Steinmetz, no escritório em Tel Aviv: em novembro, o israelense mostrou que sua disposição para a briga é infindável ao contratar os serviços do ex-ministro da Justiça, Sergio Moro CREDITO: ARQUIVO PESSOAL
O bilionário do barulho
Quem é o empresário israelense que se envolveu num caso internacional de corrupção e agora tenta arrastar com ele a maior mineradora do Brasil
Consuelo Dieguez | Edição 171, Dezembro 2020
A Benjamin Prime é uma conhecida steak house situada entre duas das mais famosas avenidas de Nova York, a Madison e a Park. A decoração aconchegante – sofás de couro castanho-escuro, mesas com toalhas de linho branco, paredes recobertas por lambris – convida a longas conversas. Foi para lá que o consultor na área de mineração, o economista José Carlos Martins, rumou, numa noite fria de fevereiro deste ano, horas depois de ter desembarcado na cidade, vindo de São Paulo. Martins, que fora durante dez anos, entre 2004 e 2014, um dos mais influentes diretores da Vale, a terceira maior mineradora do mundo, tinha um jantar agendado com Alexander Miller, executivo da Mersus Energy, uma empresa norte-americana que estava interessada em fazer negócios na América do Sul. Martins estava animado com o encontro.
Depois de alguns anos fora do mercado, o economista fora sondado pela Mersus para um trabalho especialmente atraente: uma consultoria em um projeto de mineração no Peru, pela qual receberia 10 milhões de dólares. Os executivos da Mersus queriam ter conversas pessoais com Martins antes de fechar o negócio, e regalaram o consultor com alguns afagos. Pagaram a passagem de classe executiva, dois dias em hotel cinco estrelas, motorista particular, almoços e jantares em locais refinados. Na Benjamin Prime, Miller e Martins comeram a especialidade da casa – o sirloin steak –, beberam vinho tinto e trocaram cartões e informações.
O que Martins não suspeitava é que, à exceção do restaurante, do steak e do vinho, tudo ali era falso. A Mersus Energy não existia, a proposta de consultoria no Peru também não existia e até o cartão de visitas era falso. Alexander Miller era um nome fictício. O homem com quem Martins conversou durante quase três horas era, na verdade, um investigador da Black Cube, uma das mais agressivas agências privadas de espionagem do mundo, com sede em Israel e escritórios em Londres e Madri. Aquele encontro era uma armadilha.
O bate-papo no restaurante nova-iorquino foi gravado em áudio e vídeo – e o registro dos diálogos mostra que Martins acabou falando mais do que deveria. Empolgado com a conversa, confidenciou que a Vale realmente desconfiava que havia irregularidades nos negócios do bilionário israelense Benjamin Steinmetz, ou Beny, quando ganhou a concessão em Simandou, uma das maiores minas de ferro ainda inexploradas do mundo, situada na República da Guiné, um país pequeno, miserável e corrupto, na costa ocidental da África.[1] Segundo Martins, mesmo com as suspeitas de irregularidades, a Vale aceitou associar-se a Steinmetz no projeto de exploração da mina, em 2010. “Nós sabíamos que o negócio cheirava mal”, disse Martins. Era exatamente isso que o investigador fora pago para ouvir.
A declaração de Martins foi direto para o balaio de provas que Steinmetz reuniu para reabrir um processo contra a Vale, em Londres e em Nova York. Quando a sociedade entre o israelense e a mineradora brasileira naufragou definitivamente em 2015, a Vale, sentindo-se lesada pelo ex-sócio, recorreu ao Tribunal de Arbitragem Internacional (LCIA, na sigla em inglês), em Londres. No ano passado, depois de cinco anos de uma disputa que já consumira cerca de 100 milhões de dólares de cada parte, o LCIA deu razão à Vale e determinou que Steinmetz indenizasse a mineradora em 2,2 bilhões de dólares, referentes ao dinheiro já investido mais juros e mora. Como o pagamento está demorando a ser feito, o LCIA, atendendo a um pedido da Vale, mandou congelar os bens de Steinmetz e de cinco diretores do Beny Steinmetz Group Resources (BSGR), um dos braços de seu grupo empresarial. Até hoje, nenhum deles pagou nada.
Com o bloqueio do seu patrimônio, Steinmetz está proibido de se desfazer de seus bens e tem um limite semanal de saque em suas contas bancárias. Dono de uma fortuna estimada em 1,2 bilhão de dólares pela revista Forbes, ele possui um jato executivo e um iate luxuoso – quando conversei com ele pela primeira vez, por videoconferência, em 29 de julho, o empresário estava a bordo do iate, próximo a uma ilha do Mediterrâneo. Tem propriedades em Israel, Suíça, França e Inglaterra. Sua mulher e as mulheres de seus sócios foram formalmente avisadas do bloqueio dos bens para evitar a manobra de transferir as propriedades para o nome delas ou de laranjas. Enfurecido com o congelamento dos bens, Steinmetz resolveu ir à forra contra a Vale. “Não me deixo acuar. Eu vou provar que fui vítima de uma injustiça”, me disse.
Desde então, Steinmetz tenta reabrir o caso para demonstrar a injustiça, usando como base um conjunto insólito de provas. O israelense não está empenhado em revelar a lisura dos seus negócios na África, mas sim em provar que a mineradora brasileira sabia das irregularidades cometidas na obtenção da licença para explorar a mina de ferro na Guiné – e, apesar disso, decidiu participar. Sendo assim, a mineradora não poderia, agora, reclamar de perdas. Steinmetz, no entanto, não admite ter cometido qualquer irregularidade no negócio. Criou, desse modo, uma lógica extraordinária. Ao mesmo tempo em que afirma ser um empresário correto e honesto, ele quer provar que a Vale sabia que seus negócios não eram exatamente um exemplo de correção e honestidade. E, para comprovar a conivência da Vale com as irregularidades, Steinmetz contatou a Black Cube em dezembro de 2019. Martins foi o primeiro a cair na cilada.
