A classe média americana do pós-guerra teve grandes cronistas. Mas quase todos focaram no vazio existencial de seres cerceados por uma prosperidade inócua. Roth seguiu outro caminho: deu profundidade àquele universo social FOTO_BOB PETERSON_THE LIFE IMAGES COLLECTION_GETTY IMAGES
O bom menino
Philip Roth foi menos um satirista do que um celebrante persuasivo da comunidade judaica em que se criou
Alejandro Chacoff | Edição flip_2018, Julho 2018
Conta-se que, enquanto estava preso em Jerusalém, à espera de seu julgamento por crimes contra a humanidade, o nazista Adolf Eichmann recebeu de um guarda uma cópia de Lolita. Leu o romance de Vladimir Nabokov e, dois dias depois, o devolveu com um ar de consternação. “Um livro muito desagradável”, Eichmann teria dito ao guarda. Aparentemente se ofendera com a obra.
Essa cena real – descrita brevemente por Hannah Arendt em seu livro-reportagem Eichmann em Jerusalém – parece extraída de um romance de Philip Roth. Um genocida nazista sem estômago para a ninfolepsia de Humbert Humbert é o tipo de cena absurda e potencialmente ofensiva que Roth sabia expandir e transformar em comédia. Em O Escritor Fantasma, ele usa o seu alter ego, Nathan Zuckerman, para descrever um mundo fictício onde Anne Frank sobrevive ao Holocausto e vive com uma identidade distinta nos Estados Unidos. Em Pastoral Americana, o pai judeu do protagonista barganha um contrato verbal com a sua nora católica para que a netinha cresça com algumas crenças judias. Em O Complexo de Portnoy, o narrador se masturba cheirando as calcinhas da irmã enquanto a mãe superprotetora tenta arrombar a porta do banheiro – uma imagem vagamente representativa dos tipos de riscos que Roth assumia como romancista no começo da carreira.
Roth é visto como o escritor judeu que rompe com o bom mocismo e os bons costumes, o patrono da sátira arriscada. De todos os rótulos explorados desde a sua morte, ocorrida em 22 de maio deste ano – o ermitão solitário e diligente; o autoficcionista obsessivo; o artista patriota, preocupado em desvendar a essência da nação –, o de satirista transgressor talvez tenha sido o mais repetido. A longevidade do rótulo é compreensível. As críticas de rabinos aos primeiros contos de Roth (historinhas cômicas ternas e brilhantes), os palavrões e o sucesso de vendas de O Complexo de Portnoy (publicado em 1969) são clarões publicitários na carreira de um escritor que depois faria um esforço cada vez maior para se isolar em sua casa de campo nos Berkshires, uma região montanhosa perto de Nova York. E o talento satírico de Roth é de fato incomparável: o seu humor é rico e polivalente, por vezes cáustico, por vezes acolhedor. Ironicamente, ele, um transgressor famoso, escaparia do dilema que aflige muitos humoristas atuais – o de se encontrarem num mundo em que a transgressão dos limites civilizatórios, de tão onipresente, deixou de ser transgressão e perdeu todo o humor, tornando-se apenas um reforço sem graça do status quo.
Ainda assim, há algo limitado, algo quase enganoso na imagem de Roth como um detonador dos bons costumes. Seus livros podem ser lidos como críticas mordazes às limitações e ansiedades impostas pela comunidade e pela família, mas poucos escritores evocam tão bem o apelo dessas mesmas instituições quanto Roth. Enquanto tenta se masturbar, Alexander Portnoy se irrita com as perseguições de sua mãe pela casa, mas o seu amor por ela é intenso e vai além de uma neurose freudiana – o título do primeiro capítulo do livro (“O personagem mais inesquecível que já conheci”) contém mais sinceridade do que ironia. Portnoy caçoa da constipação do pai, mas descreve com ternura e orgulho o trabalho dele como corretor de seguros (“Trabalhava feito um camelo – para um futuro que estava destinado a jamais atingir”). Swede Levov, o protagonista de Pastoral Americana, é um atleta talentoso e bonitão, espécie de homem cordial do subúrbio americano, admirado por professores e colegas. Para alguém de veia cômica, a tentação de satirizar um personagem assim seria alta; mas Roth o leva a sério, o disseca e acaba tratando-o como uma figura trágica e heroica.
Em Indignação, um romance menor e mais sombrio escrito já na velhice, Roth descreve a infância do protagonista, Marcus Messner, filho de um açougueiro kosher, num tom idílico, e a julgar pelas suas entrevistas, era assim que enxergava a própria infância em Newark: um lar superprotegido mas encantador; um lugar onde meninos judeus se educavam, discutiam beisebol e abraçavam as oportunidades econômicas do pós-guerra americano – oportunidades criadas pelo suor e sacrifício laboral de seus pais virtuosos.
