Entre os amigos, Lizzie (roendo a unha) assiste à confirmação de que o bóson de Higgs existe FOTO: CERN (ORGANIZAÇÃO EUROPEIA DE PESQUISA NUCLEAR)
O bóson é uma festa
De como uma estagiária acompanhou ao vivo, em Genebra, a descoberta da partícula procurada há 48 anos
Flora Thomson-DeVeaux | Edição 71, Agosto 2012
Lizzie Hylton quase apareceu no New York Times. A foto, tirada em 4 de julho em Genebra, na Suíça, registrava o êxtase do público que lotava o auditório do CERN, o Centro Europeu de Pesquisa Nuclear. Em primeiro plano, de costas para a lente, cinco senhores de cabelos brancos encaram a plateia. Um deles ergue o punho direito, num gesto de vitória. Era bem ali que Lizzie teria sido vista, se o danado do punho não houvesse tapado seu rosto. “Eu podia ter ficado chateada, mas é encantador ver um homem dessa idade tão eufórico”, escreveu a moça no Facebook. “Além do mais, é Peter Higgs, e a partícula é dele.”
Lizzie tem 19 anos e entrou há dois em Yale, onde pretende se formar em física e filosofia: “Nos gregos, as duas disciplinas estavam relacionadas. Até hoje as perguntas são as mesmas: Por que estamos aqui?” Ela trocou as férias de verão por um estágio de dez semanas no CERN. Com dois professores e uma dúzia de colegas, teve o privilégio de participar da reta final dos testes que, enfim, confirmaram a existência de uma partícula perseguida havia 48 anos, desde que seis cientistas – entre eles, o britânico Peter Higgs – teorizaram sobre ela. Para os outros cinco físicos que também a descreveram, o batismo não deixou de ser algo constrangedor.
Lizzie estuda supersimetria (melhor dispensar os detalhes) e, apesar de bóson não ser a sua especialidade, era impossível estar no CERN sem se envolver com a atividade febril que cercou a descoberta. Para se ter uma ideia do trabalho: o superacelerador do Centro analisou 500 trilhões de colisões de prótons, lançados uns contra os outros a uma velocidade próxima à da luz. Se cada colisão correspondesse a um grão de areia, seria possível preencher uma piscina olímpica. Os grãos – as colisões – em que o bóson de Higgs se manifestou cabem, todos, na pontinha de um dedo. É o caso de perguntar: mas que diabos vem a ser o bóson de Higgs?
Tome um floco de neve, uma estrutura complexa. Aqueça-o, e ele regredirá à simplicidade da água. O floco é o universo atual; a água, o que havia na fração de segundo depois do Big Bang, o evento que as colisões simulam: partículas sem massa chispando à velocidade da luz. Para que os planetas, as pedras, os sapos e você viessem a existir, alguém teria de se tornar sólido. Isso exige um mecanismo.
A solução imaginada por Higgs e seus pares consistiu num campo contínuo que ocupa todo o espaço e cuja unidade mínima é o bóson de Higgs, ou Hb. Retomando as analogias, imagine uma coletiva de imprensa para anunciar a descoberta do Hb. Centenas de jornalistas estão espalhados uniformemente pelo auditório. O rapaz da limpeza entra para espanar a cadeira onde se sentará o herói do dia. Ninguém o conhece, ninguém obstruirá seu avanço. Ele é a partícula sem massa que cruza o espaço à velocidade da luz e jamais se tornará planeta ou sapo. Ele é um fóton.
Instantes depois, Peter Higgs abre a porta. É a balbúrdia. Engolido por uma nuvem de jornalistas, só consegue avançar aos trancos e barrancos – Peter Higgs adquiriu massa. Os repórteres, cada qual um Hb, conferiram substância ao homem. Não está claro por que o bóson considera algumas partículas mais atraentes do que outras, mas o certo é que o Hb é uma espécie de borboleta social: onde houver uma partícula carismática – um Peter Higgs, um Brad Pitt, um Fábio Jr. –, o Higgs se grudará à barra de sua camisa com apetite proporcional ao grau de celebridade de que ela desfruta. Brad Pitt ficará imenso, um quark top. Fábio Jr., bem menos, um elétron. Alexandre Frota, quase nada, um neutrino.
Daniel Ferrante, jovem pesquisador brasileiro que trabalha na Universidade Brown com o físico Gerald Guralnik – para muitos, o primeiro a imaginar o mecanismo –, explica que massa é precisamente essa dificuldade de avançar. Einstein mostrou a equivalência entre massa e energia. Se uma partícula que viaja à velocidade da luz entra num campo resistente, essa desaceleração, essa energia não mais realizada, terá de se converter em outra coisa – em massa.