O segundo foi o economista Alex Monteiro, que ocupou um posto relevante na área financeira da mineradora. No começo do ano, um agente da Black Cube, usando o nome fictício de Rodrigo Donoso, entrou em contato com Monteiro. Desta vez, o agente se fez passar por representante de um fundo de investimento no Reino Unido, com interesse em investir em novas companhias de mineração no Peru e no Brasil. A proposta era para que Monteiro virasse membro do conselho de uma dessas empresas*. O assunto deveria ser discutido em Buenos Aires, onde este tipo de gravação de agências de espionagem não tem limites rígidos, ao contrário do Brasil. Com a chegada da pandemia, no entanto, a conversa acabou ocorrendo via Skype. Segundo a gravação, Monteiro disse que, embora uma auditoria da Vale não tenha encontrado nenhuma anormalidade na BSGR, “havia aquele cheiro de que alguma coisa tinha sido feita de maneira errada”.
O israelense acredita que as declarações de Martins e Monteiro – e de advogados da Vale, também secretamente gravados pela Black Cube – são provas suficientes para continuar enfrentando a mineradora judicialmente. “Eu sou uma formiga contra um elefante. Mas eu não tenho medo da Vale”, disse Steinmetz, na nossa primeira conversa.
Beny Steinmetz tem 64 anos, olhos azuis, cabelos um pouco grisalhos e porte de esportista. O rosto bronzeado, com alguns vincos, faz lembrar o de um aventureiro ao estilo Indiana Jones. Ele raramente dá entrevistas e é muito cioso de sua privacidade. Na nossa primeira conversa, ele estava no que parecia ser o seu escritório em um dos andares de seu iate. Vestia uma camiseta polo azul-clara, um pouco surrada, própria de quem está relaxando em casa. Sua expressão, porém, era séria e desconfiada. Quando lhe pedi que falasse mais alto e mais devagar, para que eu pudesse entendê-lo melhor, demonstrou senso de humor. Disse, em inglês: “Deixo para falar rápido e baixo quando não quiser responder alguma pergunta”, e esboçou um sorriso.
Steinmetz está casado com a mesma mulher, Agnes, desde os anos 1980. Eles se conheceram na Bélgica, onde moraram durante quase duas décadas, mudaram-se para Israel em 1986. O casal tem duas filhas e dois filhos. Sem ser perguntado, ele informa a profissão de cada um, em ordem cronológica: uma artista plástica, um doutorando em filosofia, uma psicóloga e um operador de fundo de investimentos na Inglaterra. Resume assim seu estilo de vida: “Gosto de esportes, de todos eles. De esquiar, nadar, andar de bicicleta”, contou. O seu maior prazer, contudo, é trabalhar. “Trabalho o tempo todo. Adoro trabalhar. Agora, na pandemia, fico o tempo todo ao telefone, ou vendo e-mails, ou fazendo videoconferências.” E, para demonstrar o quanto é reservado, completa: “Você não me verá gastando dinheiro em cassinos ou bebendo até altas horas em restaurantes caros e famosos.”
Apesar do seu apego à discrição, Steinmetz é bastante conhecido pelos seus negócios chamativos. Enriqueceu com o comércio de diamantes, tornou-se dono de minas na África, expandiu as atividades para o setor imobiliário e financeiro na Rússia e em países da Europa Oriental, mas sua estrutura corporativa é tão confusa que é praticamente impossível rastreá-la. A sede da BSGR fica na ilha de Guernsey, um paraíso fiscal no Canal da Mancha. Ele já foi preso por sonegação de imposto em Israel. É frequentemente descrito como um “aventureiro suspeito” e acusado de manter laços com o Mossad, o serviço secreto de Israel, cujas conexões usaria para espionar concorrentes. Ele se defende dizendo que o boato surgiu porque Asher Avidan, ex-executivo da BSGR na Guiné, pertenceu ao serviço secreto de segurança interna de Israel, o Shin Bet.
Steinmetz tem poucos amigos, “mas suficientes”. Alguns deles vêm da época de infância. “Eles não acreditam nas mentiras que contam sobre mim”, disse. Entre os famosos, citou apenas Nicolas Sarkozy, ex-presidente da França. “Eu não escolho meus amigos por suas posições políticas.” Porém suas conexões incluem também o ex-primeiro-ministro de Israel Ehud Olmert, que depois de deixar o governo foi preso por suborno e obstrução de Justiça. Mas foi na República da Guiné que Steinmetz teve relações tão temerárias com o poder local que agora está condenado a pagar uma indenização bilionária à Vale.
A história começou em 2008, quando Beny Steinmetz, já então um bilionário conhecido, surpreendeu o mundo da mineração ao conseguir os direitos de explorar os blocos 1 e 2 da mina de Simandou, na região sudeste da Guiné. Na época, o país era governado pelo ditador Lansana Conté, que pouco antes de morrer cassou metade da concessão de Simandou e a transferiu para Steinmetz. Até então, a concessão estava nas mãos da Rio Tinto, a gigante anglo-australiana, mas o governo da Guiné alegou que a mineradora estava demorando demais para explorar a mina. E repassou a licença para Steinmetz.
A notícia causou uma certa surpresa porque o israelense conhecia a mineração de diamante, bauxita e níquel, mas era um neófito na exploração de minério de ferro. Além disso, pagou um valor considerado irrisório, apenas 160 milhões de dólares, pelos direitos de parte da mina. Apenas dois anos depois, em 2010, conseguiu vender 51% de sua licença para a Vale com uma valorização estratosférica: 2,5 bilhões de dólares, que seriam desembolsados em cinco parcelas, conforme o andamento do projeto. A primeira parcela foi de 500 milhões de dólares, pagos na largada do negócio. Juntos, o israelense e a Vale formaram a joint venture VBG, iniciais de Vale BSGR Guinea.