Philip Roth era um bom moço. Sua voz, nos livros, era coloquial e sedutora, às vezes demoníaca e frequentemente profana; mas sua atitude, na vida como na literatura, era mais a de manter laços do que rompê-los. Henry James foi o seu primeiro herói literário. À primeira vista, os monólogos masturbatórios de Portnoy e os discursos raivosos de Mickey Sabbath parecem ter pouco a ver com as divagações de Isabel Archer, a protagonista de Retrato de uma Senhora. E certamente há muitas diferenças pessoais entre James, o aristocrata que adorava transitar pela alta sociedade de seu tempo, e Roth, o judeu de Newark que não tinha paciência para festas literárias. Mas leia o suficiente de cada autor e as similaridades logo aparecem: a preocupação meticulosa com a cadência; as frases longas e sinuosas, quase antianglo-saxãs na profusão de vírgulas e orações subordinadas; o interesse pelo arco da história, com subtramas que bifurcam e convergem sempre em favor de um conflito central e bem demarcado. Ambos foram formalistas obsessivos, embora Roth tenha sido mais monomaníaco, aventurando-se pouco em outros gêneros que não o romance.
Vista de relance, a carreira de Roth dá a impressão de ter seguido um trajeto relativamente tranquilo, apesar do tumulto causado por O Complexo de Portnoy. Aos 20 e poucos anos, manifestam-se os primeiros sinais de talento e, daí em diante, ele acumula prêmios, até chegar ao ápice da literatura americana na velhice. Mas esse pequeno resumo factual omite o fato de que, até o começo dos anos 90, quando começou a escrever uma sequência de romances históricos sobre os Estados Unidos – Pastoral Americana, Casei com um Comunista e A Marca Humana (além do inclassificável O Teatro de Sabbath) – o veredito sobre seu legado ainda estava em aberto.
O caminho até esses romances tardios foi na verdade longo e acidentado, feito de um exílio de doze anos em Londres, amizades literárias e políticas no Leste Europeu, experimentações formais e flertes com o pós-modernismo (O Avesso da Vida, publicado em 1988, é quase um romance experimental). Roth nunca foi um escritor rejeitado pelos críticos, mas revisitar as resenhas sobre os seus livros das décadas de 70 e 80 é uma experiência estranha: nota-se certa inquietação, uma preocupação quase paternal dos críticos em relação a ele, como se pensassem que Roth estivesse se perdendo demais em experimentalismos e indulgências autobiográficas em vez de focar na sua verve mais cômica e realista.
Ricardo Piglia dizia que, na literatura contemporânea, é mais difícil sobreviver ao sucesso do que ao fracasso. Poucos personificaram essa dificuldade e sua superação como Roth. O sucesso cria uma demanda pela repetição. O primeiro livro de Roth, Adeus, Columbus, composto da novela homônima – a história de um garoto judeu de Newark que se apaixona por uma judia rica – e cinco contos, ganhou o National Book Award em 1960 e foi coberto de elogios por famosos da época (Saul Bellow, espécie de mentor e amigo, disse que Roth chegava à cena literária “com dentes, cabelos e unha”, sugerindo, com razão, que havia em seu primeiro livro uma voz já formada).
Teria sido fácil para Roth repetir a fórmula, mas ele embarcou numa negação voluntariosa do que se esperava dele. Seus dois romances seguintes, agora um tanto esquecidos (Letting Go, de 1962, e Quando Ela Era Boa, de 1967), adotaram um tom diferente do primeiro, e O Complexo de Portnoy rompeu de vez com o precedente (Bellow não gostou muito do livro). O sucesso de Alexander Portnoy criou uma demanda ainda mais intensa pela repetição; e, de novo, Roth se desviou do caminho esperado, dessa vez com mais afinco. Aos poucos, se tornou famoso pela neurose e diligência com que tratava o ofício. Em sua casa nos Berkshires, escrevia em pé, supostamente para não esfolar as costas – e a imagem de um escritor mais velho que nunca senta parecia encapsular o credo laboral de Roth: o de quem encara a escrita como um trabalho árduo, física e psicologicamente demandante.