Com grande elegância, o mecanismo também explica como a própria partícula de Higgs possui massa. Se no auditório alguém abrisse a porta apenas para sussurrar um boato – “Peter Higgs está de caso com Angelina Jolie”, digamos –, imediatamente os jornalistas se aglutinariam para checar se a informação estava correta. Pronto: o Hb deu massa ao Hb.
Fazia dois anos que duas equipes de pesquisa – CMS e Atlas – debruçavam-se sobre os dados usando softwares e detectores de partículas próprios. CMS e Atlas trabalham em regime de “coopetição”, no qual os colegas colaboram entre si, sem, contudo, revelar ao outro os resultados de seu próprio grupo. Qualquer descoberta exigiria confirmação dupla e independente. Assim é que, no CERN, ou se é Atlas, ou se é CMS. Lizzie é Atlas, e pediu, por escrito, que ficasse registrado que a equipe dela é “mil vezes melhor”.
Não existe o momento heroico em que alguém avança um dedo tremelicante em direção a um pontinho na tela e, superando o balbucio de incredulidade, solta o grito primal: “Achei!” A descoberta se dá por aproximação. Os dados que indicam a presença de uma nova partícula vão se acumulando e, a cada novo indício, cresce o nível de certeza estatística da descoberta. Essesníveis são chamados de sigma. Quanto maior o sigma, mais perto se está da confirmação. Na física de partículas, o padrão-ouro de certeza estatística é sigma 5.
A uns dez dias da grande data, Lizzie já sabia que Atlas chegara a sigma 5. CMS confirmaria o resultado? Quando se divulgou que o diretor-geral do CERN, o alemão Rolf-Dieter Heuer, convocara a imprensa para a manhã do dia 4, o coração da moça acelerou.
Na véspera, ela vestiu uma blusa tomara que caia de um estampado discreto. Pôs o Mac embaixo do braço, encheu o farnel de comida e, junto com amigos de Yale e Columbia, se mandou para a sede do CERN. Chegaram às 23h30 para garantir um lugar na coletiva, marcada para a manhã seguinte, às 9 horas. Lá pelo meio da madrugada, umas mil pessoas, quase todas jovens, esparramavam-se pelos corredores do edifício. Umas faziam contas, outras assistiam a filmes nos laptops, muitas tuitavam. Falava-se de massa, sigmas e partículas a granel. Houve guerra de jujuba. “Era o Woodstock da física”, diz Lizzie.
Às 7 e meia, abriu-se a porta do auditório. “ACABEI DE ENTRAR. PRIMEIRA FILA DAS CADEIRAS NÃO RESERVADAS. #O SONHO VIRA REALIDADE”, comemora Lizzie. O primeiro a aparecer é Heuer, o diretor do CERN. Ele chama à frente os porta-vozes das equipes Atlas e CMS: “Hoje é um dia especial. Veremos duas apresentações com informações atualizadas sobre a busca de uma certa partícula…”
“O EMBARGO ACABOU. O EMBARGO ACABOU.”, tuíta Lizzie. “Preste atenção, mundo. Aí vem.” Joe Incandela, do CMS, encerra sua apresentação: “Combinando dois grupos de dados, atingimos sigma 5.” Fabiola Gianotti, do Atlas, termina: “Atingimos sigma 5.” Heuer toma o microfone e anuncia: “Acho que conseguimos!” Aplausos explodem no auditório. Na primeira fila, Peter Higgs tira os óculos e leva um lenço aos olhos. (Ainda há uma chance em 2 milhões de a partícula achada ser fruto de erro estatístico, e também não é possível afirmar se se trata exatamente de um Hb ou de um aparentado, o que, dizem os físicos, seria fascinante.)
Seguiram-se comemorações soberbas. Lizzie participou da “collision party”, festa em que os rapazes receberam um crachá com o nome de uma partícula, enquanto as meninas, naturalmente, pregaram no peito a antipartícula. “Se a gente encontrasse o nosso par, ganharia uma bebida de graça”, ela conta, considerando o folguedo “uma das coisas mais nerds” que já viu.
No dia seguinte, e no outro, e no outro, a toda hora e em todo lugar, alguém, ainda atônito, chegava num amigo ou num desconhecido para dizer, boquiaberto: “Cara, encontramos o bicho!”
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