A sociedade com a Vale se deu em termos heterodoxos. A mineradora pagou os 500 milhões de dólares mesmo sem ter algumas garantias básicas da viabilidade do projeto. Uma delas era de que pudesse escoar o minério pelo porto da vizinha Libéria, muito mais próximo de Simandou do que o porto da Guiné. Steinmetz prometera, de boca, que a passagem seria autorizada, mesmo que nenhum governante da Guiné tivesse concordado em abrir mão de fazer o escoamento pelo seu próprio país. A Vale também assumiu o compromisso de bancar sozinha, sem qualquer contrapartida do sócio israelense, todo o investimento necessário para explorar a mina. O acordo despertou a suspeita inicial de que o israelense era apenas um atravessador do negócio, e nunca tivera a intenção real de explorar o minério de ferro.
Pouco depois da formação da VBG, as coisas começaram a complicar. A Guiné fez suas primeiras eleições democráticas desde os anos 1950, e o vitorioso foi o advogado Alpha Condé. Exilado por anos a fio na França, Condé estudara na Sorbonne, tinha amigos influentes, como George Soros, o bilionário financista húngaro, e era considerado uma esperança de modernidade e ética para a Guiné. Chegou a dizer que tentaria ser o “Nelson Mandela da Guiné”. Ao assumir o governo, tomou as primeiras providências para rever o contrato de exploração de Simandou. Dizia que o governo anterior, autoritário e corrupto, espoliara um patrimônio natural do povo guineense ao conceder parte da mina por 160 milhões de dólares e desconfiava que o negócio fora azeitado com suborno.
Com a mudança de comando na Guiné, a Vale e seu sócio acharam que precisavam se aproximar de Condé. Em dezembro de 2010, no dia seguinte à posse do novo presidente, Steinmetz e o então presidente da Vale, Roger Agnelli, desembarcaram em Conacri, capital da Guiné, para reunir-se com Condé. Foi um encontro amigável, no qual o guineense demonstrou interesse em conhecer o então presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, que no mês seguinte passaria a faixa para Dilma Rousseff. Agnelli foi rápido em atender o desejo de Condé. Em fevereiro de 2011, Lula chegou a Conacri para uma visita. No almoço em sua homenagem, Condé evitou que Steinmetz sentasse à mesa que ele compartilhava com Lula e Agnelli. O gesto, ainda que discreto, não passou despercebido pelos presentes. Era, para a Vale, o primeiro sinal de que seu sócio israelense não era figura bem-vinda para o novo governo.
Entre as primeiras medidas de seu governo, Condé determinou que todas as concessões minerárias do país, assim como a própria lei mineral em vigor, fossem revistas. Movido pelas desconfianças de suborno, mandou abrir uma investigação específica sobre o negócio em Simandou. Por sugestão de Soros, contratou especialistas estrangeiros para avaliar e investigar o caso, de modo a tirar o assunto da órbita de influência da corrupta elite local. Os investigadores descobriram que, antes de ganhar a concessão de Simandou, um executivo da BSGR presenteara o antigo ditador com um relógio cravejado de diamantes, no valor de 60 mil dólares (a empresa nega). Também descobriram que a BSGR contratara um intermediador francês, Frédéric Cilins, para se aproximar de uma das quatro esposas do ditador, Mamadie Touré, cujo meio-irmão acabou sendo contratado como relações públicas da BSGR Guiné (o país tem maioria muçulmana e a poligamia é permitida).
Quando o ditador morreu, Mamadie Touré fugiu para os Estados Unidos e instalou-se numa mansão em Jacksonville, na Flórida. As suspeitas de que o ditador e sua quarta esposa foram subornados ganharam corpo quando os investigadores rastrearam contas de Mamadie Touré. Identificaram que a empresa dela, a Matinda, tinha participação em uma companhia chamada Pentler Holdings Ltd, que, por sua vez, assinara diversos acordos com a BSGR na Guiné. Ficou claro para os investigadores que Mamadie Touré e Steinmetz faziam negócios através da Pentler.
Em abril de 2013, apareceram mais provas. O FBI, a pedido dos investigadores na Guiné, armou um flagrante no Aeroporto Internacional de Miami, na Flórida. Frédéric Cilins voara até Miami para encontrar-se com Touré. Ela, que já estava colaborando com o FBI, foi para o encontro com um microfone oculto. Os agentes também instalaram uma câmera oculta. Ao desembarcar, Cilins conversou com Touré num bar no próprio aeroporto. Na conversa, gravada e filmada, Cilins tentou suborná-la para que destruísse os documentos que comprovavam suas ligações com a BSGR. Chegou a dizer que estava ali por ordem de Steinmetz. Cilins foi preso no próprio aeroporto, acusado de oferecer suborno e tentar destruir provas. Ficou dois anos preso em Nova York, mas nunca denunciou Steinmetz. (Hoje, mora na França e mantém estreito contato com o empresário e executivos da BSGR.)
No curso da investigação, os agentes ainda descobriram que os laços entre a BSGR Guiné e Mamadie Touré vinham de longe. Testemunhas disseram que, já em 2006, Asher Avidan, o ex-executivo da BSGR na Guiné, teve encontro com Touré para discutir o negócio da mina de Simandou, ao qual ela se referia como “meu projeto”. Em fevereiro do ano seguinte, segundo consta no processo jurídico que resultou da investigação, Steinmetz obteve uma licença para explorar urânio na Guiné graças à intervenção de Touré. A prova veio num acordo societário assinado quatro meses depois, em junho de 2007, entre a BSGR Guiné e a Matinda, de Touré. Nos termos do acordo, a Matinda passava a ter 5% da empresa do israelense, como “recompensa” pela assistência prestada na permissão da mina de urânio.
Em fevereiro de 2011, antes de todas as descobertas dos investigadores, o novo governo de Condé informou a Vale e a BSGR de que, caso quisessem continuar em Simandou, deveriam se adequar à nova legislação mineral e pagar 1,25 bilhão de dólares. A Vale e Steinmetz rejeitaram a exigência. Em março, porém, o financista George Soros, que se tornara um conselheiro informal do presidente Condé, procurou a Vale. Informou que, mediante um pagamento de 250 milhões de dólares, e não mais de 1,25 bilhão, a mineradora poderia manter o direito de explorar a mina de Simandou e escoar a produção pela Libéria.