Roth celebrava o masoquismo. Achava que só assim se podia escrever: com muito suor e muita dor. Não é verdade – basta pensar em Guy de Maupassant, revolucionando a forma do conto enquanto ia a festas, praticava remo e enfileirava amantes (“Você precisa trabalhar mais duro”, lhe escreveu certa vez Gustave Flaubert, amigo de seu tio. “Uma pessoa civilizada precisa de muito menos locomoção do que os médicos dizem.”). O que Roth definia como necessidade talvez tenha sido uma preferência. Ele gostava de tomar o caminho mais longo, e, no fim, será também lembrado por essa diligência jamesiana, por esse heroísmo literário antiquado, cada vez mais raro numa época de gratificações imediatas.
A reação de Eichmann a Lolita possui comicidade sombria quando colocada em contexto, mas é uma reação comum, reconhecível (o intuito de Arendt com a anedota era humanizar e, ao mesmo tempo, banalizar Eichmann, sacá-lo do pedestal de monstro perverso e maquiavélico). O bom texto literário frequentemente provoca reações mais vívidas (mais “reais”, por assim dizer) do que a experiência real em si – que, mesmo quando envolve eventos chocantes, pode ainda assim ser anticlimática, difusa demais, de fácil evaporação. A melhor literatura é uma intensificação da vida, não uma mímesis diluída dela. Essa verdade, intuída por qualquer pessoa que se preste a escrever ou ler com afinco, é difícil de vocalizar numa época em que a experiência é valorizada, com justiça, mas também fetichizada, com exagero.
Roth extrapolou essa intuição; poucas vozes na página são mais vivazes do que a sua. O gradual abandono das distrações cotidianas e a adoção de uma rotina exclusiva de escrita lhe rendeu frutos: é difícil pensar em outro escritor que tenha sido tão vigoroso e produtivo na velhice. Paradoxalmente, o estilo de Roth, de uma abundância luxuriosa, é também pouco ornamentado. Ele faz uso de poucas metáforas, de pouco lirismo. É como se, assim como fez com a própria vida – limpando festas e eventos da agenda, abandonando o barulho e o burburinho da cidade –, tivesse também despido sua literatura de tudo que não fosse essencial. O que sobra é uma voz coloquial e enérgica, íntima e ao mesmo tempo cerebral, acolhedora até quando potencialmente ofensiva.
Embora se exasperasse com o sofrimento causado pelo ato da escrita, Roth parecia ter orgulho do esforço monumental que fizera para refinar o tom e compor sua obra. Dizia às vezes escrever cem páginas para delas tirar apenas um parágrafo bom. É difícil não associar essa ética laboral à sua criação em Newark e à admiração que tinha pelos sacrifícios daqueles pais judeus que vendiam seguros e carne kosher para que, no futuro, os filhos tivessem empregos melhores que os deles.
A vida plácida da classe média americana do pós-guerra sempre teve grandes cronistas. Mas quase todos eles – como John Cheever, Richard Yates, James Salter, Matthew Weiner (o criador da série televisiva Mad Men) – escolheram focar nos aspectos mais melancólicos daquele mundo, no vazio existencial de personagens cerceados por uma prosperidade inócua. Roth seguiu um caminho distinto: passionalmente compreensivo com o ambiente em que crescera em Nova Jersey, deu profundidade àquele universo social, evocou-o com ternura. As tragédias de seus romances nascem não da mesquinharia ou do provincianismo de personagens pequeno-burgueses, mas provocadas por forças impessoais – as guerras, as mudanças culturais – que arrasam os paraísos na Terra (“O que, neste mundo, pode ser menos repreensível que a vida dos Levov?”, Zuckerman, o alter ego de Roth, exaspera-se, no fim de Pastoral Americana).
Roth foi menos um satirista que expôs a hipocrisia de sua comunidade do que um celebrante persuasivo dela. Ele sabia das limitações daqueles idílios criados pela classe média americana, entendia a ingenuidade perniciosa que no fim leva a tragédias (como sempre acontecia em seus livros), mas rotulá-lo como um detonador dos bons costumes equivale a ignorar uma boa parte de sua obra. Numa entrevista pouco antes de morrer, falou em tom de orgulho contido dos amigos de infância que tinham se tornado médicos. Nunca afetou desdém por prêmios literários; dizia que ganhá-los lhe trazia uma alegria meio infantil. Quando parou de escrever, já no fim da vida, aproveitou para reler todos os seus romances pela última vez. “Fiz o melhor que pude com o que eu tinha”, disse sobre eles, quando terminou a tarefa. Era uma frase estranha, modesta demais para aquele que era o melhor escritor americano vivo – mas também uma frase apropriada e polida, evocativa do aluno brilhante e esforçado que ele foi na escola pública Weequahic High School.
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