-me numa entrevista Jean Garrigues, professor de história contemporânea na Universidade de Orléans.
François Fillon liderava as pesquisas no começo do ano quando o semanário satírico Le Canard Enchaîné revelou que o republicano havia contratado mulher e filhos como assessores parlamentares. A França permite que políticos empreguem familiares, mas Fillon ainda não apresentou provas convincentes de que os serviços contratados foram de fato prestados. O escândalo fez murchar suas intenções de voto, estagnadas em 20% no fim de março.
Já no ps, afetado pela impopularidade de Hollande, a candidatura de Benoît Hamon sequer chegou a decolar. De nada adiantou o presidenciável apresentar propostas ousadas, como a instituição de um programa de renda básica universal de 750 euros (cerca de 2 500 reais), o abandono progressivo da energia nuclear e a legalização da maconha. Com a sangria de votos para Macron, mas também para Jean-Luc Mélenchon, que lidera uma coalizão de esquerda e aparece à frente de Hamon nas pesquisas, o Partido Socialista está indo a pique.
O quadro eleitoral – uma espécie de coleção de azarões – traduz o que o historiador Jean Garrigues definiu como “uma grande ruptura entre os eleitores e os políticos”. Parte dessa crise se explica por fatores externos à política partidária. “Estamos diante das consequências de uma longa depressão da economia mundial e de mudanças civilizacionais importantes desde os anos 70, que envolvem a passagem a uma economia desindustrializada, mundializada e digitalizada”, afirmou.
Talvez por isso a disputa ainda se mostre muito incerta. As pesquisas dizem que quatro em cada dez eleitores ainda estão indecisos, e 35% simplesmente não pretendem comparecer às urnas. O eleitorado de Macron é especialmente volátil – um em cada dois eleitores declarados afirma que ainda pode mudar o voto. “Não devemos excluir nenhum cenário”, alertou Garrigues.
Quem quer que ganhe o segundo turno, que acontece em 7 de maio, terá vencido apenas a primeira batalha. Um mês depois, os franceses voltam às urnas, dessa vez para eleger os deputados da Assembleia Nacional. O resultado será determinante para o novo presidente, que corre o risco de começar o mandato em coabitação com um primeiro-ministro de oposição caso não consiga obter a maioria no Parlamento.
A tarefa não será trivial para os candidatos favoritos. “Como Marine Le Pen é antissistema e Emmanuel Macron é uma novidade, ambos devem ter dificuldades para obter maioria parlamentar”, disse à piauí o cientista político Dominique Reynié, professor em SciencesPo. “A probabilidade de que a eleição presidencial não resolva totalmente a questão do poder é bastante elevada”, avaliou o pesquisador.
Nove furgões de polícia estavam estacionados em fila diante da casa de shows onde Marine Le Pen faria um comício na tarde de 26 de março, um domingo, em Lille, no norte da França. Policiais armados de fuzis circulavam pelo entorno, e havia um duplo controle de segurança na entrada.
O policiamento ostensivo estava longe de ser o único ponto de contraste com o comício de Macron três dias antes em Dijon. Em Lille, os militantes de Le Pen estavam também mais animados; dentro da sala de espetáculo, reinava a atmosfera de uma partida de futebol. Antes de a candidata entrar em cena, cantaram A Marselhesa espontaneamente. Durante o discurso, vaiaram cada menção ao islamismo e vibraram quando ela mencionou sua visita a Vladimir Putin na antevéspera. Quando a candidata falava em imigração, um coro invariavelmente se formava, no ritmo de um canto onipresente nos estádios franceses: On est chez nous! On est chez nous! (Estamos em nossa casa.)
Le Pen lembrou que seus principais concorrentes já tinham passado pelo poder, com resultados pífios. Queriam mais participação na União Europeia, ela disse, e portanto menos soberania nacional. “Minha escolha é outra: eu quero mais França.” Rejeitou a “tutela orçamentária” de Bruxelas e reivindicou para a França o direito de controlar suas fronteiras. “Não queremos os imigrantes de madame Merkel”, protestou. Concluiu sua fala demonizando a globalização que “martiriza a França” e rouba os empregos de sua gente.
O discurso de Le Pen ressoa em eleitores como em funcionário aposentado da Renault com quem conversei antes do comício. Costumava votar no Partido Comunista. Mudou de campo há dez anos, e hoje é filiado ao FN. Disse que está farto dos socialistas (“Venderam a França”) e dos republicanos (“Uma vergonha para o país”). Perguntei-lhe se achava que Le Pen tinha chance de ganhar este ano. “Você não viu os Estados Unidos?”, respondeu.
* – Na versão impressa, piauí divulgou que o número de representantes era de apenas um
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