A Vale concordou. A influência de Soros era tal que o memorando de entendimento entre a Guiné e a Vale não seria assinado pelo governo do país, mas sim pela ONG criada pelo financista, a Open Society, uma rede internacional de entidades que apoiam projetos anticorrupção, de democratização e de mídia independente. Na hora de fechar o negócio, porém, Soros anunciou que o preço da garantia de explorar Simandou e exportar o minério pelo país vizinho subira para 500 milhões de dólares. Dessa vez, a Vale não aceitou.
Um mês depois, em abril de 2011, a presidente Dilma Rousseff forçou a demissão de Roger Agnelli do comando da Vale, substituindo-o por Murilo Ferreira, que trabalhara dez anos na mineradora e de onde saíra por desavenças com o antecessor. No dia 6 de junho, Ferreira recebeu um e-mail de Eduardo Ledsham, então diretor executivo da companhia. Ledsham queria informá-lo dos bastidores das conversas com Soros. “Murilo, não sei se havia comentado com você, mas eu e o Roger estivemos com o Soros em Londres”, começou ele, no e-mail ao qual a piauí teve acesso. “Após uma semana, depois da minuta do acordo pronta, ele [Soros] mudou de posição.” Depois de explicar que o pagamento pulara de 250 milhões para 500 milhões dólares, Ledsham termina falando da influência de Soros: “Claramente, ele tem uma proxi-midade com o presidente Alpha, mas não tem mandato para falar em seu nome.”
Em resposta, Ferreira contou que Soros havia lhe telefonado naquele mesmo dia 6 de junho. Na conversa, segundo Ferreira relatou em seu e-mail, o financista húngaro informou que Condé lhe pedira para reforçar o interesse da Guiné em manter negócios com a Vale e revelou que havia uma investigação em curso para averiguar suspeitas de que Steinmetz pagara suborno para obter a licença de Simandou. Por tudo isso, Soros disse que o governo da Guiné queria abrir “um canal paralelo de negociação”. Ferreira se limitou a dizer que os assuntos da Vale seriam tratados diretamente com Condé. Em conversas com pessoas mais próximas, comentou que não tinha apreço por Soros, “uma pessoa que ganha dinheiro especulando em cima da fragilidade dos outros”, e que nunca teve a intenção de prestigiar sua interferência. “Veja se uma empresa como a Vale ia precisar da intermediação de Soros para falar com o presidente da Guiné”, chegou a dizer.
A Vale não fez negócio, mas a Rio Tinto fez. Soros instou a mineradora anglo-australiana a pagar 700 milhões de dólares para manter as licenças que já possuía para explorar Simandou. A Rio Tinto pagou. Uma reportagem do jornal francês Libération, publicada em julho deste ano, intitulada Guiné: O Mistério dos 700 Milhões de Dólares da Rio Tinto, revelou que cerca de 120 milhões de dólares referentes ao pagamento feito pela empresa anglo-australiana não foram para os cofres do governo da Guiné e não se sabe até hoje o paradeiro do dinheiro. A Rio Tinto, além disso, é investigada na Justiça inglesa por um esquema de fraude na Guiné. Segundo reportagem do jornal inglês Financial Times, a mineradora é acusada de ter pagado 10,5 milhões de dólares ao francês François Combret, um banqueiro influente junto ao governo da Guiné, para garantir a concessão dos dois blocos em Simandou.
A crítica da Vale a Soros limita-se, no entanto, à ingerência excessiva dele no governo da Guiné. Segundo o depoimento de Roger Agnelli ao Tribunal Internacional de Arbitragem, a intenção de Soros era conseguir que as mineradoras pagassem mais impostos e mais royalties ao Tesouro do país pela exploração mineral, não havendo notícia de que quisesse se beneficiar pessoalmente do aumento desses tributos. No entanto, como sócio da Vale, Soros já ganhara um bom dinheiro na Guiné com a valorização das ações da mineradora decorrente da joint-venture com a BSGR**.
Em 2014, depois da negativa da Vale em pagar a fatura apresentada por Soros, depois das provas reunidas pelos agentes do FBI, depois da comprovação das ligações entre Steinmetz e uma das mulheres do ex-ditador, o presidente Alpha Condé cancelou a concessão da mina de Simandou dada à BSGR e à Vale. Por extensão, inviabilizou a joint venture VBG, formada entre o israelense e a mineradora brasileira. A essa altura, além da primeira parcela de 500 milhões de dólares pagos para Steinmetz, a Vale já tinha investido cerca de 700 milhões de dólares nos preparativos para a exploração da mina.
Na versão de Steinmetz, a investigação da Guiné foi uma grande conspiração contra ele para tirá-lo de Simandou. E apontou os conspiradores: o presidente Alpha Condé, o financista George Soros e sua ONG, o FBI, a Rio Tinto e a “imprensa ativista”. “Está claro para mim que, desde que tomou posse, Condé, insuflado por Soros, queria me tirar a concessão. É simples assim. Eles não me queriam no país”, afirmou. “Soros me persegue, ele me difama para os amigos dele da imprensa, ele coloca a opinião pública contra mim”, disse. Segundo ele, a Vale, por sua vez, aproveitou-se de toda a confusão para pular fora de um negócio que, àquela altura, já não mais lhe interessava e, por má-fé, recorreu ao LCIA de Londres.
Steinmetz garante que nunca pagou suborno a Mamadie Touré, uma das viúvas do ex-ditador. Diz que ela mentiu porque o FBI ameaçou expulsá-la dos Estados Unidos. Em entrevista online em outubro, Asher Avidan também disse que nunca pagou nada para Touré. “Ela é louca”, acusou. Para ilustrar sua afirmação, contou que ela costumava andar por Conacri, capital da Guiné, acompanhada de uma menina albina, chamada Ema, a quem ela atribuía poderes sobrenaturais. “Touré tinha muito poder naquele país. As pessoas tinham medo dela”, falou. “Como podem ter dado ouvidos a uma pessoa como essa?”, questionou, indignado. Perguntei por que, então, ele tivera reuniões com ela. Um pouco desconcertado, disse que Touré tinha influência e falar com ela era uma espécie de condição para se estabelecer no país.
Para Steinmetz, no entanto, o papel de grande vilão da história é de George Soros, que forçou o governo da Guiné a inviabilizar um negócio bom para todos – “Bom para a Vale, para nós, para a Guiné, para o povo da Guiné.” Ele diz que Soros o persegue desde a década de 1990, quando ambos disputaram a compra de uma empresa telefônica na Rússia. Soros levou a melhor, mas, com a crise financeira de 1998, o negócio fez água. Alguém então disse a Soros que Steinmetz estava rindo de seu fracasso (o que o israelense nega). Além dessa razão “infantil”, ele se diz perseguido por Soros porque é judeu. “Soros também é judeu, mas odeia Israel. Ele apoia a causa palestina. Eu sou a corporificação de tudo que ele odeia porque sou um empresário judeu bem-sucedido, ideologicamente identificado com a direita e que gosta do Estado de Israel.”
Com o tom de voz um pouco mais alterado, continuou seu ataque ao rival. “Você acha que ele é um filantropo? Eu acho que ele usa a filantropia para ganhar dinheiro. O que ele construiu? Veja, ele tem um fundo de investimento bilionário que cresceu apostando contra as moedas de países fracos. Foi assim na crise da Ásia, na crise da Rússia. Ele também apostou contra o Banco da Inglaterra. E depois vem dizer que é muito bonzinho? Para quem?”, falou. Fez uma breve pausa e voltou à carga. “Ele nunca dá dinheiro para as pessoas dos países onde entra. Só financia ONGs para que ataquem os governos. Ou para causas de refugiados. Ele quer o mundo aberto para poder fazer os negócios dele.”
Na indústria da mineração, contudo, é Steinmetz quem tem fama de ser um negociador ardiloso, disposto a tudo para atingir seus objetivos. Ele, novamente, culpou Soros pela imagem ruim que a imprensa construiu dele. “Soros é um demônio. E colocou toda a imprensa americana contra mim porque doa muito dinheiro para essa imprensa ativista. Ele é um psicopata. E se acha um grande alfa, usando a rede de relacionamentos contra mim.”
Lembrei que ele está brigando com um sujeito que tinha apoio de líderes mundiais, como Tony Blair, ex-primeiro ministro da Inglaterra, e Barack Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, além de contar com a parceria de entidades internacionais de direitos humanos. “Foi ele que resolveu brigar comigo”, defendeu-se. “Ele é que gosta de brigar, não eu.” Então valeu-se de uma metáfora pugilista para se explicar. “Eu não tinha escolha. Se você está na rua e alguém bate em você, o que você pode fazer? Só existem duas alternativas. Ou apanha e foge, ou você reage e bate de volta. Eu voltei e bati.”
Soros não quis entrar na discussão. Por meio de seu porta-voz, Michael Vachon, mandou dizer que ele próprio e a Open Society “têm uma longa e bem documentada história de programas de financiamento anticorrupção ao redor do mundo”. E completou: “As acusações do senhor Steinmetz são distorcidas ou falsas.”
No Brasil, quando a sociedade com Steinmetz naufragou, a Vale era outra. Desde maio de 2011, a empresa estava sob o comando de Murilo Ferreira, de quem o israelense nunca conseguiu se aproximar. Ele gostava de Roger Agnelli, que morreu num desastre de avião ao lado da mulher, dois filhos, o genro e uma nora, em março de 2016. Para Steinmetz, Agnelli era “um líder e visionário”, e seu sucessor, “um burocrata”. “Se eu fosse definir os dois, eu diria que Roger era o sujeito que tomava uísque. Murilo, copo de leite”, disse. A antipatia é recíproca. Ferreira nunca confiou no israelense, um tipo que ele colocava na categoria de “gente enrolada”, e só falava com Steinmetz por meio de advogados.
Agnelli era um entusiasta do negócio na Guiné, apesar de todos os indícios de que a exploração da mina de Simandou fosse um vespeiro. O projeto era caro, pois demandaria um investimento da ordem de 20 bilhões de dólares, e a infraestrutura da Guiné era precaríssima. Não havia ferrovia, nem porto capazes de escoar a produção. As opções eram todas complexas. Ou se construiria aquela ferrovia, de 400 km de extensão, pela Libéria, país cujo porto tem águas profundas capazes de receber navios de porte. Ou, caso o governo da Guiné não autorizasse o escoamento do minério pelo país vizinho por causa das rivalidades e também pela instabilidade política na região da mina, a saída seria construir uma ferrovia na própria Guiné, muito mais cara e extensa, com uns 650 km, e ainda se faria um molhe de 20 km mar adentro no porto para driblar a pouca profundidade das suas águas. Além de tudo, o sócio da Vale não tinha boa fama e a Guiné era um país corrupto.
Mas a mina de Simandou tinha um ferro de altíssima qualidade, estava inteiramente inexplorada, os chineses estavam de olho na sua riqueza e o governo brasileiro, acionista majoritário da Vale, queria se expandir na África. Agnelli achou que não podia perder a oportunidade e usou toda sua liderança, de estilo quase imperial, para convencer a diretoria a aprovar o negócio. Mas um dos executivos na época, Fabio Barbosa, da área financeira, fez uma oposição implacável. Achava que o negócio era uma ousadia temerária, tanto que, no dia em que o contrato foi assinado, em solenidade na sede da Vale, no Rio de Janeiro, com a presença de Steinmetz e Agnelli, Barbosa recusou-se a colocar seu nome no documento e orientou seus subordinados a fazerem o mesmo. (Fabio Barbosa morreu de câncer em novembro de 2015.)
Nem todos achavam que era um mau negócio. Na época, Sérgio Rosa, presidente do poderoso fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, maior acionista da Vale, também presidia o Conselho de Administração da mineradora. Ele achou que era um bom negócio. Afinal, Agnelli, que vinha apresentando resultados espetaculares no comando da empresa, era um defensor empolgado da ideia. Eduardo Bartolomeo, atual diretor-presidente da Vale, também aprovou o negócio. Eduardo Ledsham e José Carlos Martins, idem. Na equipe de Steinmetz, os executivos da Vale eram chamados de Chihuahua Team, porque obedeciam todas as ordens de Agnelli. Numa conversa online, um deles afirmou: “Eles diziam sim para tudo o que o Roger queria. Eram seus cachorrinhos. ‘Sim, Roger’, ‘O que você quer, Roger?’, ‘Nós fazemos, Roger’.”
A investigação da Black Cube, no entanto, queria provar que a Vale sabia que se tratava de um negócio sujo, e não de um negócio ruim. As conversas gravadas com Martins – foram três no total – trouxeram elementos nesse sentido. Martins contou que, embora a Vale tivesse feito uma auditoria e não tivesse encontrado irregularidades na BSGR, o Conselho de Administração inteiro sabia das suspeitas. Segundo Martins, o próprio Agnelli alertou os conselheiros sobre as zonas de sombra, mas defendeu a sociedade com o israelense. “Toda a indústria da mineração queria aquele negócio e ninguém conseguiu. Por que o Beny conseguiria? Não apenas por causa dos seus olhos azuis”, disse o consultor, em uma conversa por Skype, em fevereiro, com o agente da Black Cube. Contou que ele mesmo chamou a atenção para esse detalhe. “Eu disse para o Conselho: ‘Olha, nós estamos entrando nesse negócio, mas estamos fechando nossos olhos.’” A resposta que ouviu, segundo disse Martins ao agente da Black Cube, foi: “O.k., podem ir em frente. Não nos contem mais nada. Façam o negócio.”
Sem saber que estava sendo gravado, Martins contou que esse diálogo não foi colocado na ata da reunião do Conselho para não causar problemas para seus membros. Na sua última conversa com o agente, ocorrida em março, Martins resumiu seu ponto de vista sobre o que Simandou representava para a mineradora brasileira, valendo-se de uma imagem grosseira. “Era como você pegar uma garota bonita. Você leva ela para o teu quarto. Ela está nua, maravilhosa e, então, ela diz: ‘Temos um problema porque eu tenho Aids, o.k.?’ Simandou”, disse ele, “era essa garota bonita com Aids.”
A versão de Martins, se confirmada, coloca todo o Conselho da Vale sob suspeita. Sérgio Rosa, presidente do Conselho na época, consultado sobre a versão de Martins, mandou uma resposta evasiva por WhatsApp. “Gosto do seu trabalho, mas você tem que ter cuidado para não ser usada.” Seu alerta era óbvio: o bilionário israelense estaria apenas querendo influenciar a imprensa para favorecer seu pleito e prejudicar a Vale. Oscar Camargo, o único que ainda permanece como conselheiro da mineradora, foi assertivo. Também via WhatsApp, disse que o assunto jamais fora colocado daquela forma. “Eu não participei, friso, de qualquer reunião do Conselho de Administração em que o Martins tenha assim se expressado. Peço que qualquer outro questionamento seja dirigido ao jurídico da Vale.”
O atual presidente da mineradora, Eduardo Bartolomeo, não comenta o caso. O advogado paulista David Rechulski, que representa os ex-executivos da Vale agora sob a artilharia de Steinmetz, concordou em falar depois de quatro meses de insistência. Constrangido, disse que Martins simplesmente fantasiou a história porque queria a consultoria de 10 milhões de dólares que estavam lhe oferecendo. “Ele dourou a pílula para o seu possível empregador.” Perguntei se dourar a pílula significa mentir. “Sim. Ele inventou parte da história, como faz muita gente que quer vitaminar o seu currículo. É constrangedor dizer isso, mas foi o que aconteceu.”
Martins me disse ter sido muito afetado psicologicamente por essa história. Ele não nega ter dito o que disse para o agente da Black Cube, mas afirma que não era verdade. Em um longo e-mail que me enviou em novembro, disse que não sabia estar sendo espionado e admitiu que exagerou na história com a intenção de “dar um colorido que achei oportuno para atingir o meu objetivo de obter a contratação oferecida”. E continuou: “Nunca imaginei que algumas colocações que foram, sim, exageradas, típicas de uma entrevista onde qualquer um busca sempre valorizar-se, pudessem ser exploradas fora do contexto de uma entrevista de recrutamento.”
Quem está familiarizado com o mundo dos negócios em países africanos diz que a Vale pode ter praticado o que alguns chamam de “jogo africano”. Consiste no seguinte: empresas menores, sobretudo da área de mineração e petróleo, obtêm concessões e vantagens por meio de transações em que corrompem altos funcionários. Encerrada essa etapa, as empresas vendem suas concessões para grandes mineradoras e petroleiras, que entram no negócio sem pedir detalhes das operações e sem sujar as mãos. “Assim, elas ficam livres de qualquer penalidade, caso se descubra algum ilícito na transação”, disse um advogado que trabalha com o governo da Guiné.
O advogado Scott Horton, do escritório DLA Pipper, especializado em apurar casos de corrupção no mundo todo, foi contratado pelo governo da Guiné, por sugestão de Soros, para investigar os meandros do negócio com Steinmetz. Sua equipe teve acesso à documentação interna da Vale, com o consentimento da mineradora. Depois de examinar a papelada, Horton e seu pessoal concluíram que a Vale acabou, querendo ou não, praticando o “jogo africano”. Os promotores que participaram da investigação na Suíça e rastrearam as contas bancárias do israelense têm entendimento semelhante. “É claro que o pessoal da Vale desconfiava, mas eles não tinham ideia de qual fora a mecânica da corrupção”, me disse um investigador da equipe de Horton, que pediu para não ser identificado porque seu contrato com o governo da Guiné exige sigilo sobre o caso. Ou seja, a Vale, me disse este investigador, não corrompeu, nem sabia como se dera a corrupção, mas, ao comprar 51% de participação no negócio, acabou se beneficiando do malfeito.
Steinmetz afirma que nunca ouviu falar em “jogo africano” e garante que obteve a licença de Simandou legalmente. Na nossa segunda conversa, em agosto, quando lhe perguntei se não era inconsistente que ele acusasse a Vale de saber que havia corrupção e ao mesmo tempo negasse a existência de corrupção, ele foi confuso. Disse que a Vale estava na Guiné desde 2006 e sabia com quem ele, Steinmetz, estava fazendo negócios. “Conacri é um lugar pequeno. Todo mundo sabe quem é quem nesse mercado. O que a Vale não pode alegar é que entrou na sociedade sem estar ciente de que haveria riscos.” Com sua declaração, como fez repetidamente em nossas três conversas, Steinmetz obscurece e confunde a diferença entre “risco” e “corrupção”.
As provas de Steinmetz recolhidas pela Black Cube talvez não tenham utilidade. Em outubro, um dos advogados da Vale em Londres, que preferiu não se identificar em razão do sigilo profissional, disse que Steinmetz está apenas fazendo barulho. “Não existe qualquer possibilidade de reabrirem o caso. O prazo de revisão da decisão é de trinta dias após a sentença, que saiu em abril do ano passado”, afirmou. “Beny fica criando histórias, procurando a imprensa, para chamar a atenção para um assunto que já está encerrado.” De acordo com o advogado, a maior razão para o LCIA não reabrir o processo, no entanto, é o fato de que os argumentos de Steinmetz já estão nos autos do processo. “As conclusões do tribunal foram de que Beny pagou propina e omitiu esta informação da Vale. Tudo o que a BSGR diz agora é lixo”, afirmou. “Ele quer dar um colorido ao caso, colocando espiões como James Bond para atrair a imprensa”, afirmou. “Mas tudo isso tem sido doloroso para os envolvidos”, admitiu. Para Martins, principalmente.
Steinmetz diz que tinha simpatia por Martins, mas não demonstra constrangimento por ter preparado uma cilada para o ex-executivo da Vale. “Era a única forma de provarmos que eles sabiam o que tinha acontecido”, disse. “Porque a Vale tinha a política de destruir documentos. Nós pedimos, durante o processo, os e-mails trocados entre os executivos naquela época, e eles alegaram que a política deles era destruir documentos um ano após os executivos deixarem a empresa.” (Atualmente, uma nova lei de transparência proíbe que empresas de capital aberto no Brasil destruam documentos antes de cinco anos.) Entre os ex-executivos da Vale, há uma indignação com os métodos de Steinmetz. Segundo um dos advogados que acompanham o caso em Nova York, promotores norte-americanos estão de olho nos “métodos intimidatórios” da Black Cube. “O Beny pode acabar sendo processado por utilizar esse tipo de espionagem”, me disse o advogado.
Dan Zorella, um israelense de aparência jovial, é o diretor executivo da agência. Ele tem cabelos castanhos cacheados, olhos claros e um rosto quase angelical, que contrasta com a ferocidade com que a Black Cube invade e expõe a privacidade de seus investigados. Mas, segundo advogados que já contrataram seus serviços, Zorella costuma garantir que seus métodos são 100% legais e a agência só atua em países cuja legislação aprova seu modo de atuar. Por isso, a Black Cube precisou atrair Martins para Nova York, que autoriza esse tipo de investigação, e pretendia levar Alex Monteiro para Buenos Aires, onde também seria legal gravá-lo secretamente. Se feitas em locais onde são proibidas, as gravações não podem ser usadas na Justiça.
A agência é uma potência mundial na área de espionagem, investigação de lavagem de dinheiro, corrupção e crime de colarinho branco. Emprega oitocentas pessoas, parte delas egressas do Mossad, das Forças Armadas e de serviços internos de investigação no país. É uma torre de Babel onde se falam quarenta idiomas. O nome da agência tornou-se conhecido no mundo ao ser contratada por Harvey Weinstein, o megaprodutor de Hollywood que lutava para se livrar de uma série de acusações de assédio sexual. Na época, agentes da Black Cube tentaram arrancar da atriz Rose McGowan, uma das acusadoras de Weinstein, alguma informação negando o assédio. A atriz chegou a se reunir várias vezes com uma espiã da agência, que se apresentou como advogada especializada em direitos das mulheres, mas nunca se contradisse. Weinstein foi condenado a 23 anos de prisão.
O sueco Dag Cramer é um dos executivos de Steinmetz cujos bens também estão bloqueados por decisão do Tribunal Internacional de Arbitragem. Ele participou do processo de dissolução da sociedade entre a Vale e a BSGR. No dia 16 de setembro, tivemos uma conversa pessoalmente, que se prolongou por cinco horas, no Rio de Janeiro. Cramer chegou acompanhado do advogado Renato Polillo, do escritório Warde Advogados, que assessora Steinmetz no Brasil. Com uma calça cinza, blazer cáqui, duas pulseiras de couro no pulso, Cramer parecia ter chegado de um safári, e não de Londres, onde mora.
Para ilustrar quem é Steinmetz, contou da conversa que tiveram quando ele completou dois anos na BSGR. Saíram para jantar e discutir sua performance. Embora estivesse garantindo bons resultados para a companhia, Cramer só ouviu críticas do patrão. Aborrecido, o sueco reclamou e pediu que Steinmetz falasse pelo menos alguma coisa positiva sobre ele. “Eu pensei que ele fosse dizer o.k., mas ele respondeu: ‘Você é um bebê? Se você for um bebê posso te dar um beijo. Ou podemos aproveitar melhor nosso tempo dizendo como você pode melhorar. Se eu achasse que você não era bom, você não estava sentado aqui.’” Cramer acha que foi uma grande lição. “Ele é a pessoa certa para estar no comando. Este é o Beny”, elogiou. Depois, explicou que não é o dinheiro que mais atrai Steinmetz. “Não é consumo de luxo que o fascina. Ele não é um sujeito que esbanja dinheiro como os russos, ou como muitos brasileiros que vi em São Paulo. Consumo ostensivo não é com ele. Ele gosta é do negócio, da competição”, diz.
Em concordância com a visão de Steinmetz, Cramer também acha que a Vale se aproveitou das circunstâncias para desfazer a sociedade com a BSGR. Como os preços do minério de ferro haviam caído, e a Vale conseguira uma licença para explorar uma mina em Carajás, no Pará, pela qual batalhava havia anos, a empresa não teria mais interesse em ficar na Guiné. Cramer contou que, numa reunião em Paris, no começo de 2013, na qual o advogado Scott Horton representou o presidente Alpha Condé, houve uma tentativa de acordo para dissolução da sociedade. Mas a mineradora brasileira teria se recusado a finalizar o negócio porque, segundo ele, o governo da Guiné encamparia a parte da BSGR e se tornaria sócio da Vale. “É claro que a Vale não ia querer se associar a um governo corrupto”, disse o executivo. “O governo da Guiné queria a nossa parte no negócio para ficar sócio da poderosa Vale. E a Vale, espertamente, aproveitou o impasse para sair e depois nos processar e recuperar o dinheiro que colocou lá.”
Os advogados da mineradora que participaram daquela reunião têm outra versão. Disseram que o acordo de extinção da sociedade não avançou porque a BSGR queria receber um ressarcimento. Em Paris, os advogados da Vale chegaram a consultar a sede da empresa no Rio de Janeiro, para saber se seria possível fazer algum pagamento a Steinmetz. A companhia disse não. Entendia que o israelense já havia recebido 500 milhões de dólares adiantados e que não havia sentido pagar mais nada. Sem acordo, a Vale foi obrigada a sair da Guiné, já que, segundo a condição de Condé, a mineradora só poderia continuar em Simandou caso se livrasse do sócio israelense.
O advogado Clovis Torres, que participou em nome da Vale da dissolução da sociedade, afirma: “Nós o processamos porque ele [Steinmetz] mentiu para nós. Perdemos a concessão por causa dele”, disse. “O Beny mente. Ele mentiu o tempo todo. Primeiro, quando fez o negócio com a Vale e garantiu, por escrito, não ter qualquer ilícito na transação.” Transparecendo irritação, Torres concluiu: “Durante as discussões no Tribunal de Arbitragem, a defesa dele continuou insistindo na lisura do processo de aquisição da mina. Agora que ele perdeu, vem dizer que corrompeu, mas que a Vale sabia? Isso é coisa de bandido.”
Na apuração desta reportagem, com frequência ouvi referências a alguma patologia psicológica. Para Steinmetz, Soros é um “psicopata”. Cramer, por sua vez, diz que seu patrão é um “sociopata”. “Na minha longa carreira de executivo, eu tenho encontrado presidentes, bilionários, banqueiros”, disse. “E tenho visto que, para ter sucesso pessoal, você precisa ser um sociopata, que eu defino não como um assassino, mas como alguém que está preparado para deixar a empatia de lado e fazer o que precisa ser feito, coisas que, na visão de muitas pessoas, são brutais.” Além disso, define ele, sociopatas são “ególatras e gostam muito de si mesmos”. Ele acha, inclusive, que existem “sociopatas do bem” e “sociopatas do mal”. Steinmetz está na primeira categoria, ao lado de Lula e de Agnelli. O presidente Alpha Condé, diz ele, está na categoria do mal.
A briga de Steinmetz com a Vale ainda deve durar algum tempo, já que o empresário não pretende desistir do processo. Mesmo que a ação não dê em nada, o barulho que o israelense faz, na visão de Clovis Torres, ex-diretor jurídico da Vale, é ruim para a imagem da mineradora. “A Vale é uma empresa aberta, com ações em Bolsa de Valores. É desagradável a companhia ficar exposta dessa maneira por causa de uma história que só causou prejuízo.” Steinmetz, em nossa última conversa, em outubro, anunciou, em tom de bravata. “Eu vou encurralar a Vale.”
Em novembro, Steinmetz mostrou que sua disposição para a briga é infindável. Ele contratou os serviços do ex–ministro da Justiça, Sergio Moro, que agora atua como advogado, para fazer um parecer mostrando que a Vale está errada e não tem direito ao ressarcimento dos 2,2 bilhões de dólares. Segundo o jornal O Globo, Moro cobrou, recentemente, 750 mil reais para elaborar três pareceres. Um deles é o de Steinmetz. Perguntei a Renato Polillo, advogado do israelense no Brasil, sobre o fundamento da tese de Moro. Ele se recusou a adiantar, mas me disse estar muito confiante na vitória do seu cliente e garantiu que eles têm ainda “muitas cartas na manga contra a mineradora”. Consultado, Moro alegou sigilo profissional e não quis falar sobre o assunto.
O presidente Alpha Condé, depois de mudar a Constituição da Guiné para permitir sua permanência no poder, acabou sendo reeleito pela terceira vez, agora em outubro. Ganhou sob protestos da oposição, que alega ter havido fraude no processo eleitoral. A economia do país está em frangalhos. A percepção de corrupção, segundo a Transparência Internacional, continua entre as mais altas do mundo. Condé não era, afinal, um novo Nelson Mandela.
Apesar de todas as desavenças, acusações e processos, Beny Steinmetz desembarcou em Conacri, na capital da Guiné, no ano passado. Levou junto seu amigo Nicolas Sarkozy. Queria fazer uma visita de cortesia a Condé. E conseguiu um resultado e tanto: assinou, com o presidente, um acordo provisório que retira todas as acusações de corrupção contra a BSGR na Guiné. Para completar, a Justiça do país encerrou o processo contra Mamadie Touré e os outros envolvidos no caso da mina. Steinmetz e Sarkozy foram recebidos com um longo tapete vermelho, estendido do jato até o saguão do aeroporto.
[1] A piauí_90, edição de março de 2014, publicou duas reportagens sobre o assunto. Uma, sob o título Contrato de Risco, narra como a Vale se associou à exploração da mina de minério de ferro na Guiné. Outra, sob o título O tesouro, o mercador, o ditador e a amante, reproduzida da revista The New Yorker, relata os bastidores da disputa pelo controle da mina.
*Trecho corrigido em relação à versão impressa, que informava que a proposta recebida por Alex Monteiro era uma consultoria de 10 milhões de dólares.
**Trecho corrigido em relação à versão impressa, que informava equivocadamente que George Soros investira em ações da joint venture entre a Vale e a BSGR.
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